Varejo brasileiro muda de mãos: saem os empreendedores e assumem investidores globais

Com as mortes recentes de Abilio Diniz e da fundadora do Magazine Luiza, setor perde algumas de suas principais faces

“A gente escolhe o que quer ser na vida. Ser grande é uma escolha. Basta acreditar”.

Esta é uma das muitas frases de Abilio Diniz que seus admiradores vêm compartilhando nas redes sociais, numa homenagem ao empresário, morto no último dia 18.

Além delas, a exibição de fotos ao lado do empreendedor ilustram o fascínio do mundo dos negócios pela liderança inspiracional, traço marcante no capitalismo no século XX, especialmente no varejo.

Pelo menos nas últimas quatro décadas, Abilio foi uma voz onipresente do setor no Brasil.

Sua autoridade embutia o fato de ter cofundado com o pai o que viria a ser a maior cadeia supermercadista do Brasil, o Grupo Pão de Açúcar.

Um feito notável por ter resistido num mercado altamente hostil, passando por uma sucessão de crises políticas, econômicas, setoriais e familiares.

Com a saída de cena de Abilio, dias após a morte de outro ícone do setor, Luiza Trajano Donato, fundadora do Magazine Luiza, nos anos 1950, o varejo nacional tem ficado órfão de suas principais faces.

O empresário Abilio Diniz no último Macrovision, evento promovido pelo Itaú BBA em novembro passado. Foto: Bufalos

Varejo brasileiro: transição

Mais do que pessoas, contudo, essas mortes ilustram um transformação que o varejo brasileiro está experimentando: o ocaso da liderança de empresas comandadas por grupos familiares.

Nas últimas décadas, mudanças no jogo de forças do varejo brasileiro têm sido basicamente um troca de nomes.

Desta vez é diferente.

Em vez do self made man, de conglomerados erigidos a partir do empreendedorismo de pessoas ou famílias, as instituições vencedoras dominantes têm um perfil ligado a modelos mais modernos.

Assim, negócios baseados em intuição e no capital próprio vêm perdendo força, dando espaço a instituições com acesso a grandes volumes de capital de mercado, apoiados em modelos integrados e tecnológicos, casos de Amazon, Mercado Livre, Aliexpress, Shopee e Shein.

Como resultado desse conjunto, o varejo está deixando de se espelhar em rostos.

“Há um processo de despersonalização das empresas de varejo”, disse à Inteligência Financeira o professor de MBA da FGV Ulysses Reis.

“Está se formando um vácuo de imagem”, acrescentou.

Algumas figuras permanecem, como o caso de Luiza Helena Trajano, sobrinha da fundadora e presidente do conselho do Magalu, e Frederico Trajano, presidente-executivo.

Mas são parte de um grupo cada vez menor.

Luiza Trajano, do Magalu. Foto: Vinicius Andrade/Inteligência Financeira

Varejo brasileiro: consolidação acelerada

Nas últimas décadas, o escasseamento de lideranças tiveram como principal responsável as crises e evoluções econômicas.

O Plano Real, há 30 anos, precedeu o desaparecimento de marcas icônicas como Mappin, Mesbla, G. Aronson e Arapuã, todas de origem familiar.

Nos últimos quatro anos, porém, com as transformações tecnológicas catapultadas pela pandemia e a mortífera combinação de inflação e juros altos, os próprios grupos nacionais com mais acesso a capital levantaram recursos para comprar rivais menores e tentar enfrentar grandes grupos de comércio eletrônico.

Assim, o grande varejo alimentar teve as seguintes transações:

  • Carrefour Brasil comprou o Grupo Big (2022) e as lojas do Makro (2020)
  • Assaí comprou da GPA as lojas do hipermercado Extra (2021)
  • Irmãos Muffato comprou parte das lojas do Makro (2023)
  • Cencosud Brasil comprou a Giga Atacadista (2022)
  • Mart Minas adquiriu a rede carioca Dom Atacadista (2022)

No varejo ampliado, onde a concentração foi ainda mais acelerada, só o Magazine Luiza (MGLU3) fez 20 aquisições em dois anos.

Casas Bahia – ex-Via – (BHIA3), Americanas (AMER3) e Grupo Soma (SOMA3) também se endividaram para crescer.

Com o mau momento econômico encolhendo a renda das famílias, porém, a escolha óbvia do consumidor foi partir para a conveniência e preço baixo do comércio eletrônico, o que os novos entrantes puderam oferecer melhor.

Perde e ganha

Isso ajudou a cortar em parte as vantagens antes detidas por grandes grupos, como hábitos de compra e preços.

“Prevaleceu o utilitarismo do consumidor”, disse Claudio Felisoni de Angelo, presidente do Ibevar e professor da FIA.

Para dar uma dimensão desse processo, a Inteligência Financeira comparou a evolução do Carrefour Brasil e do Mercado Livre.

De 2019 a 2023, enquanto a receita da maior varejista brasileira nem chegou a dobrar, mesmo com aquisições de rivais, a do Mercado Livre cresceu quase 20 vezes.

Esse processo não passou despercebido do mercado financeiro.

EmpresaVariação da ação em 5 anos
até 22 de fevereiro de 2024
Carrefour Brasil (CRFB3)-37,8%
Magazine Luiza (MGLU3)-60,6%
Assaí (ASAI3)+8,7%
GPA (PCAR3)-96%
Lojas Renner (LREN3)-60%
Casas Bahia (ex-Via) (BHIA3)-90%
Mercado Livre (MELI34)+300%
Fonte: Sites de RI das empresas

Segundo especialistas, com grandes grupos nacionais enfraquecidos por dívidas enormes e estruturas mais pesadas e menos eficientes, a tendência de consolidação entre grupos nacionais deve prosseguir.

“O processo de consolidação do varejo brasileiro (…) deve se manter a curto e médio prazos”, afirmou a Fitch em relatório recente.

Um exemplo mais recente disso foi o anúncio da fusão entre a Arezzo (ARZZ3) e o Grupo Soma (SOMA3).

Mais donos gringos

Seja por questões financeiras, de mercado ou simplesmente de sucessão, algumas famílias de empreendedores do varejo já têm preferido ser minoritários de um grupo maior, a exemplo do que ocorrem em gigantes mundiais.

Assim, o próprio Abilio, após perder o controle do GPA há cerca de 10 anos, optou por se juntar por meio de um veículo financeiro ao outrora rival global Carrefour.

Isso tem ocorrido em um cenário em que as cartas estão cada vez mais sendo distribuídas por corporations, empresas sem controlador definido.

Veja abaixo a composição acionária das maiores varejistas do país, segundo a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC):

EmpresaPrincipais acionistasParticipação
CarrefourCarrefour Finance (grupo de acionistas)
Península, da família Diniz, tem 8,8% do conglomerado global
67,5%
AssaíBlackRock
Ações no mercado
10,7%
74%
Magazine LuizaFamília fundadora56%
ViaGolden Tree
Ações no mercado
7,9%
79,6%
AmericanasGrupo 3G30%
Raia DrogasilWells Holding
Ações no mercado
11,6%
73,6%
BoticárioMiguel Krigsner e Artur Grynbaum  Ambos têm
100% das ações 
NaturaControladores
Ações no mercado
38,45%
61%
Grupo MateusFamília fundadora79%
GPACasino
Ações no mercado
41%
59%
Fonte: Sites das empresas

Aposta no ‘old school’

Para Angelo, do Ibevar, esse movimento espelha a percepção crescente de que “os fatores de vantagem competitiva sustentável não são facilmente emuláveis”, como ensinam os livros de negócios.

Ou seja, intuição e centralidade decisória podem dar maior flexibilidade ao empreendedor, mas isso não é suficiente para dar solidez ao negócio no longo prazo.

“Quando o dono acerta, acerta muito, quando erra, também”, disse o executivo.

Além disso, pontuou Angelo, gestão mais personalista costuma levam a situações de ineficiência do negócio.

O próprio Abilio, celebrado por ter atuado para salvar o Pão de Açúcar na década de 1980, alternou decisões bem sucedidas e fracassadas.

Em 2011, num esforço para tentar se evitar passar o controle ao grupo francês Casino, conforme acertado anos antes, propôs uma fusão com o Carrefour.

No desenho, que teria apoio do BNDES, dentro da política da época do governo de criar ‘campeões nacionais’, ele seria o presidente do grupo.

A operação fracassou, o Pão de Açúcar enfrentou revezes nas mãos do Casino e hoje é apenas uma fração da outrora maior varejista alimentícia do país.

O Boticário e Cacau Show

De todo modo, alguns expoentes do varejo brasileiro têm preferido manter a aposta no modelo old school.

É o caso da dupla Miguel Krigsner e Artur Grynbaum, sócios de O Boticário.

“Temos muito medo de perder aquilo que foi criado com muita dedicação e muito amor”, disse Krigsner em evento do setor de varejo meses atrás.

“Vemos como grandes organizações vão perdendo suas essências à medida que abrem capital”, acrescentou, sobre uma possível listagem da companhia na bolsa.

Alexandre Costa é fundador e CEO da Cacau Show. Foto: Laison Santos/Divulgação

Questionado sobre a hipótese de receber investidores, o presidente e fundador da Cacau Show, Alexandre Costa, foi na mesma direção.

Ao dar detalhes sobre a recente anúncio de compra do grupo de entretenimento Playcenter, “após uma conversa de 15 minutos”, Costa explicou: “Não sei quanto tempo eu levaria para convencer os investidores”.

“Para vender esta liberdade eu preciso de um motivo e eu não vejo ele hoje”, afirmou durante evento nessa semana do BTG Pactual.