Inverno cripto: investidores enfrentam primeira crise após popularização do bitcoin

A moeda digital mais famosa já desabou 70% e pode cair mais, segundo analistas

Quem acompanhou a escalada anterior do bitcoin não poderia imaginar que essa e outras criptomoedas, apesar de muito voláteis, voltariam a patamares tão baixos. A reputação foi conquistada nos últimos cinco anos. E, mais recentemente, passaram a integrar a carteira de grandes fundos, criando a ideia de que funcionariam até de proteção contra intempéries, como o atual surto inflacionário global. No entanto, desde o pico em novembro do ano passado, a cotação do bitcoin já despencou 70%, num movimento similar ao de outras moedas digitais.

A forte queda confirma a visão de muitos analistas de que as cripto são apenas mais uma modalidade de ativo de risco.

Na semana passada, o bitcoin valia cerca de US$ 21,5 mil (R$ 114 mil). Há sete meses, era negociado a US$ 68 mil (R$ 362 mil). Analistas veem espaço para queda maior e recuperação mais lenta do que em outras crises desse mercado.

Quem detém criptoativos se prepara para um longo inverno. Muitos experimentam sua primeira crise no setor, já que o alcance e a popularidade de bitcoin, ethereum e similares só ganhou tração recentemente. Alguns investidores vendem para minimizar perdas, enquanto outros seguram firme e até compram na baixa, mirando o longo prazo.

Marcelo Magalhães criou token Rib para dar liquidez ao mercado imobiliário. Foto: Fábio Rossi/ O Globo

Quando o empresário Marcelo Magalhães, de 43 anos, começou a se interessar por moedas digitais, em 2017, o bitcoin valia menos que US$ 5 mil. A popularização da mais conhecida das criptomoedas levou-o a vender três apartamentos para aplicar o dinheiro nesse ativo, que acabava de deixar uma fase de baixa. Até o fim de 2021, a valorização não causou arrependimentos. A queda livre dos últimos meses o fez abandonar o barco do bitcoin, mas não o dos ativos digitais. Há dois meses, quando o bitcoin caiu a US$ 40 mil, ele se desfez de toda a sua carteira.

Comprar em vez de vender

Entusiasta dos criptoativos, Magalhães se juntou a dois sócios para investir em um negócio digital que tem como principal objeto o Rib, um token (certificado digital autenticado pelo blockchain, a tecnologia por trás das moedas virtuais) para transações imobiliárias.

“Preferi comprar Rib, que está no fundo da panela, porque acredito na valorização”, diz Magalhães.

Assim que o bitcoin entrou no ciclo de baixa, muitos analistas sugeriram que US$ 30 mil seria o piso. A queda continuou, e o novo palpite foi US$ 20 mil. Até que, na semana passada, a criptomoeda chegou a ser negociada abaixo desse patamar, e hoje há quem fale em US$ 15 mil e até US$ 12 mil. Ainda assim, estrategistas do Deutsche Bank, maior banco da Alemanha, por exemplo, preveem a reação do bitcoin, chegando a US$ 28 mil até o fim deste ano.

O empresário Gustavo Goldani, de 32 anos, criador da Feira Vegana Vida Liberta, fica entre os otimistas. Ele não só manteve seus bitcoins como está aproveitando a baixa para comprar mais. Com a queda recente, estima um prejuízo de 20% até agora, mas foca no longo prazo.

Otimista, Gustavo Goldani continua comprando bitcoins: “mercado funciona em ondas”, acredita. Foto: Fábio Rossi/ O Globo

Seu interesse pelas moedas digitais surgiu no auge da pandemia, que impediu a realização de seus eventos. Usou o tempo para estudar criptomoedas e começou a fazer aportes periódicos, como forma de ter ganhos sem sair de casa. Ficou tão interessado que resolveu empreender nesse universo e acaba de lançar um serviço de automação de análise de mercado, o Signals4.trade.

“Acho que a queda é uma oportunidade, porque entendo que o mercado funciona em ondas. Futuros milionários compram agora”, opina.

Especialistas recomendam cautela e concordam que o contexto econômico global é o maior vilão da crise das criptomoedas. A guerra na Ucrânia mantém em alta a inflação — que surgiu com os gastos dos governos para amenizar os impactos da pandemia — em vários países, levando os bancos centrais a elevarem juros para combatê-la. Isso torna investimentos de renda fixa, como títulos públicos, mais atraentes, ainda mais em um cenário de incerteza.

A corrida em direção às aplicações mais seguras desvaloriza ativos de risco, como ações nas Bolsas de Valores e criptomoedas. Analistas apontam correlação acima de 75% entre a queda do bitcoin e a da Nasdaq, a Bolsa eletrônica americana que reúne empresas de tecnologia e é historicamente mais volátil do que os demais mercados acionários.

Efeito manada

O CEO da Coinext, José Artur Ribeiro, explica que, na pandemia, com a injeção de capital nas economias e taxas básicas de juros muito baixas, diversos investidores institucionais aderiram às moedas digitais em busca de maior retorno, o que contribuiu para sua valorização e reforçou o otimismo em relação aos criptoativos. Agora que o cenário mudou, eles abandonam a renda variável, reforçando o “efeito manada” sobre as cotações.

“Investidores que almejam rentabilidade no curto prazo são impulsivos. Isso faz o mercado (de criptomoedas) cair em proporção mais alta, até porque funciona sem interferências, 24 horas, sete dias na semana, sem circuit breaker”, diz Ribeiro, referindo-se ao mecanismo das Bolsas que suspende a negociação de uma ação após queda abrupta e acentuada, o que não existe na negociação descentralizada de moedas geradas digitalmente, por não serem emitidas por bancos centrais.

Para não se sentir tentada a sacar agora o que investiu em criptomoedas, a analista de recursos humanos carioca Bárbara Faria, de 33 anos, prefere nem ver os gráficos. Do aporte de R$ 6 mil em bitcoins feito em 2021, restam R$ 2 mil. Mas ela se mantém otimista.

“Como é uma moeda finita, acho que em alguns anos pode atingir US$ 150 mil.”

O irmão dela, Saulo Faria, de 40, que mora em João Pessoa (PB), também vê valorização no longo prazo. Ele diz ter aplicado toda a sua reserva de R$ 50 mil em bitcoins, contrariando o mantra de diversificação do mercado financeiro.

“É meu único investimento. Penso em tirar o dinheiro em mais ou menos dez anos.”

Nesse cenário nebuloso, fundos de cripto enfrentam crises de liquidez nos EUA, como a do Three Arrows Capital, que sexta-feira pediu falência, e afetam as cotações. Dan Morehead, ex-operador de títulos do Goldman Sachs que agora chefia o fundo de investimentos em criptomoedas Pantera Capital, considera grande a chance de “novos colapsos”.

Luiz Pedro Andrade, analista de criptoativos da Nord Research, concorda. Ele lembra a crise recente da Terra, que era considerada uma stablecoin (moeda digital com lastro em algum ativo real) e virou pó, afetando vários fundos:

“Muitos trabalhavam alavancados e perderam dinheiro tentando salvar o ecossistema, que estava ruim. Nesse cenário, criptos começaram a cair em movimento continuado.”

Crise no ecossistema

Com a maior cautela dos investidores, o volume de transações envolvendo criptomoedas caiu nas exchanges, como são chamadas as corretoras desse mercado, que ganham com as taxas cobradas nas operações. O resultado é uma crise no setor, dominado por startups até pouco tempo promissoras.

Segundo o site Blockchain.com, em dezembro de 2021, quando o bitcoin estava em US$ 50 mil, as transações nas principais plataformas somaram US$ 1,24 bilhão. Na semana passada, com cotação de US$ 21,5 mil, o volume foi de US$ 87,2 milhões.

Victor Rosa, analista da Kínitro Capital, explica que, para ajustar as margens, as exchanges estão cortando custos com funcionários e marketing. No mês passado, a Coinbase dispensou 18% de seus empregados, e a Crypto.com, 5%. O Mercado Bitcoin, um dos primeiros unicórnios (como são chamadas as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) do Brasil, teve de cortar 12% da equipe.

Segundo o diretor de Novos Negócios da corretora, Fabrício Tota, os planos de expansão foram adiados.

“Paramos de focar na aquisição de clientes e estamos aprimorando o atendimento dos que já estão conosco.”

Cuidados na hora de investir

Vale a pena comprar bitcoins na baixa?

Luiz Pedro Andrade, da Nord Research, diz que o mercado de criptomoedas ainda está muito sensível. Quem quer investir só deve alocar de 1% a 5% do seu capital em criptoativos.

Que ativo escolher?

Melhor focar nos principais do mercado, bitcoin e ethereum, diz Andrade: “É cada vez mais arriscado apostar em ativos pequenos, que estão surgindo agora. A tendência é que a maioria morra nesse ciclo”.

Como minimizar riscos?

O analista da Nord acredita que o bitcoin pode cair ao patamar de US$ 15 mil. Uma forma de não vender com prejuízo e aguentar uma retomada mais lenta é ter aplicações em renda fixa na reserva de emergência, como Tesouro Direto. Diversificar é mitigar riscos.

Como evitar golpes?

Para não cair em golpes como os do falso corretor que ficou conhecido como “Faraó dos Bitcoins” ou o recente calote milionário do chamado “Sheik das Criptomoedas” em clientes como Sasha Meneghel, o segredo é pesquisar a reputação das exchanges antes de abrir conta e desconfiar de promessas de ganhos altos demais.

Por Letycia Cardoso, O Globo, Rio de Janeiro.