A crise das criptomoedas pode contaminar as finanças tradicionais?

Alguns pesos pesados de Wall Street chegaram à conclusão de que a encrenca das criptomoedas não representa um risco sistêmico para os bancos. Entenda

A carnificina das criptomoedas tem um lado positivo: o sistema financeiro tradicional foi poupado. De Bruxelas a Washington, as entidades que fiscalizam as finanças minimizam o risco de a turbulência se espalhar para outros mercados e argumentam que suas ações protegeram os bancos da queda abrupta das criptomoedas.

“Esse contágio não se estendeu ao setor bancário e financeiro tradicional”, disse Michael Hsu, chefe interino da Controladoria da Moeda dos EUA. “Isso se deve, pelo menos em parte, à ênfase contínua e deliberada dos reguladores dos bancos na segurança, na solidez e na proteção ao consumidor.” As agências reguladoras mundiais na Basileia foram mais longe na quinta-feira, e propuseram regras mais duras para limitar a exposição a criptoativos mais arriscados em 1% do capital de nível 1 de um banco.

Para o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA), a exposição dos bancos aos mercados de criptomoedas é limitada. O Fed divulgou recentemente os resultados de seus testes anuais de estresse, que mostram que os maiores bancos dos EUA poderiam sofrer perdas de mais de US$ 600 bilhões e ainda exceder os níveis de capital exigidos pelo governo. Fora do setor bancário, os esquemas de proteção incluem diretrizes de investimento para investidores institucionais que limitam sua exposição a ativos digitais, segundo uma autoridade da SEC (a comissão de valores mobiliários dos EUA).

Essa autoridade acrescentou que não há sinais de que a onda de vendas de criptomoedas tenha desencadeado uma corrida por dinheiro vivo de investidores em busca de resgatar títulos tradicionais para cobrir perdas em criptomoedas, mas a SEC continua a monitorar essa atividade.

“Para os gestores convencionais de ativos, o impacto direto da liquidação de criptomoedas é mínimo”, disse Anne Richards, executiva-chefe da Fidelity International. “O bitcoin conseguiu espaço em um número pequeno de carteiras institucionais, mas para a maioria dos grupos ele ainda está bem à margem.”

O presidente do Conselho de Supervisão Bancária do Banco Central Europeu (BCE), Andrea Enria, disse a um comitê do Parlamento Europeu que havia conexões “ainda muito limitadas” entre criptomoedas e bancos. “Mas noto um aumento do interesse dos bancos sobre a hipótese de entrar nesses mercados, já que percebem populações mais jovens muito interessadas potencialmente… Também observo, de forma geral, uma instabilidade maior no setor, portanto, quanto antes pudermos regulamentar e dar orientações claras, melhor.”

O ministro das Finanças da Irlanda, Paschal Donohoe, que preside o grupo de ministros das Finanças da União Europeia (Eurogrupo), disse que as autoridades não estão preocupadas, mas acrescentou: “Posso imaginar que daqui a um ano estaremos tão focados em criptomoedas quanto estamos no perigo das mudanças climáticas, que está entre as nossas principais preocupações”.
Bancos grandes e regulamentados encontraram maneiras de oferecer produtos de criptomoedas aos clientes. O J.P. Morgan Chase ajuda as bolsas de criptomoedas Coinbase e Gemini com transações de depósitos e saques; o Goldman Sachs tem vendido derivativos vinculados ao bitcoin, ao mesmo tempo em que fez um empréstimo à Coinbase com com garantias em bitcoins; e muitos bancos oferecem a investidores ricos acesso a fundos de investimento em criptomoedas.

Bancos americanos menores entraram mais fundo na área e tentam atrair clientes de ativos digitais, como emissores de “stablecoins”, bolsas de criptomoedas e operadores. Entre eles estão o Signature Bank, que já informou que mais de um quarto de seus cerca de US$ 120 bilhões de depósitos em dólares está relacionado a clientes de ativos digitais, e o Silvergate, que obteve quase todos os seus US$ 29 bilhões de depósitos de clientes de ativos digitais.

Temerosos de mergulhar fundo demais, os bancos ficaram de fora de mais de 95% dos US$ 4 bilhões a US$ 5 bilhões em receitas estimadas para clientes corporativos e institucionais geradas em 2021 por meio de ativos digitais, de acordo com um relatório do Morgan Stanley e Oliver Wyman. “Os bancos precisam ir aonde os clientes querem que vão, portanto, se existisse pressão dos clientes, eles poderiam ter se engajado mais em atividades [com criptomoedas]”, disse Mitch Eitel, sócio-gerente do grupo de serviços financeiros da Sullivan & Cromwell.

De acordo com Jeff Berman, sócio da Clifford Chance, a pequena exposição direta aos bancos tornaria menos provável que eles agissem como um canal de transmissão para o estresse financeiro do “crash” das criptomoedas, como fizeram com a crise de 2008. “Os bancos não possuem criptomoedas e têm sido muito cuidadosos ao fazer empréstimos com garantias em criptomoedas foi feita por especialistas da área. Portanto, a exposição geral à criptomoeda é baixa”, disse Berman.

Como a maioria dos operadores de primeira linha dos bancos tradicionais que atendem os fundos hedge dominantes ainda não entrou no setor de criptoativos, os fundos de criptomoedas tendem a usar corretores especializados em ativos digitais, embora ainda possam recorrer a bancos ocasionalmente, quando negociam ativos mais convencionais. Isso é visto como uma limitação do risco de que os bancos tenham grandes perdas no caso de um fundo explodir.

Enquanto isso, muitos grandes fundos hedge macro e quantitativos que começaram a negociar criptomoedas o fizeram com o uso de futuros, por exemplo, na Chicago Mercantile Exchange (CME), e não com as próprias criptomoedas que os embasam.

Tudo isso levou alguns pesos pesados de Wall Street a chegarem à conclusão de que a encrenca das criptomoedas não representa um risco sistêmico para os bancos. “Não acredito que isso seja grande o suficiente para ser sistêmico”, disse Howard Marks, cofundador e copresidente da Oaktree Capital Management. “Acho que para que algo tenha um impacto sistêmico, deve fazer parte do sistema e das instituições.”

Por Joshua Franklin, Stefania Palma, Laura Noonan, Scott Chipolina, Laurence Fletcher e Harriet Agnew, do Financial Times.