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Por que fundos americanos estão investindo em clubes de futebol?
Não foi o som de canhões, mas o silêncio das pessoas isoladas em casa, no meio da pandemia, que despertou em grandes investidores a atenção para uma oportunidade de ter mais lucros e mesmo redefinir o jogo dos negócios em esportes e, em um contexto mais amplo, do entretenimento, se o mundo, enfim, não acabasse.
Isso porque eles observaram que a audiência de TV, em especial, do futebol, ganhou ainda mais tração, evidenciando a importância fundamental desse “produto” para reter a atenção dos consumidores e colocá-los em contato com as marcas de consumo.
Assim, ao som dos violinos que voltaram a tocar já em meados do ano passado, com a vacinação em massa e a queda das mortes pela covid-19, a Premier League inglesa, a mais valiosa liga de futebol hoje, assinou um contrato recorde superior a 10 bilhões de libras (perto de R$ 60 bilhões) pelos direitos de transmissão de TV por três anos, a partir da temporada 2022/2023.
Chama a atenção que, ao entrar em sua quarta década, a liga inglesa fechou, pela primeira vez, valores para transmissão no exterior maiores do que no próprio país.
Foi nesse contexto que mais e mais investidores individuais e fundos de investimento americanos, principalmente, aumentaram suas apostas na aquisição de clubes de futebol como parte de suas estratégias de ampliação do volume de negócios em um mercado – diferentemente do que alguns analistas menos otimistas têm professado – cada vez mais globalizado.
Esse foi um dos principais tópicos de debate entre os participantes do World Football Summit (WFS), maior encontro global para negócios do futebol, realizado no fim de setembro, em Sevilha, na Espanha.
Os investimentos nas ligas europeias
De acordo com o relatório da Deloitte “Revisão Anual das Finanças do Futebol 2022”, está acontecendo um boom de investimentos nas cinco principais ligas europeias. Em 2021, foram 15 investimentos em clubes dessas ligas, ante 12 na soma de 2020 e 2019. Desses investimentos, 87% foram realizados por bilionários ou firmas de private equity, sendo dois terços do total com capital oriundo dos EUA.
O negócio com o maior valor já pago por um clube de futebol foi realizado neste ano, quando o bilionário americano Todd Boehly comprou o Chelsea, da Inglaterra, por 4,25 bilhões de libras. Além disso, o fundo de investimento Redbird, dos EUA, comprou o Milan, da Itália, por € 1,2 bilhão. Os negócios envolvendo compra e venda de clubes não param de ser anunciados.
O Bournemouth, que acaba de subir para a Premier League, teria acordo para ser adquirido pelo bilionário texano Bill Foley. Dono do Vegas Golden Knights, franquia de hóquei no gelo da NHL, ele estaria disposto a pagar 120 milhões de libras pelo negócio. Já o Everton estaria na mira de um sobrinho de George Soros, Jeffrey Soros, produtor de cinema em Hollywood que captou US$ 253 milhões em uma SPAC (sociedade de propósito específico, na sigla em inglês), e conta com a consultoria de Keith Harris, ex-diretor do clube.
Mesmo em ligas secundárias, como a de Portugal, a tônica é a mesma. O grupo Qatar Sports Investments, que detém o Paris Saint-Germain, acaba de assinar um acordo para aquisição de 21,67% do capital social do Braga, de Portugal. “Todo mundo também está falando do Brasil”, afirmou no WFS o consultor americano Jordan Gardner, que foi coproprietário do FC Helsingor, na Dinamarca.
Ele aponta o alto preço para se começar a investir em esportes na América do Norte – “as últimas franquias estão sendo avaliadas entre US$ 400 e US$ 500 milhões” – e a alta do dólar diante de outras moedas como a libra e o euro como uma das explicações para o interesse dos americanos.
O que são os multiclubes
Diante desses fatores e da tendência atual de os investidores formarem grupos com diversos clubes – os multiclubes – e, assim, acessarem, por estratégias diversas, diferentes mercados, os clubes brasileiros e mesmo a formação de uma liga de clubes que retire das mãos da CBF a organização do campeonato nacional entraram de vez no radar dos investidores.
Javier Sobrino, sócio da Aser Ventures, que é dona do Leeds United, clube da Premier League, enxerga que a forma mais inteligente de formar os multiclubes é investir em diferentes mercados que não tenham relação entre si. Ele cita o brasileiro como um dos mais atraentes: “Acredito que o valor dos clubes vai subir”.
O relatório da Deloitte já registra a existência de mais de 70 multiclubes, mais do que o dobro de cinco anos atrás, quando havia 28. Nove dos 20 clubes da Premier League operam nesse modelo. Para Sobrino, que diz ter ajudado a fazer o mesmo no Barça Innovation Hub, onde trabalhava, em 2017, a lógica por trás dessa estratégia é “usar a estrutura de clubes como um ecossistema para inovação e investimentos em companhias ligadas a esportes”: “Você fica numa posição privilegiada para detectar outros tipos de investimentos que estão relacionados a esportes, entretenimento e saúde, mas que não são próprios do esporte”.
Ele afirma ainda que provavelmente haverá mais capital europeu também nesse movimento de investimentos no futebol, “mesmo de corporate venture”, ou investimento de risco feito por grandes empresas.
“Penso que há muitos interesses em movimento agora na indústria. Estamos testemunhando esses investimentos dos Estados Unidos, mas há outros investidores, de outras perspectivas estratégicas, que vão entrar no setor nos anos que virão”.
Como funcionam as sinergias
A questão das sinergias que podem ser criadas, ele destaca, não diz respeito somente a transferências de jogadores. Esse também é o pensamento do CEO do Sevilha, José María Cruz. Ele prevê que, cada vez mais, clubes de futebol serão parte de grupos que também têm interesse em outros tipos de entretenimento, como cinema ou games.
No entanto, o Sevilha está no início de um projeto que aborda o modelo de multiclubes de uma forma diferente, a partir da proposta de uma comunidade de clubes, sem envolver aquisições.
“Não é essencial para nós esse movimento dos jogadores de um país para outro. A questão é criar uma comunidade em que sejamos capazes de compartilhar dados, tecnologia, o interesse dos fãs. Esse tipo de coisas”, diz Cruz. “Estamos fazendo isso. Começamos com uma parceria na Índia e esperamos que, nos próximos dois a três anos, seremos capazes de criar o mesmo esquema em quatro ou cinco países.”
Do ponto de vista de quem está efetivamente comprador, os dólares trazem consigo o jeitinho americano.
Para Jordan Gardner, muitos grupos do país são insensíveis à cultura local e chegam com uma mentalidade de esportes americanos, com a experiência de quem possui ou dirige um clube da NBA ou da Major League Baseball e que isso vai automaticamente se traduzir para o futebol europeu: “Penso que muita gente subestima as peculiaridades do futebol, desde os rebaixamentos à venda de jogadores”.
Foi o caso da Superliga Europeia, inspirada nas ligas profissionais americanas e que caiu como um meteoro em um domingo, 18 de abril de 2021.
Ainda que o presidente da Superliga e do Real Madrid, Florentino Perez, e os presidentes do Barcelona e da Juventus estejam voltando a defender o projeto, dos 12 clubes fundadores, os seis ingleses desistiram nas primeiras 48 horas.
“Foi impressionante a rapidez com que os fãs e a mídia se voltaram contra eles e inverteram o rumo por causa desta percepção de que ‘estamos apenas tentando ganhar um dólar extra com isto’”, analisa Tyler Brewster, diretor da EY que está à frente de muitas das estratégias da consultoria para o setor de negócios do esporte.
Torcedor e detentor de bilhetes para toda a temporada do Liverpool, Simon Howard é um sócio da Deloitte baseado há 16 anos em Madri e que ajuda investidores interessados na indústria do futebol. Ele chama a atenção para o fato de Real Madrid e Barcelona, que são controlados pelos sócios, defenderem a Superliga, mas “por razões muito diferentes dos proprietários americanos”.
“Esses ordenam o uso de um modelo americano em que não há rebaixamento, há tetos salariais. Então, é bem mais fácil ganhar dinheiro. Mas você não pode fazer isso na Europa. Real Madrid e Barcelona queriam entrar no grupo da Superliga por causa das fraquezas da sua própria liga. Se você tem Getafe e Villarreal numa segunda à noite, não conseguirá muita gente para assistir.
Enquanto se tiver um jogo padrão similar na Inglaterra, como Crystal Palace e Wolverhampton, ainda consegue muita audiência na TV e o estádio lotado. É por isso que muitos investidores americanos têm vindo e dizem que há uma grande diferença entre a Premier League e o resto das ligas na Europa, por causa das receitas dos direitos de transmissão. Acho que eles cometeram um erro pensando que a Superliga pode funcionar, porque os fãs na Inglaterra nunca vão aceitar um acordo tipo a Superliga”.
O convite inicial da Superliga já havia sido recusado por clubes como PSG e Bayern de Munique. Aliás, a Alemanha é um mercado especial, que só neste ano está voltando a se abrir para investidores internacionais.
Como noticiou o “Financial Times”, a liga alemã teve “conversas preliminares” em setembro com fundos de private equity como Advent, Blackstone, Bridgepoint, CVC e KKR. A ideia seria focar na venda dos direitos de transmissão, uma vez que a maior parte dos clubes alemães ainda pertence a seus sócios, de acordo com as leis do país.
Com relação à liga francesa, há 30 anos um clube do país não é campeão da principal competição do continente. O último foi o Olympique de Marselha.
Na verdade, desde que a Inter de Milão venceu a Liga dos Campeões da Europa na temporada 2009/2010, os títulos foram todos para Espanha, Alemanha ou Inglaterra. Coincidentemente, o gráfico de rentabilidade das cinco maiores ligas revela que a liga francesa só tem dado prejuízos, enquanto a italiana voltou a dar, nos últimos anos. Desde 2003/2004, quando o Porto foi campeão, um clube de fora das cinco principais ligas não é campeão da Europa.
Uma das principais preocupações que os participantes do WFS, em Sevilha, observam hoje no mercado é com a sustentabilidade dos investimentos. Isso pode se traduzir desde a preocupação com o fair play financeiro até com o jogo limpo no campo dos negócios desse esporte.
Simon Howard acredita que o caminho para os investidores evitarem esses problemas seja analisarem a fundo a operação e as práticas de um clube ou uma liga antes de fazer o investimento.
“É preciso ser muito cuidadoso e particularmente um investidor de private equity dos Estados Unidos não pode correr muitos riscos de investir onde ocorra suborno ou práticas não éticas, onde os impostos não estejam sendo pagos de maneira apropriada. Então, a fase de due dilligence para entender o que precisa ser feito é realmente crucial”, explica.
No que diz respeito mais objetivamente à sustentabilidade das finanças, a partir desta temporada passam a valer as novas regras financeiras da Uefa, em substituição ao sistema de fair play financeiro instituído em 2010.
Dentre as principais novidades estão a regra de custo da equipe, segundo a qual os clubes só poderão gastar até 70% da sua receita com transferências de jogadores, salários e comissões a agentes. As penas para quem descumprir vão de aviso, multa e dedução de pontos, até retenção de receitas, proibição de inscrição de novos jogadores, desclassificação de competições e mesmo a retirada de títulos.
Javier Sobrino avalia que a Premier League, no momento, “está muito cara”. “Eu a compararia com a NBA. São os dois tipos de competição em que as marcas são tão fortes que os proprietários estão dispostos e podem pagar mais. O que é preciso ver depois é o retorno dos investimentos. Alguns não estão investindo pelo retorno financeiro, mas por outras razões. Da minha perspectiva, o grupo investiu no Leeds há algum tempo. Nós compramos um clube na segunda divisão, em que fomos capazes de administrá-lo de maneira correta, para que ele tenha sido promovido. Agora nosso objetivo é consolidar na Premier League. Então foi um tipo diferente de abordagem de quem está investindo agora. Definitivamente, investir na Premier League está ficando bem difícil.”
Ainda assim, Jordan Gardner cita seriados de TV como “Ted Lasso” ou “Bem-Vindos ao Wrexham”, documentário sobre o clube do ator Ryan Reynolds, no País de Gales, para mostrar como o interesse pelo futebol nunca esteve tão alto: “O interesse dos Estados Unidos só vai crescer. Se pensar em Premier League, La Liga [Espanha], sempre haverá interessados nesses clubes”.
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