7 desafios para Lula ou Bolsonaro modernizar a economia

O cenário internacional é desafiador e há a necessidade de avançar em reformas que se arrastam há décadas

Enveredando por uma disputa de segundo turno entre o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula, a corrida eleitoral deste ano não se caracterizou até agora por discutir o futuro, mas o passado. Não as propostas, mas os legados. Nem por isso o futuro deixou de bater à porta. No próximo ano, decisões difíceis terão de ser tomadas, no quadro de um cenário internacional desafiador e a necessidade de avançar em reformas que se arrastam há décadas.

Em contraste com o tom das campanhas, os últimos meses foram pródigos em documentos da sociedade civil com contribuições para pensar o país e a economia. As propostas vêm de entidades ligadas ao setor produtivo, ONGs, centros de pesquisa e grupos independentes de especialistas. A partir das ideias contidas nesses documentos, é possível esboçar uma lista com algumas das maiores prioridades para o país no novo ciclo.

Em agosto, um grupo interdisciplinar formado pelos economistas Bernard Appy, Marcelo Medeiros, Francisco Gaetani e Persio Arida, o cientista político Sérgio Fausto e o jurista Carlos Ari Sundfeld assinou o documento “Contribuições para um governo democrático e progressista”, cujas 67 páginas detalham propostas para a gestão do Estado, a modernização de políticas sociais e previdenciárias e a adaptação da economia às exigências do futuro. O Valor Econômico entrevistou Sundfeld, professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Em 2020, no auge da pandemia, as ONGs Instituto Clima e Sociedade e Instituto O Mundo Que Queremos, reunidas na Iniciativa Convergência pelo Brasil, lançaram a carta-manifesto “Uma Convergência Necessária: Por Uma Economia de Baixo Carbono”. A carta reúne 19 ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central, que ocuparam os cargos entre a década de 1981 e 2018. Em agosto deste ano, com a aproximação das eleições, os mesmos signatários republicaram a carta, expandindo suas propostas. O Valor conversou com o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, um dos signatários da carta, e com Sergio Margulis, economista-chefe da iniciativa Convergência pelo Brasil.

Em julho, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) lançaram suas “Diretrizes Prioritárias” para o governo federal no próximo quadriênio. O documento delineia o que considera uma política industrial adequada para o mundo contemporâneo, com propostas como a criação de um Marco Legal da Indústria 4.0 e uma modernização trabalhista para formalizar trabalhadores hoje no mercado informal. Conversamos com o coordenador do documento e economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha.

Em maio, os economistas Ricardo Barboza (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, FGV-Ibre) e Mauricio Furtado (BNDES) lançaram um estudo com “Dez Propostas para a Política Monetária”, em que debatem temas como as metas de inflação e o modo de atuação do Copom. Outras publicações do FGV-Ibre, como o estudo “À beira da extinção”, os economistas Claudio Considera e Juliana Trece, abordam os problemas da produtividade e da estagnação industrial brasileira. Conversamos com Silvia Matos, economista da instituição, sobre o cenário do próximo ano.

O Valor consultou também o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos, que reedita seu livro “Cartas a um jovem economista” (Sextante), e o economista Fabio Waltenberg, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), especializado em economia da educação e políticas sociais.

Os observadores compartilham o diagnóstico de que o mundo e o país passam por transformações profundas, que introduzem novas exigências e aumentam a urgência das já existentes. A conjuntura em que começa o novo ciclo político é hostil, com contração do comércio internacional e incertezas nos mercados de capitais.

A pandemia deixa cicatrizes que vão além dos impactos na saúde pública. As sucessivas crises de abastecimento em setores-chave como equipamentos médicos e microchips provocam a recomposição de cadeias globais de valor. Os gargalos de fornecimento, associados ao retorno de tensões geopolíticas na Ásia e na Europa, favorecem esforços de reindustrialização nas economias centrais. Palavras como “reshoring”, “nearshoring” e “friendshoring” – isto é, repatriar a produção ou transferi-la para países próximos e amistosos – tomaram o lugar do imperativo de “offshoring” que marcou a economia global desde a década de 1990.

Uma consequência dessa mudança de época é a reversão da tendência a baixa inflação e juros praticamente nulos nas economias centrais, além da farta liquidez a partir da crise de 2008. Os custos do trabalho tendem a aumentar e, com isso, manter os preços sob controle exige maior agressividade dos bancos centrais. Para países em desenvolvimento como o Brasil, isto pode significar maiores custos de financiamento e atração de capital. Daí a necessidade de estabelecer prioridades na modernização do Estado e da economia.

Veja a seguir uma lista com algumas das prioridades elencadas pelos especialistas que falaram ao Valor:

Reforma tributária

No campo das reformas, se há um ponto consensual, trata-se da urgência e da viabilidade da reforma tributária. Apesar de diversas tentativas frustradas, os projetos voltados à tributação indireta, ou seja, os impostos sobre produção, circulação e consumo de bens, estão em estágio avançado. As Propostas de Emenda Constitucional 45 (do Senado) e 110 (da Câmara dos Deputados) chegaram a ser aprovadas nas comissões em 2020 e estavam a ponto de irem a plenário. Discussões avançam também, embora mais lentamente, na tributação direta, como a reforma do imposto de renda e a possível cobrança sobre dividendos.

Dentre as prioridades do país, a reforma tributária é a que pode ser conquistada com maior facilidade, estima Maílson da Nóbrega. A aprovação pode ocorrer ainda no primeiro semestre e os resultados começam a ser vistos em cerca de dois anos, acredita o economista. “Os estudos sugerem que um sistema tributário mais racional pode aumentar em 25% o potencial de crescimento do país”, declara. “No curto prazo, o ambiente se torna mais otimista, com expectativas favoráveis e a percepção de que o Brasil vai se tornar mais eficiente, com exportações mais competitivas.” Para Nóbrega, este é também o primeiro passo para um processo de reindustrialização da economia brasileira.

Igor Rocha, da Fiesp, também enxerga na reforma tributária um caminho para a reindustrialização. “Se eu fosse escolher uma prioridade para a agenda do ano que vem, é a reforma tributária. Sobretudo nos primeiros meses de governo, seja ele qual for: é o momento em que há poder e disposição para mudanças”, diz. “A probabilidade de aprová-la no começo do próximo ano é alta. Há momentos em que determinada agenda ganha força de repente, porque não tem outra saída. Foi o que aconteceu com a reforma da Previdência e agora é a vez da tributária.”

Um dos grandes obstáculos à aprovação das reformas na tributação indireta – como IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS – costumava ser a oposição dos governos estaduais, que dependem da arrecadação desses impostos. Entretanto, as discussões das PECs 45 e 110 já conseguiram vencer a resistência da maior parte dos estados, segundo Nóbrega. Silvia Matos, do FGV-Ibre, acrescenta que a perda de receita após a PEC emergencial deste ano, que reduziu o ICMS sobre os combustíveis, também favorece o apoio dos estados à mudança do regime fiscal.

“Nunca achei que teríamos um momento tão favorável à reforma tributária”, diz Matos. “Hoje, os secretários de Tesouro dos estados estão muito mais alinhados com essa pauta, sobretudo depois que o governo federal interferiu no ICMS dos combustíveis. As entidades ligadas à indústria, por sua vez, são muito favoráveis à reforma, porque é o setor mais penalizado pela inexistência de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Como está, o ICMS só dá incentivos errados.”

Sustentabilidade

Ao longo dos últimos anos, a veloz expansão do desmatamento na Amazônia colocou o Brasil na berlinda, justamente em um momento em que a pauta da sustentabilidade se torna central. O acordo entre a União Europeia e o Mercosul, negociado ao longo de duas décadas e concluído no início de 2019, não foi ratificado pelo Parlamento Europeu, em boa medida, como reação ao aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia ocorrido desde então.

A centralidade da pauta ambiental nas políticas públicas é uma prioridade quase unânime, não apenas por causa da má imagem do país, mas também porque os mercados já colocam os critérios de sustentabilidade no centro de suas análises, principalmente por meio da agenda ESG (Ambiente, Social, Governança). Lentamente, as cadeias de valor também estão se reorganizando em termos de uma economia de baixo carbono, lembra Rocha.

Sergio Margulis chama atenção para a profusão de iniciativas de retomada econômica, no ano passado, que reivindicavam o termo “verde”. Era o caso do “Green New Deal” americano, que inspirou as políticas propostas pelo presidente Joe Biden, e do “European Green Deal” esboçado pela Comissão Europeia. A China, por sua vez, adianta suas metas climáticas, tentando estar à frente do Ocidente na corrida para dominar a economia do século XXI.

“Não tem como escapar da pauta ambiental. Ela já permeia todo o universo econômico. Está nos critérios dos bancos e nos acordos internacionais”, diz Margulis. “Então é preciso que a transição para a sustentabilidade seja uma política clara de Estado e do governo, integrando esses critérios na gestão da economia. O governo deve ser um maestro que agregue os interesses de cada grupo, do econômico e do ambiental, nessa mesma política.”

Segundo Margulis, o princípio de tornar a sustentabilidade um alicerce das políticas públicas brasileiras envolve “colocar os critérios sustentáveis, como cláusulas de redução de emissões, em todos os lugares”, dos empréstimos do BNDES até os planos de longo prazo de estatais como a Petrobras. “Algo assim já existe na área financeira. O Banco Central tem atuado bem na questão climática, com a exigência de securitizar os empréstimos para o risco climático. Estamos aprendendo a fazer a conta do risco climático e entendendo a vulnerabilidade dos investimentos ao clima. Não tem volta”, afirma.

Rocha sublinha que o reconhecimento de critérios ambientais se tornou incontornável para o setor produtivo, sendo parte das exigências de instituições financeiras internacionais na hora de conceder empréstimos. O economista da Fiesp compara a sustentabilidade à avaliação de risco das agências de classificação de crédito. “Quando o Brasil perdeu o grau de investimento, as empresas perderam acesso a fundos cujo estatuto não permitia investimentos de risco. A sustentabilidade é o novo grau de investimento. Sem ela, não existe acesso a capitais”, diz. “É preciso uma sinalização clara do governo de comprometimento com a pauta ambiental. Há uma infinidade de investimentos que podem ser atraídos no mundo e só dependem disso.”

Orçamento e gasto público

Em dois anos, as despesas obrigatórias do governo, como salários, previdência e transferências a estados e municípios, chegarão a 95% do orçamento, no cálculo de Nóbrega. “Não tem solução para o problema fiscal sem reduzir o gasto obrigatório. O orçamento federal do ano que vem, por exemplo, não é nada realista”, afirma.

O próprio teto de gastos, ao qual Nóbrega se refere como “última bala no cartucho” para tentar reverter a tendência de descontrole da despesa pública, trazia consigo a expectativa de que levaria a sociedade a redefinir suas prioridades de gasto. Mas isso não aconteceu. “Não vejo ambiente para redução de gastos obrigatórios no Brasil. Há pressões corporativas e urgências sociais. A sociedade jamais compraria a ideia de reduzir gastos em educação, por exemplo, embora o Brasil gaste muito mal nesse setor”, resume.

A alternativa que resta é tornar mais eficientes os gastos que existem. Matos, que define o desafio do país como “compatibilização delicada entre o equilíbrio fiscal e as políticas sociais”, assinala que a capacidade de diagnosticar a qualidade do gasto já existe, sobretudo a partir da instituição do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas Federais (CMAP), em 2016. O CMAP tem o papel de analisar a eficiência de iniciativas que vão desde fundos setoriais até subsídios, passando por medidas pontuais como a desoneração do PIS/Cofins sobre os produtos da cesta básica.

“O diagnóstico é claro: algumas das nossas políticas são ineficientes, caras e injustas do ponto de vista social”, diz Matos. “Seria possível reorganizar os gastos sociais de modo a gastar melhor, sem precisar expandi-los. Só que ficamos no diagnóstico. Sabemos o que está certo ou errado, mas nada disso entrou no orçamento.”

Matos sugere também a adoção da revisão permanente do orçamento, para torná-lo mais flexível e adaptável a eventos adversos. “Diferentes choques exigem de um governo uma atuação em áreas diversas. Não basta a capacidade de avaliação, é preciso que o processo seja contínuo. Com um orçamento rígido, como o nosso, mesmo se o governo for competente não será capaz de agir, por falta de espaço. É uma questão de modernizar o orçamento, para que bons gestores possam fazer boas políticas públicas”, diz.

Franco aponta que um dos problemas atuais em relação ao orçamento público é que sua elaboração continua regida por uma legislação quase sexagenária: a lei 4320/64, ou “lei das finanças públicas”, aprovada em uma época em que expressões como “superávit primário” nem sequer existiam. Esse é um dos fatores que limitam o alcance da Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor desde 2000. Uma “nova lei das finanças públicas” (PLC 295) tramita desde 2009 no Congresso, tendo sido aprovada em 2016 no Senado.

“Isto significa levar a sério a ideia de orçamento, algo que é feito antes, e não depois. Acabaria, por exemplo, o contingenciamento de recursos. Por outro lado, o desafio se torna fazer um orçamento que caiba dentro de uma estimativa realista de receita, algo que nunca fomos capazes de fazer. Em vez de se enganar, dizendo que tem receita para fazer tudo, passaria a haver uma disputa pelos recursos escassos”, resume Franco.

Âncora fiscal

Instituído em 2016 por meio da emenda constitucional 95, o novo regime fiscal, mais conhecido como “teto de gastos”, está a ponto de desabar. Entre aqueles que foram favoráveis à sua criação e aqueles que foram contrários, há um ponto de concordância: já há tantas maneiras de contorná-lo que ele perdeu eficácia. Dificilmente poderá ser mantido na forma prevista, apesar de ter sido verificada uma desaceleração nos gastos não obrigatórios desde 2017 e apesar de se tratar de uma emenda constitucional.

Em que pesem as declarações de Lula durante o processo eleitoral, pelas quais em seu governo o teto de gastos será revogado, o que exigiria uma nova emenda constitucional, nem mesmo a campanha do ex-presidente prevê deixar o orçamento público sem nenhuma âncora fiscal. A campanha do ex-presidente chegou a falar em uma composição vinculada ao superávit primário. Também há projetos para substituir o teto de gastos por uma âncora vinculada ao endividamento público. O Tesouro Nacional e o Ministério da Economia trabalham em propostas de teto que o flexibilizariam, incluindo mais indicadores do que apenas as despesas dos anos anteriores.

Para 2023, a expectativa de piora do equilíbrio fiscal foi calculada em até R$ 430 bilhões, ou 4,2% do PIB, pelos economistas Bráulio Borges e Manoel Pires, do FGV-Ibre. O resultado envolve perdas de arrecadação e aumentos de gastos. Por isso, de acordo com Matos, a saída mais rápida para o próximo ano será uma reacomodação do teto, denominada “waiver fiscal”. Trata-se da permissão de gastar durante um exercício um valor predeterminado, associada à exigência de uma reforma mais ampla e duradoura do gasto público. “Esse valor entraria no limite do novo teto. Isso pode funcionar se, ao mesmo tempo, forem reduzidas as emendas de políticos e o chamado orçamento secreto, o que mostraria uma visão mais positiva da economia brasileira”, afirma.

Ideia semelhante se encontra no documento “Contribuições”, com o nome de “programa especial de gastos”. Por essa proposta, o compromisso de recompor uma âncora fiscal mais sofisticada que o atual teto estaria associada à permissão de um aumento de gastos da ordem de 1% do PIB, condicionada às reformas do Estado. Esse aumento seria concentrado em três áreas: social; ciência, inovação e tecnologia; e sustentabilidade. “Esses recursos seriam usados em projetos que, por um lado, dariam apoio político ao governo na reforma do Estado e, por outro, acelerariam a transição ao modelo de baixo carbono”, explica Sundfeld. “Mas a autorização para gastar seria dependente do compromisso de redução das despesas da administração e da revisão da eficiência dos gastos, compensando o aumento autorizado.”

Transferência de renda

Já não estamos mais no tempo em que toda forma de transferência incondicional de renda é considerada uma forma de assistencialismo. Os debates em torno do Auxílio Brasil, principal mecanismo atual e substituto do Programa Bolsa Família, giram em torno de seu valor: retornar aos R$ 400 por família, vigentes até a aprovação da PEC 1/2022, que o elevou a R$ 600, mas apenas até dezembro deste ano, manter o atual valor ainda no ano que vem ou, ainda, elevá-lo, conforme chegou a ser prometido por Lula e por Ciro Gomes.

“É irreversível manter o auxílio em R$ 600, o que terá um impacto enorme no orçamento, superior a R$ 50 bilhões. Com o Bolsa Família, que foi muito bem-sucedido, o Brasil gastava 0,6% do PIB e agora vai gastar 1,5% com um programa pior”, diz Nóbrega. “Mas o país não pode renunciar a ter um programa como esse. Seria uma estupidez tanto do ponto de vista monetário quanto do ponto de vista do futuro do país. A transferência de renda está sendo adotada em todo o mundo, porque favorece o aprendizado das crianças no momento mais sensível do crescimento e porque garante que a próxima geração tenha qualificações melhores que as dos pais”, argumenta.

Contudo, há problemas no desenho do Auxílio Brasil, segundo Waltenberg. Diferentemente do antecessor, no atual sistema não há controle de condicionantes como frequência escolar e vacinação. Tampouco é feita a busca ativa por pessoas com direito ao auxílio. Sendo pago às famílias independentemente do número de membros, o programa favorece esforços individuais para aumentar ganhos. Por exemplo, é mais vantajoso que um casal se mantenha formalmente separado do que casado, para que cada cônjuge receba um auxílio.

Com o acúmulo de estudos sobre programas de transferência, o Brasil deveria proceder a uma atualização de suas políticas de transferência, segundo Waltenberg. Ou seja, nem permanecer com o Auxílio Brasil, nem retornar ao Bolsa Família. “O debate está contaminado pela disputa eleitoral, como se fosse um leilão. Estamos perdendo a oportunidade de olhar para políticas mais interessantes”, afirma o economista da UFF, citando o caso da cidade fluminense de Maricá, que possui um programa de renda básica. Cerca de 25% da população do município é atendida, com um pagamento individual, e não familiar, de R$ 200.

“O pagamento individual elimina o problema do tamanho das famílias. Poderia haver um programa que focalizasse crianças, incluindo também grupos desfavorecidos”, afirma. Waltenberg cita também os sistemas europeus de pagamento incondicional para pessoas com filhos. “É como uma renda básica universal, mas só para crianças, sem exigir nada, nem renda baixa, nem vacinação, nem escola. Essas políticas são muito eficazes para reduzir a pobreza e a desigualdade.”

Gestão do Estado

Quando surgem ameaças à democracia, a fonte da instabilidade é quase sempre a frustração da população com o funcionamento do Estado, alerta Sundfeld. Essa sensação marcou a última década em escala global: grupos populistas ganharam proeminência em várias partes do mundo, indicando uma irritação generalizada com a incapacidade de muitos regimes democráticos para gerar resultados. No Brasil, essa incapacidade é pronunciada.

“Há um trabalho a fazer para melhorar o Estado brasileiro, para que a democracia entregue seus resultados”, afirma o jurista. “Ou seja, o conjunto de reformas necessárias visa abrir o Estado aos interesses coletivos, além de torná-lo mais eficiente e igualitário.”

De acordo com Franco, a própria agenda de reformas se transformou desde a década de 1990, quando o vocabulário reformador se consolidou. O país está tão atrasado que hoje é preciso “reformar a ideia de reforma”. “Usamos a linguagem das reformas como antigamente se usava a linguagem do desenvolvimento, ou seja, para descrever os grandes projetos de nação na área econômica. Mas já se passaram 25 anos. Os objetivos e os temas das reformas se ampliaram”, diz. “Está na hora de fazer outro cardápio. A reforma tributária não é mais a mesma, a trabalhista se desdobrou, a expectativa com a privatização é diferente. Estamos na segunda geração de reformas.”

Mudanças do ordenamento jurídico em áreas como a previdenciária, a trabalhista e a tributária se tornaram temas permanentes, afirma o economista, porque a necessidade de adaptar a legislação às mudanças da realidade é constante. Por isso, um dos problemas que o Brasil enfrenta é o excesso de temas regidos por normas constitucionais, em vez de leis ordinárias e complementares, mais fáceis de alterar.

O documento “Contribuições” contém uma proposta ousada para encaminhar as reformas. Trata-se de uma emenda de desconstitucionalização, isto é, uma emenda constitucional que rebaixe determinadas normas, tornando-as leis complementares ou ordinárias. O objetivo é facilitar a discussão de mudanças, reduzindo o consenso necessário para fazer alterações em sistemas como o tributário. “Nos 34 anos desde que a Constituição foi promulgada, inserimos uma quantidade alucinante de regras. A discussão de reformas como a tributária leva tanto tempo porque os acordos são muito difíceis e dependem de PECs”, lamenta Sundfeld.

“Conseguimos inflacionar tanto a Constituição que introduzimos um risco democrático: a Carta pode se desmoralizar. Ou fazemos um pacto para não inflacioná-la mais, usando toda oportunidade para rebaixar o status normativo de dispositivos, ou vamos agravar o déficit democrático, piorar a economia e dificultar o governo do país”, alerta o jurista.

Política industrial

Muitas das medidas elencadas nesse conjunto de prioridades têm como objetivo resgatar a produtividade da economia brasileira, estagnada desde a década de 1980. Muitos economistas consideram que essa estagnação condenou o Brasil à chamada “armadilha da renda média”, situação em que um país já não é pobre, mas não consegue atingir um grau mais alto de desenvolvimento.

A estagnação da produtividade também se reflete na perda de dinamismo da indústria. No artigo “À beira da extinção”, Considera e Trece, do FGV-Ibre, apontam que a produtividade da indústria brasileira chegou a seu patamar mais baixo em 21 anos. A relação entre o que foi produzido e os recursos empregados na produção foi de R$ 75.379, menor valor desde 2000. Segundo os autores, a tendência é de piora e a indústria brasileira corre o risco de desaparecer.

Embora a recuperação da produtividade seja um processo de longo prazo, a produção pode ser mantida viva nesse meio-tempo por meio de uma política industrial atualizada, conforme Rocha. No documento “Diretrizes”, a Fiesp cita o retorno das políticas industriais nas economias centrais, após a ruptura das cadeias de suprimentos durante a pandemia e as disputas geopolíticas entre Estados Unidos e China. O documento identifica vulnerabilidades nas cadeias consideradas críticas, citando alimentos, energia, tecnologias da informação e comunicação, saúde e segurança/defesa.

“Na pandemia, a expectativa de que as cadeias de valor se restabelecessem rapidamente foi logo frustrada, sobretudo em insumos de medicamentos e equipamentos médicos”, aponta Rocha. No ano passado, um novo problema surgiu com a indústria de semicondutores e microchips, cuja demanda se expandiu desde 2020. Não apenas a maior parte das fábricas se encontravam em regiões da China sujeitas a fechamento em razão da política de covid zero do país, como a concentração desse setor na Ásia escancarou a fragilidade de indústrias em outras partes do mundo.

“Fortalecer as cadeias críticas exige uma política pública, olhando detalhadamente o quadro das cadeias no mundo e atuando onde estão as vulnerabilidades. Não se pode ficar 100% dependente de importação nesses setores. Foi o que os países desenvolvidos perceberam com a crise dos chips, levando a novas políticas industriais, na Europa e nos EUA”, aponta Rocha.

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