Sem dinheiro e organização, pequeno acionista amarga prejuízo em recuperação judicial

Tido como o elo mais frágil da cadeia de investimento das grandes empresas, pequeno investidor tem pouco a fazer durante o processo de reestruturação das grandes empresas

Gleison Lima é militar há 25 anos. Desde 2002, divide a rotina profissional entre o quartel, onde serve, e o escritório, em casa, na cidade de Fortaleza. Lá, em seu escritório, opera no mercado financeiro como um pequeno investidor.

Formado em administração de empresas, ele analisa o balanço das companhias, compra ações. Aliás, costuma manter as posições por um longo período, numa estratégia que os especialistas chamam de “buy and hold.

Começou comprando Vale (VALE3) e Petrobras (PETR3 e PETR4). Até que em 2019 decidiu arriscar. Assim, adquiriu o primeiro lote de OIBR3, os papéis da companhia telefônica Oi, que estava em processo de recuperação judicial desde junho de 2016.

‘Cheguei a comprar R$ 300 mil de Oi (OIBR3)’

“Analisei e li as declarações do CEO. Entendi que a companhia estava ‘barata’ e era grande demais para quebrar”, conta Gleison Lima. Além disso, a partir desse período começou a postar vídeos com dicas de análise de empresas em seu perfil nas redes sociais, o GL Flix. Principalmente da Oi (OIBR3).

“Cheguei a comprar R$ 300 mil de Oi e não vendi nas altas, nem mesmo quando terminou o processo da recuperação judicial e as ações subiram 50%”, conta Lima. Ele, portanto, faz referência ao fim daquele processo, decretado pela Justiça em dezembro de 2022.

Essa teria sido uma janela para a obtenção de lucro. Algumas semanas depois, já em 2023, a empresa protocolou um novo pedido de recuperação judicial, aceito pela Justiça.

“Não tinha como saber. A empresa informou que estava saudável, mostrou isso para os investidores. Eu acreditei”, afirma Lima.

Ele vendeu todos os papéis da empresa pouco depois, contabilizando um prejuízo de R$ 200 mil. “Vendi tudo por R$ 100 mil. Não dava para acreditar mais [na Oi]”, conta. “A vida de investidor pequeno, infelizmente, é assim”, ele lamenta.

Recuperação judicial pode acabar em prejuízo

A história do militar cearense ilustra bem o desafio de um acionista minoritário quando a companhia da qual ele se torna sócio entra com o pedido de recuperação judicial.

Criada em 2005 como uma forma de proteger a empresa e evitar que quebre, o processo de recuperação judicial suspende o pagamento das dívidas e dá ao negócio em dificuldades um prazo de carência para que possa negociar um plano de pagamento junto aos credores.

Os acionistas integram o processo na posição de sócios, participando das tomadas de decisões. Isso em teoria. Porque, na prática, os especialistas afirmam que somente os grandes investidores, donos de parcelas majoritárias dos papéis na bolsa da valores (fundos de investimento, bancos e, em muitos casos, os próprio fundadores da empresa) são os que se sentam na mesa de negociação e ditam o rumo da recuperação financeira.

“O pequeno investidor não tem muito o que fazer”, segundo o advogado Luiz Antonio Donelli, do escritório Donelli Abreu Sodré. Especializado em direito empresarial e societário, ele conta que se a empresa for mal a ponto de entrar em recuperação, os minoritários podem, no máximo, se unir para mover um processo pedindo responsabilização contra a empresa, seus executivos ou controladores.

“Mas isso, além de ser raro, nunca deu certo no Brasil”, diz Dolelli. “Nunca um investidor brasileiro conseguiu uma reparação financeira por perder dinheiro com a desvalorização da ação. O processo é caro demais e, por serem ainda poucos os investidores na bolsa, eles não conseguem se organizar adequadamente para isso”, afirma.

O caso da recuperação judicial da OGX, de Eike Batista

O primeiro caso em que um grupo de minoritários se reuniu para processar uma empresa em recuperação judicial foi há dez anos, e teve como alvo a OGX, de Eike Batista. A petroleira fluminense caiu em desgraça ao divulgar perspectivas exageradamente otimistas sobre reservas de petróleo. Seus papéis derreteram e os investidores ficaram no prejuízo.

O economista Aurélio Valporto foi um dos que viu seu dinheiro virar poeira. Ele tinha sido operador de bolsa nos anos 1980, no antigo pregão do Rio de Janeiro. Comprou ações da OGX após recomendação do seu irmão, gestor de um fundo que tinha acabado de chegar ao Brasil após estudar e fazer carreira em Wall Street. “Quando a gente descobriu que a OGX não tinha nada, foi um choque”, lembra.

Valporto ficou com o prejuízo e o irmão, com a certeza de que não deveria ter retornado, aliás. “Ele falou que nos Estados Unidos esse cara (Eike) nunca mais sairia da cadeia”, conta, “e deixou o Brasil”. “Hoje ele tem uma quitanda em Portugal.”

Valporto insistiu no mercado, só que agora como ativista. Montou uma associação de investidores, a Abradin, reuniu outros 100 acionistas frustrados com o prejuízo da OGX e protocolou uma ação civil pública contra Eike Batista.

No entanto, “eu brigo até hoje. O processo foi arquivado em 2014, reaberto após decisão em segunda instância e, agora, esperamos uma definição do STJ, em Brasília”.

O caso Americanas

Valporto não chega a reconhecer, mas entende que ter ingressado na Justiça comum não foi a melhor estratégia para iniciar a sua disputa contra Eike Batista.

No Brasil, segundo as regras do Novo Mercado, segmentação adotada pelas empresas listadas na bolsa de valores, o espaço para esse tipo de processo é o da Câmara de Arbitragem da B3, em São Paulo, um tribunal privado, onde o processo tende a correr de forma mais rápida por envolver árbitros especializados.

“O problema é que eu não tinha dinheiro para entrar com uma ação na B3”, conta o ex-acionista da OGX. “É preciso reunir um número muito grande de investidores”. Segundo os advogados consultados pela reportagem, uma arbitragem não sai por menos de R$ 10 milhões.

Um outro grupo de investidores, no entanto, parece ter reunido quórum suficiente para iniciar uma ação de arbitragem na bolsa, tendo como alvo a Americanas.

A rede varejista pegou os seus acionistas de surpresa em janeiro, quando o recém-empossado CEO Sérgio Rial alertou para uma possível fraude contábil na casa dos bilhões. A AMER3, ação da companhia, que estava sendo negociada a R$ 11,99, desceu a R$ 0,80 no final de janeiro e, hoje, em recuperação judicial, é negociada na casa de R$ 1,10.

‘Americanas pode mudar história’

“Esse é um caso emblemático, a própria empresa reconhece que houve fraude, acho que temos chance de ganhar pela primeira vez e podemos mudar essa história do acionista minoritário não conseguir responsabilizar uma empresa”, afirma Eduardo Silva, do Instituto Empresa, uma associação de acionistas minoritários.

A Americanas assumiu oficialmente, em fato relevante divulgado em junho, que houve fraude bilionária nos resultados da companhia. Por fim, a empresa contratou uma auditoria externa e o relatório apontou que as demonstrações financeiras da empresa vinham sendo fraudadas pela antiga diretoria da companhia, que atuou até o fim do ano passado.

Class Action: Recuperação Judicial contra a Petrobras, nos EUA, é inspiração

O advogado responsável pelo caso da Americanas, Adilson Bolico, do escritório Mortari Bolico, tem se inspirado na justiça americana para conduzir a ação. Em especial, ele mira o caso da Petrobras.

Em 2018, graças a um instrumento jurídico chamado Class Action, a petroleira brasileira ressarciu os investidores americanos em US$ 2,95 bilhões pelas perdas provocadas pelo envolvimento nos desvios revelados pela operação Lava Jato, da Polícia Federal.

Recuperação judicial: O que pesa sobre o pequeno investidor é que, apesar de existirem leis que permitam algum tipo de pressão e ressarcimento financeiro em caso de um erro ou irregularidade comprovada por parte da empresa, ou seus envolvidos, no Brasil nunca um grupo de minoritários conseguiu sucesso nesse tipo de processo
Adilson Bolico: advogado do escritório Mortaria Bolico. Foto: Divulgação/Empresa

“Aqui, a gente tem o Artigo 246 da Lei das S.A., que permite uma arbitragem contra os controladores da empresa caso a companhia esteja sendo prejudicada por eles”, afirma Bólico. “É o que mais se aproxima da class action dos Estados”, diz ele, que também ingressou com uma segunda arbitragem contra a Americanas, pedindo responsabilização civil. No total, as indenizações podem chegar a R$ 500 milhões.

Especialista em processos de recuperação judicial, Giuliano Colombo, sócio do escritório Pinheiro Neto, entende que o sucesso dessas ações vai depender, basicamente, das circunstâncias. E, principalmente, do tamanho do bolso dos envolvidos – tanto os que propõem a ação quanto os que podem ser responsabilizados pelo problema.

“É sempre um processo custoso, demorado e de resultado incerto”, diz. “Dependendo de quem for a contraparte, a sua capacidade de efetivamente receber algo, na prática, e não só a sentença no papel, pode ser mais ou menos desafiadora. Então, é difícil organizar um grupo com massa crítica suficiente para avançar numa ação como essa”, afirma.

Em contrapartida, tanto a Oi quanto a Americanas disseram que não iriam se pronunciar sobre as movimentações dos investidores em torno de ações coletivas.

Recorde de recuperações judiciais

A recuperação judicial foi criada em 2005 como um conjunto de regras corporativas batizado de Lei das Falências. É um instrumento usado para evitar que uma empresa quebre ao entrar em uma crise financeira. A recuperação judicial é geralmente associada à falência, mas elas não são sinônimos, já que existem diferenças entre elas.

Nos primeiros seis meses de 2023, o número de pedidos de recuperação judicial no Brasil chegou a 593, um avanço de 52,1% em relação à igual período de 2022. É o maior volume em três anos, segundo levantamento do Serasa Experian.

Em seguida, o período foi marcado por processos com dívidas bilionárias, por exemplo, como aconteceu com Americanas, Light e Oi. Isso para ficar apenas com as companhias de capital aberto, com débitos que se aproximam de R$ 100 bilhões.

Aliás, nesses quase 20 anos de lei, apesar de estabelecer um período de até dois anos para iniciar e concluir o processo, a verdade é que apenas 7% das companhias conseguem cumprir esse prazo. A maioria das recuperações se arrasta por anos, enquanto outra parte significativa dos negócios quebra no meio do caminho.

Um levantamento do escritório de advocacia Marcondes Machado listou as 20 maiores recuperações judiciais da história no Brasil. Dessas, 12 continuam em curso, sendo a mais velha da lista a Wind Power Energia, de 2014.

Duas empresas faliram, a Schahin, que devia R$ 5,85 bilhões, e a Tonon, que devia R$ 2,8 bilhões. E das seis que concluíram o processo, uma retornou, o já falado caso da Oi, e as outras duas são as que causam calafrios em investidores: a OGX e OSX, que integravam a holding EBX, de Eike Batista.

Grupo seleto

Existem algumas exceções à regra. A Eneva e o Grupo Rede, ambas do setor de energia, são dois pontos fora da curva. Em prazos diferentes, as duas companhias conseguiram cumprir as obrigações previstas no plano de recuperação e foram chanceladas pela Justiça para seguir em frente.

A Eneva é a antiga MPX, outra criada por Eike Batista. E foi comprada pelo BTG, que hoje tem pouco mais de 20% do capital, e um bloco de fundos, que hoje controlam a companha com mais de 35% do capital, formado pela Cambuhy, empresa de investimentos de Pedro Moreira Salles, além da Atmos, Dynamo e da Velt.

Eternit: houve recuperação judicial?

Bem como a Eternit, que ainda não finalizou o processo, mas já é tratada pelo mercado como se tivesse saído da recuperação judicial.

A empresa, também com base acionária muito pulverizada na bolsa – o megainvestidor Luiz Barsi tem uma das maiores porções com pouco mais de 5% das ações -, teve seu pedido de recuperação judicial homologado em 2018, como consequência das restrições do uso do amianto.

O amianto era o insumo base para a confecção das telhas da empresa, mas foi proibido no Brasil. Outra fonte importante de receita da empresa, uma mina de amianto crisoltila na cidade de Minaçu, em Goiás, também se tornou alvo de uma disputa jurídica, que impedia a extração da matéria-prima.

Hoje, a empresa conseguiu manter a extração, que reponde por pouco mais de 40% da margem de lucro bruto. Mas destina a produção integralmente para o mercado internacional, basicamente o sudeste asiático, onde a Índia é a principal compradora, e o continente africano.

A empresa também passou a produzir telhas a partir de fibra de polipropileno. Mais recentemente, começou a produzir telhas fotovoltaicas, para a geração de energia solar.

“A nossa expectativa é, de fato, sair da recuperação judicial nesse segundo semestre, isso está mais do que na hora”, diz Vitor Mallmann, diretor de relações com investidores da Eternit.