Setor de tecnologia faz ajustes nos EUA

Austeridade decorre da venda de ações por investidores aflitos pela taxa de juros e desaceleração

“É um dia difícil”, dizia a linha “assunto” do e-mail que Shelly Little recebeu de seus chefes na Carvana, uma varejista on-line de carros usados com sede nos Estados Unidos.

A nota indicava que Little era uma dos quase 2,5 mil demitidos pela empresa nesta semana, em um clima descrito por outro funcionário como de “histeria em massa”. Desde o início do ano, as ações da empresa, famosa por suas gigantescas “máquinas de venda automática” de carros de vários andares, caíram 84%.

“À medida que as ramificações disso começam a aparecer, eu só consigo pensar – nossa!”, escreveu Little no LinkedIn, ao informar aos seus amigos e colegas de trabalho que ela estava entre os 12% que a Carvana despediu.

Empresas de capital fechado tiveram de rever expectativas sobre financiamento e assumir apostas arriscadas.

Sua experiência reflete a súbita austeridade que se abateu sobre o setor de tecnologia dos Estados Unidos, provocada por um movimento profundo e generalizado de venda de ações, já que os investidores estão aflitos com o aumento das taxas de juro e a desaceleração do crescimento econômico.

As empresas de capital fechado se viram obrigadas a rever suas expectativas sobre avaliações, acesso a financiamento e interesse em assumir apostas arriscadas entre os capitalistas de risco, que podem estar menos dispostos a deixar a cautela de lado.

“Acho que isso com certeza é uma lição de humildade para muitas pessoas da área de tecnologia que acreditavam que as coisas nunca andariam de outra forma, ou não fizeram planos para tempos mais difíceis, ou eram um pouco bombásticas”, disse Semil Shah, fundador e sócio geral da empresa de capital de risco Haystack, com sede em São Francisco.

“Se você realmente estava contando com os ovos antes da galinha botar, ou pensando em todas as riquezas que apareceriam no seu caminho, bom, isso vai demorar um pouco.”

Nos mercados abertos, a Carvana foi uma das empresas mais afetadas, mas nem de longe foi a única. A DoorDash, líder de mercado no setor de entregas de refeições de restaurantes dosEUA, sofreu uma queda de 49% neste ano até agora. A Affirm, uma das maiores do setor de “compre agora e pague depois” – um dos grandes favoritos até há pouco tempo -, despencou 75%. 

A operadora de comércio eletrônico Shopify, frequentemente apontada como a ameaça mais séria ao domínio da Amazon nessa área, caiu 67%. O cenário era ainda mais sombrio antes das operações de sexta-feira, em que houve um ligeiro aumento generalizado.

Mesmo as grandes empresas de tecnologia – que representam algumas das ações de crescimento mais seguro da última década – sofreram grandes quedas. Juntas, Apple, Amazon, Alphabet e Meta viram US$ 2,1 trilhões sumirem de suas capitalizações de mercado. A queda da Apple, de US$ 600 bilhões, foi suficiente para perder, nesta semana, o posto de empresa e capital aberto mais valiosa do mundo para a Saudi Aramco.

Para Brent Thill, analista da Jefferies, o fato de uma gigante do setor de energia assumir o lugar da Apple é ilustrativo da reorientação da confiança dos investidores de empresas com forte crescimento de receita bruta, mas resultados líquidos mais incertos, para aquelas que se mostram como apostas mais seguras.

“É uma debandada completa e em larga escala de tecnologia, um verdadeiro botão de ejeção”, disse ele. “Menos de um ano se passou e todas as empresas de software de alto crescimento agora são ruins e sem lucros. Acredito que se trata de uma transferência massiva do setor de tecnologia para setores defensivos, de energia e de serviços públicos.”

As empresas de tecnologia têm reagido lidando com o básico – corte de custos, redução de gastos e mais foco nos fundamentos.

“Acho que tenho falado mais sobre fluxo de caixa livre do que falei desde que tive minha primeira aula de contabilidade, é algo meio louco”, disse uma fonte de uma grande empresa de tecnologia de capital aberto.

O mesmo acontece na Uber, cujas ações caíram 45% este ano. “As regras do jogo mudaram. Agora são sobre fluxo de caixa livre”, disse seu executivo-chefe, Dara Khosrowshahi, em um memorando à equipe no fim de semana passado.

“Em tempos de incerteza, os investidores procuram segurança”, acrescentou ele no memorando, noticiado primeiro pela “CNBC” e confirmado pelo “Financial Times”. “Eles reconhecem que somos líderes em escala em nossas categorias, mas não sabem quanto isso vale. Como diz o Jerry Maguire, precisamos mostrar a eles o dinheiro.”

Depois de renomear e reorientar sua empresa de forma dramática no ano passado, o fervor do executivo-chefe da Meta, Mark Zuckerberg, com relação ao metaverso, abriu caminho para um entusiasmo mais discreto por grandes investimentos. A empresa de mídia social se comprometeu no mês passado a reduzir suas previsões de gastos em vários bilhões de dólares ao longo deste ano. 

Para conseguir isso, a Meta puxou o freio do crescimento agressivo no número de funcionários. De acordo com um memorando interno do diretor financeiro da Meta, David Wehner, a que o “Financial Times” teve acesso, ela contratou mais funcionários no primeiro trimestre deste ano do que em todo o ano de 2021 – mas isso chegou ao fim.

“Temos de reexaminar nossas prioridades e tomar algumas decisões duras sobre que projetos vamos implementar tanto no curto quanto no médio prazo para conseguir realizar a perspectiva de reduzir os gastos com as quais nos comprometemos na orientação de lucros”, escreveu ele, acrescentando: “Isso vai afetar quase todas as equipes da empresa”.

Nota de outro executivo da Meta disse que as entrevistas de emprego marcadas para possíveis futuros funcionários de engenharia juniores e de nível médio serão “sensivelmente canceladas”.

O Twitter, que está potencialmente às vésperas de ter seu controle assumido por Elon Musk, disse na quinta-feira que não cumpriu suas próprias “metas intermediárias” de crescimento, e por isso está “recuando nos custos não trabalhistas para garantir que sejamos responsáveis e eficientes”.

Empresas do setor de tecnologia estão monitorando de perto seus quadros de funcionários como uma maneira imediata de cortar custos. O site Layoffs.fyi, que acompanha demissões entre as startups de tecnologia públicas e privadas, registrou uma escalada iniciada em fevereiro, embora seus níveis ainda estejam bem abaixo dos captados nas fases iniciais da pandemia de covid-19. A startup de cozinha “fantasma” para entregas Reef, a plataforma Cameo, de recados e vídeos pagos de celebridades enviados ao usuário, e o aplicativo de normas alimentares e bem-estar Noom estão entre as empresas privadas que estão dispensando pessoal.

A maneira pela qual a venda em massa do setor tecnológico começa a impactar o setor privado e o ecossistema financeiro que o sustenta apenas começa a ser sentida.

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