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Desmatamento faz com que Brasil jogue fora seu futuro, diz Candido Bracher, ex-presidente do Itaú
Empresas citadas na reportagem:
“Isso é o paroxismo da desonestidade e da loucura”, diz Candido Botelho Bracher, que há um ano deixou a presidência do maior banco da América Latina, o Itaú Unibanco, e tem se dedicado, entre outras atividades, a estudar e escrever sobre crise climática e questões ambientais. Ele se refere à justificativa do PL 191/2020 que abre a exploração de terras indígenas para petróleo, gás, mineração, pequenas e grandes hidrelétricas e até ao cultivo de transgênicos, ganhou regime de urgência para votação na Câmara e vem sendo defendido pela base governista como a solução para a crise dos fertilizantes provocada pela guerra na Ucrânia. “Claramente é uma desculpa. Uma má desculpa”, diz.
“A grande riqueza do Brasil, no próximo ciclo de baixo carbono, é a sua possibilidade de capturar carbono da atmosfera através da preservação de suas florestas e da recuperação das áreas degradadas. E as terras indígenas são as mais preservadas, é onde há menos desmatamento”, segue. “Está se indo atingir justamente aqueles lugares onde a política de preservação tem tido êxito. É uma insanidade”.
Nesta entrevista concedida ao Valor em dois momentos, antes e depois do ataque russo à Ucrânia, Bracher falou do tema que o preocupa há anos – a crise climática. “O perigo do aquecimento global não diminuiu nada porque surgiu um perigo mais imediato”, diz, referindo-se à guerra. E compara: “Para a guerra na Ucrânia, o Brasil pode fazer pouco. Mas para o aquecimento global, o Brasil é peça central.”
O executivo, que junto com seus pares no Santander e Bradesco criou o Plano Amazônia para ajudar a promover a economia de baixo carbono, diz que ao desmatar o Brasil joga fora sua maior riqueza, sua credibilidade e seu futuro. “Se o preço de transgredir é nenhum, aquele que cumpre o desejado perde a competição para o outro. Aplicar a lei é fundamental e o Estado brasileiro está falhando terrivelmente nisso”, diz Bracher, que hoje integra os conselhos de administração do Itaú Unibanco, da Mastercard e do Instituto Acaia. Aqui ele fala dos impactos da guerra para o Brasil, dos desafios das práticas ESG para as empresas e da transição do setor financeiro entre outros temas. A seguir, alguns trechos da entrevista:
Como o senhor está vendo a invasão da Ucrânia pela Rússia?
Assisto à guerra com profunda tristeza e indignação, além de um sentimento de impotência diante de eventos que podem alterar o curso da história. Se há algo de positivo a se observar é a intensidade da reação do mundo, diante da percepção de injustiça e do risco que a agressão russa apresenta. Espero que o mundo mostre a mesma determinação para combater o aquecimento global, cujas consequências para a humanidade podem ser tão ou mais danosas que as da guerra.
Quais poderão ser os impactos para o Brasil?
Nenhuma guerra é boa. Toda guerra traz empobrecimento ao mundo e só provoca destruição. As sanções machucam dos dois lados. Machucam mais a Rússia, mas quem impõe a sanção também sai machucado. O mundo inteiro crescerá menos. Ainda está muito incerto qual será a duração e a intensidade da guerra, mas já dá para ver que haverá uma perda grande. Ouvi o historiador Niall Ferguson (escocês baseado nos Estados Unidos) estimando a queda do PIB da Rússia este ano em 30%, o que é um negócio extraordinário. Só para comparar, o PIB do Brasil, em 2020, caiu 4%. Há os que perdem mais e os que perdem menos.
Qual é o caso do Brasil?
Acho que é dos que perde menos, porque é produtor de commodities e elas se valorizam. Não somos mais importadores de petróleo. Mas se o preço das commodities se valoriza, a produção pode cair. Teremos mais dificuldades de importar fertilizantes e nossa produção pode ser menor. O aumento do preço do petróleo e das commodities reforça as tendências inflacionárias no Brasil. O reforço da inflação pode fazer com que as taxas de juros tenham que ficar altas por mais tempo e isso diminui o crescimento. A guerra é ruim e ponto.
Abrir a exploração de minérios em terras indígenas, como está no PL 191 que tramita na Câmara, é uma desculpa para escassez de fertilizantes que a guerra traz?
Isso é o paroxismo da desonestidade e da loucura. Não há evidências de fósforo ou potássio em terras indígenas na Amazônia, então, claramente, é uma desculpa. Uma má desculpa. A grande riqueza do Brasil, no próximo ciclo de baixo carbono, é a sua possibilidade de capturar carbono da atmosfera através da preservação de suas florestas e da recuperação das áreas degradadas. E as terras indígenas são as mais preservadas. Quando a gente vê onde mais há desmatamento é em terras públicas não destinadas. Nas terras indígenas é onde há menos desmatamento. Está se indo atingir justamente aqueles lugares onde a política de preservação tem tido êxito. É uma insanidade.
Como o senhor vê a agenda da mudança climática agora, com a guerra na Ucrânia?
O perigo do aquecimento global não diminuiu nada porque surgiu um perigo mais imediato. O fato de ter surgido uma ameaça mais imediata não atenua a dor nem as consequências da outra. Nós não podemos nos despreocupar da questão ambiental porque surgiu um medo maior. Isso cria um diversionismo e as atenções se voltam para isso, o que é natural. Mas não podemos deixar que diminua a preocupação com a questão ambiental que, ao contrário, já está muito aquém do necessário para contermos o perigo. Há algo interessante nisso.
O quê?
A capacidade de os países abrirem mão de interesses imediatos, de curto prazo, por um objetivo coletivo. Há poucos precedentes disso na história do mundo. Mas agora, na crise da covid, vimos o mundo cooperando bastante. Não foi uma cooperação absoluta, não se deu vacina para todos os países, mas houve muito mais cooperação. E agora, na guerra, estamos vendo grande cooperação nas sanções. Mas covid e guerra têm duas características que a mudança climática infelizmente não tem -digo infelizmente no sentido que são duas características que ajudam a galvanizar apoio. A primeira é que é uma coisa imediata: a covid está matando hoje, a guerra está matando hoje. É algo de curto prazo enquanto o aquecimento global se dá gradualmente.
E a segunda coisa?
As mortes da guerra e da covid são claramente atribuíveis. Fulano morreu de covid, fulano morreu de um estilhaço de granada. Quando vemos os mortos da fome porque uma safra quebrou por causa do aquecimento global, ou os mortos de uma inundação, ninguém diz que estas pessoas morreram de aquecimento global. A causa é meio difusa. Essas duas características do aquecimento global -ser gradual, embora certo e o fato de o dano que ele causa não lhe ser claramente atribuído, dificulta que se forme esta galvanização que tivemos na covid e estamos tendo agora na guerra. O mundo precisa acordar para isso.
Há outro ponto?
Sim. Na guerra, com todo o susto que a gente toma e a tristeza, há algum conforto em se ter uma situação em que você não tem nenhuma responsabilidade, como brasileiros. Mas no aquecimento global a situação é diferente: podemos fazer algo. Para a guerra na Ucrânia, o Brasil pode fazer pouco. Mas para o aquecimento global, o Brasil é peça central.
O senhor fez um paralelo em um de seus artigos na Folha de S.Paulo entre o impacto inflacionário do aquecimento global na economia mundial e o choque do preço do petróleo em 1973. Diz que estamos queimando a nossa riqueza e apresentou um cálculo: se um hectare de floresta em recomposição é capaz de capturar 15 toneladas de carbono ao ano, um incêndio em um hectare de floresta emite 500 toneladas de carbono na atmosfera. O Brasil está queimando o futuro?
Há um recurso escasso no mundo que é a capacidade da atmosfera de comportar gases de efeito estufa. Até hoje nunca se cobrou pelo uso deste recurso escasso, mas agora tornou-se claro que o meio ambiente não suportará a continuidade das emissões no ritmo atual. Será então necessário cobrar pelas emissões, ao mesmo tempo em que se remunera a captura, que é o oposto da emissão. Esta cobrança é o que, a meu ver, se assemelha ao choque do petróleo de 1973. E agora creio que subitamente o mundo terá que pagar muito por algo que antes era muito barato -ou de graça, no caso das emissões. Mas o mundo se adaptou ao choque do petróleo em 73 e poderá se adaptar à cobrança pelas emissões de carbono.
O senhor diz que o Brasil tem demonstrado miopia inacreditável, e não apenas o Executivo.
A miopia dos nossos governantes, inclusive o Legislativo que apoia projetos prejudiciais ao ambiente, está em não perceber que este “choque do carbono” pode beneficiar o Brasil, da mesma forma que o choque do petróleo beneficiou os árabes, uma vez que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo e um potencial inigualável de captura de carbono da atmosfera através da recuperação das áreas degradadas e da preservação de suas florestas. O Brasil tem um potencial gigantesco de sequestrar carbono e de ter baixas emissões de gases-estufa, também. Mas ao descuidarmos do ambiente como temos feito, estamos queimando nossa riqueza, nosso futuro e nossa credibilidade enquanto nação.
O que temos que fazer?
Há o trabalho de se manter a floresta em pé, os serviços florestais. Isso também será remunerado e estruturado globalmente. Já existem muitas empresas voluntariamente compensando as suas emissões e comprando créditos de carbono. Aqui o potencial é muito grande. O mundo terá esse custo adicional. Isso é inexorável.
Inexorável?
É um custo que teremos que ter porque a gente precisa viver. Não se pode admitir a possibilidade de a temperatura subir mais do que 1,5°C neste século. É aquela história: de quem você compra um carro usado? Você compra um carro usado de alguém em que você confia. Nós precisamos ser um vendedor confiável de serviços florestais e um vendedor confiável de créditos de carbono. Quem é o vendedor confiável? É aquele que, de fato, protegerá a floresta, não vai derrubar, não vai queimar, e que irá fazer a recuperação. Credibilidade é uma coisa que se demora para construir e se perde muito rapidamente. E nós estamos perdendo a nossa. Nossa credibilidade como capazes de administrar o patrimônio natural que temos. Estamos perdendo essa credibilidade muito rapidamente por uma miopia absoluta. É tão estúpido, tão insensato.
Como o senhor vê a transformação no setor financeiro?
A velocidade da mudança aumentou enormemente na nossa época. Passamos a conviver com a transformação como algo contínuo e mudanças sempre geram desconforto, produzem ansiedade. Precisamos fazer da transformação a nossa zona de conforto. Esse é o desafio.
E no setor bancário?
Vemos a grande evolução que os meios de pagamento vêm sofrendo -as criptomoedas, todas essas startups, uma série de coisas para se compreender. Ninguém é capaz de dizer: “Ah, o mercado irá evoluir nessa direção”. Há uma série de direções possíveis. Mas algumas coisas permanecem imutáveis -a ética com a qual se deve conduzir os negócios. Outro ponto é a atenção absoluta na necessidade do cliente. Isso até explica, em parte, o êxito de várias startups. Como têm atenção concentrada em um produto específico, têm sido capazes de oferecer uma experiência aos clientes nesses produtos muito melhor do que os bancos universais, que são generalistas. Os bancos, que já têm a capacidade de ter oferta ampla de produtos financeiros correlacionados, precisam evoluir na qualidade da experiência do cliente.
E a transformação do mundo financeiro frente à mudança climática? Chegará o momento em que os bancos deixarão de financiar combustíveis fósseis?
Não tenho dúvida de que irá chegar esse momento. Não será amanhã, até porque há a responsabilidade de se fazer uma transição viável. Hoje na Europa, que lidera esse processo de transformação no mundo, há alguns países querem o que se chama de taxonomia do ESG. O que é energia limpa? É preciso definir. Se se deixar o termo vago, cabe tudo. Bem, alguns países europeus pretendem que energia nuclear e gás sejam considerados energias limpas ao menos durante a transição. E outros dizem: gás é energia limpa? A tarefa é complexa. Os bancos estão assumindo compromissos de reduzir a quantidade de emissões na sua carteira de crédito. O trabalho de se obter transparência é grande. Para que haja transparência é preciso ter uma taxonomia clara, saber exatamente o que é energia suja, ser capaz de medir quanto cada empresa está emitindo. Há muito a ser feito, mas está acontecendo. O carvão, por exemplo, já está com os dias contados. Não se pode demorar muito porque a natureza não vai esperar. E há outra transformação ocorrendo no mundo que não é nada boa.
Qual é?
O sentido de alerta para a transformação que o aquecimento global exige, a consciência que o mundo está tomando do desafio é muito positiva. A coisa ruim que está acontecendo no mundo é a polarização política, que, acredito, tem dois motores principais. Um é a crescente desigualdade de riqueza no mundo que cria um mal-estar na sociedade. Esse é um fator. E esse mal-estar é aumentado e radicalizado pelo fenômeno das redes sociais que faz com que as pessoas se comuniquem apenas dentro dos seus grupos onde há pessoas que pensam exatamente como elas. E o bacana é você ser radical. O conciliador é um boboca. Ganha quem tem o discurso mais radical possível, é isso que vende. . Essa polarização é muito perigosa.
Nas eleições do Peru e Chile, o centro acabou sumindo e ficaram os dois extremos. Podemos viver esta situação no Brasil este ano?
Quando falo extremos penso nos extremos do espectro eleitoral, não no espectro ideológico. É uma diferenciação importante de se fazer. No Brasil, acho que a direita está muito mais distante do centro do que a esquerda. Mas esse é um risco que nós corremos. Tenho muita esperança que tenhamos uma alternativa viável de centro também na cédula eleitoral.
O tsunami ESG veio para ficar?
Acho que ESG -e governança, para mim, é essencialmente transparência-, é uma tendência muito forte que vejo se aperfeiçoando. Claro, como em todo grande movimento existem aqueles que entram na onda. Mas aqui o que é importante é ser capaz de medir corretamente o que está sendo feito. A sociedade tem o seu ritmo, mas acho que é um movimento que não terá volta atrás. E quando falo em oportunidade perdida no Brasil, creio que está sendo perdida por falta de interesse em aplicar a lei e é o que compromete a nossa credibilidade. Se o preço de transgredir é nenhum, aquele que cumpre o desejado perde a competição para o outro. Aplicar a lei é fundamental e o Estado brasileiro está falhando terrivelmente nisso, que é uma questão de Estado, não de governo. Agora, é preciso ter um governo que manifeste publicamente a importância disso. O nosso manifesta publicamente a desimportância disso. É uma situação gravíssima.
E sobre o que aconteceu com o Bradesco? A sugestão de um dia sem carne, para combater a mudança do clima e a reação fortíssima de setores pecuaristas fazendo churrasco em frente às agências?
Tenho uma admiração muito grande pelo setor de carne. Nossos pecuaristas têm sido capazes de aumentar muito a produção por hectare, sem precisar ampliar a área. Tem gente muito moderna no setor. Isso dito, eu, por ter competido a vida toda com o Bradesco, admiro muito o Bradesco. Vejo que sempre deram apoio inequívoco à agroindústria e fiquei chocado com a virulência da reação do setor. Mas o mais importante é o seguinte: não é a propaganda que o Bradesco ia fazer que afeta a imagem do setor. O que afeta a imagem do setor são as fotografias de gado em terra desmatada ilegalmente na Amazônia. Vejo uma timidez muito grande, mesmo dos melhores do setor, em denunciar. O fato de o setor não se colocar claramente contra essa minoria que infringe a lei, é muito mais perniciosa para a sua imagem do que o que teria sido a propaganda do Bradesco.
Existe a discussão mundial sobre o caráter inflacionário da transição pra uma economia de baixo carbono. Há esse risco?
Não é um risco é uma certeza. Não dá para pintar o elefante de cor-de-rosa. Antes, eu podia produzir aço sem ter que pagar pelo carbono que eu estou emitindo, agora vou ter que pagar. É um aumento de custo. E o fato é o seguinte: não tem alternativa. A alternativa é não fazer e deixar a terra aquecer 4 graus?
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