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Superendividado recorre pouco à Justiça para negociar dívidas
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Atualmente, são 30 milhões de pessoas superendividadas, de acordo com estimativa do Idec
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A lei exige um plano detalhado de pagamentos para que as negociações ocorram extrajudicialmente
A principal novidade da Lei do Superendividamento (nº 14.181, de 2021), a possibilidade de negociação coletiva de dívidas com credores, ainda não emplacou no Judiciário. Levantamento do escritório Mattos Filho Advogados, feito a pedido do Valor, mostra que de 100 decisões que tratam da nova norma, em vigor há um ano, apenas 20 abordam essa questão – a maioria são liminares negadas porque o devedor quer suspender as dívidas sem apresentar um plano detalhado de pagamento.
Para os advogados que coordenaram o levantamento, Caroline Visentini e Fernando Dantas, a falta de definições, como a do mínimo existencial – estabelecido apenas ontem por meio de decreto (leia mais abaixo) – e de procedimentos para a conciliação e negociação coletiva de dívidas, colaboram para esse baixo resultado. Além disso, acrescentam, como a lei é nova, ainda é desconhecida de muitos consumidores.
Estímulo para conciliação de dívidas
O número de superendividados no país, porém, dizem, mostra que há muito espaço para negociação. Hoje, são 30 milhões de pessoas nessa situação, de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Fernando Dantas considera a possibilidade de repactuação global de dívidas a principal alteração da lei. “Agora há um estímulo legal para a composição da conciliação com todos os envolvidos e isso representa uma evolução”, diz ele. A pesquisa, explica, reuniu decisões dos Tribunais de Justiça da Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Distrito Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O que diz a nova regra?
A lei exige a apresentação, pelo devedor, de todas as despesas mensais, como aluguel, água, energia e alimentação – que compõem o chamado mínimo existencial. Além de um plano detalhado de pagamentos para que as negociações ocorram extrajudicialmente. Se não houver acordo, o devedor pode levar o caso às mãos de um juiz para estabelecimento de um plano a ser cumprido no prazo máximo de cinco anos.
Muitos Procons, segundo a advogada Caroline Visentini, têm auxiliado os consumidores a elaborar esses planos e negociar com credores. No de São Paulo, por exemplo, explica o diretor executivo Guilherme Farid, o trabalho com superendividados é feito desde 2012, mesmo antes da lei. Desde então, foram feitos 40,5 mil atendimentos – 7,8 mil só no ano passado.
“A principal dificuldade do superendividado é saber todas as dívidas que tem. Por isso, ajudamos a localizar essas dívidas e fazer a negociação, além de dar treinamento de educação financeira para que não se endivide novamente”, diz Farid. Ele acrescenta que, para a lei funcionar melhor, havia a necessidade do conceito de superendividado, agora definido por decreto.
Faltam definições sobre a lei
A coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec, Ione Amorim, afirma que a lei não é letra morta, trouxe alterações importantes, como a possibilidade de repactuação coletiva de dívidas. Mas não teria emplacado ainda pela falta de definições, como a do mínimo existencial, e de uma melhor estrutura para os órgãos que atuam nas conciliações e para o Judiciário.
“O movimento do acolhimento dos endividados já começou, embora desarticulado porque ainda faltam parâmetros e procedimentos a serem estipulados para a negociação coletiva”, diz. “Mas para a lei gerar os efeitos esperados será fundamental também educação financeira, para ser acordado o possível de ser cumprido, e transparência das instituições financeiras.”
Só no fim de dezembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou o tema, por meio da Recomendação nº 125. O texto sugere, entre outras medidas, que os tribunais implementem núcleos de conciliação e mediação de conflitos apenas para casos de superendividamento. Ainda recomenda que os juízes adotem o fluxograma e formulário padrão presente no texto para avaliar o endividamento e os caminhos a seguir no processo.
Em março, o CNJ ainda promoveu uma nova atualização das Tabelas Processuais Unificadas (TPUs) para conseguir identificar processos judiciais originados do superendividamento. Esses dados devem ficar disponíveis no segundo semestre de 2023, na divulgação do “Justiça em Números”.
Mais endividados
A lei, destaca Ione Amorim, entrou em vigor num contexto de alto índice de inadimplência, elevação de taxa de juros, conjuntura econômica ruim e alta taxa de desemprego. “Tudo isso instiga as pessoas a novos endividamentos”, diz ela, acrescentando que, apesar da lei ser uma boa iniciativa, o governo federal tem tomado decisões em sentido contrário.
Ione Amorim cita, como exemplo, o aumento da margem de empréstimos consignados. Antes da pandemia o limite era de 35% da remuneração, na pandemia foi para 40% e agora está previsto aumento para 45%. “Isso só piorará a situação do endividamento.”
Qual o perfil dos superendividados?
Hoje, as mulheres que ganham de um a três salários mínimos representam a maior parte dos superendividados, de acordo com pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Segundo a Serasa Experian, a dívida média é de R$ 3,9 mil, principalmente com cartão de crédito (29,7% do total), varejo (13%) e luz, água e gás (22,3%).
No caso, por exemplo, de uma pessoa que ganha dois salários mínimos, um total de R$ 2.424, se precisa de R$ 1,5 mil para viver e fecha acordos separados com as empresas, segundo especialistas, não conseguirá quitar o que deve. “Esse acordo individual não vai ter sucesso. Por isso, a aposta em acordo global”, diz a professora Claudia Lima Marques, da UFRGS, relatora da comissão de juristas que elaborou a Lei do Superendividamento. Hoje, 34 países desenvolvidos têm leis semelhantes, entre eles Estados Unidos e França – o que inspirou a norma brasileira.
Cultura do endividamento
Claudia afirma que está otimista com a aplicação da lei e a guinada que pode causar na vida dos superendividados, mas que ainda é preciso uma mudança de cultura. “O Brasil tem uma cultura da dívida, da exclusão do endividado. Essa lei é quase que uma lei civilizatória, que busca o direito de negociar e a reinclusão desse devedor.”
No levantamento realizado pelo Mattos Filho, contudo, a maioria das decisões (59 das 100) trata das chamadas ações revisionais, ou seja da negociação dos empréstimos comuns com apenas um banco.
Nos precedentes judiciais mapeados ainda se discute o que deve compor o mínimo existencial e a aplicação do Tema Repetitivo nº 1085 do STJ – sobre o desconto de parcelas de empréstimo bancário comum em conta corrente – (59%) e a observação ao dever de informação na oferta de crédito (6%).
Em abril, a 2ª Seção decidiu que são lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários e que não seria aplicável, por analogia, a limitação de 35% para empréstimos consignados.
Após o julgamento, sem a definição do mínimo existencial, os juízes passaram a decidir sobre esses limites, segundo a advogada Caroline Visentini. Decisões judiciais passaram a estabelecer um teto – entre 30% a 60% da renda do devedor – para o pagamento de dívidas. O restante deveria ficar descomprometido para despesas básicas.
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