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Gravidez depois dos 40, adeus ao sutiã: fundadora da Farm desafia convenções
Aqueles assuntos que as mulheres costumam conversar só entre si e, muitas vezes, nem isso, não são tabu para a empresária Katia Barros. É uma questão de atitude. “Está na hora das mulheres pararem de competir, unirem-se e falarem a verdade”, diz a estilista e criadora da marca Farm, de 52 anos, que teve o segundo filho aos 48, com um homem sete anos mais novo.
“As mulheres competem, não sei por que, mas é uma verdade”, diz. “Precisamos nos unir mais, ser mais amigas. Vai ser bom pra todo mundo se a gente quebrar as regras de uma cultura machista.”
É por essa visão que ela diz adorar “feministas exageradas” sem mesmo saber se é feminista. “Gosto daquelas que todo mundo critica. Porque, para quebrar preconceitos, é preciso ser radical, e alguém tem que fazer esse papel. Se ninguém faz esse movimento, o caminho não se abre.”
Feminina, bem produzida, Katia Barros chega trajando um vestido longo estampado desenhado por ela para jantar no restaurante Carlota, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, para este “À Mesa com o Valor”. A questão da mulher e sua complexidade vai permear a conversa nas próximas horas e, para isso, ela começa deixando a bolsa com o celular na mesa em frente, onde estão sentados seu diretor de marketing e a assessora de imprensa, que partilham conosco um pinot grigio italiano. “Deixo o celular longe pra não ter oportunidade de alcançar. É bom, sabia? É terapêutico.”
Em 2022, a Farm completa 25 anos de Brasil e quatro, no exterior, onde abriu o primeiro showroom no Soho, em Nova York, em 2018. No ano seguinte, inaugurou o e-commerce internacional e a primeira loja, também em Nova York. Agora, há espaços de venda da Farm Rio, como foi batizada a marca no exterior, em lojas de departamentos sofisticadas como Le Bon Marché, em Paris, e Liberty, em Londres, e produtos distribuídos em 180 países. O plano de expansão da Farm Global é bastante ambicioso e prevê a abertura de 35 a 55 lojas nos Estados Unidos e na Europa até 2026, com um faturamento total de R$ 3 bilhões nesses mercados.
O faturamento no exterior já corresponde a cerca de 30% do total e representa 40% das vendas. No Brasil, há 85 lojas próprias em vários estados, com São Paulo sendo o principal mercado. A Farm é uma marca carioca, de estilo jovem e ultracolorido, que utiliza essa linguagem para propagar e disseminar a cultura brasileira, o estilo festivo, despojado, tropical.
Barros e a chef-proprietária do Carlota, Carla Pernambuco, conheceram-se num spa. Barros já esteve em quase todos os que há no Brasil, e seu predileto é o Rituaali, que fica em Penedo, a meio caminho entre São Paulo e Rio. É mais boutique, mais luxuoso. Gosta também da simplicidade do paranaense Lapinha, mas para lá é preciso ir de avião e depois de carro. “A gente sempre tem um pesinho pra perder”, diz, mas o que a move é que, no spa, ela tira uma semana “para pensar, para nutrir a cabeça, o corpo e o espírito”. E as pessoas estão lá com um propósito parecido, o que permite conexões.
“Amo tudo o que é autoconhecimento”, conta, ao enumerar suas práticas: ioga, meditação e análise duas vezes por semana há 26 anos. Do misticismo e do esoterismo é distante. “Sou um pouco cética. As pessoas não acreditam quando falo isso. ‘Nossa, você é tão espiritualizada!’, comentam.” Mas ela não tem religião, embora goste de dizer que tem dúvidas. “É muito arrogante ter certezas, a gente não tem certeza de nada.”
Vez ou outra vai à igreja como uma coisa meditativa e fica ouvindo o som da ladainha do padre, sem se ater ao que está sendo dito ali, literalmente. Neste ano foi ao Círio de Nazaré em Belém, a convite de Fafá de Belém, e ficou impressionada com a grandiosidade da festa. “É uma festa da fé comovente. Bonita de ver seja como fenômeno antropológico ou como uma reflexão. Será que existe alguma coisa além de nós? Essa coisa pode estar dentro de nós mesmos.”
Barros foi criada em Copacabana numa família de “classe média simples” e sempre estudou em escola pública. Aos 16 anos, apareceu um psicólogo no colégio que fazia orientação vocacional e, depois de uma semana de conversa, indicou-lhe duas profissões: auditoria e moda. A moda não era uma realidade para ela, nem existia faculdade. Ela adorava matemática e entrou em ciências contábeis no curso noturno da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhava desde os 15 anos.
Um dos seus primeiros empregos, aos 18 anos, foi ao lado do pai, comerciante, que se deu bem como único representante de jornais e revistas argentinas no Brasil. Na época, o Rio era lotado de argentinos, e ele trazia os jornais “Clarín”, “La Nación” e outros. No verão ela ganhou um carro, alugou uma casa em Búzios com as amigas onde recebia os jornais e os distribuía para todas as pousadas.
Aprovada no processo seletivo da Ernst & Young, ficou lá dois anos como contadora até perceber, de forma intuitiva, que aquele lugar era muito interessante, mas pouco para ela. “Entendi que aquele mundo era altamente machista, muito corporativo e sem alma. Só números. Para uma pessoa como eu, que tinha que desenvolver o lado criativo, era limitador.” Foi difícil tomar a decisão de largar um espaço conquistado e com uma carreira pela frente. “Abandonei tudo e me joguei no nada de novo. A gente vem de uma família de luta, mas eles me apoiaram.”
Nesse momento, o pai e o melhor amigo da estilista desde a escola, Marcello Bastos, propuseram-lhe abrir uma franquia. Os dois trabalhavam juntos, e Bastos, seu sócio até hoje, já “era da família”. Aí ela se lembrou da moda, e decidiram abrir uma loja da marca paulistana Mercearia no Iguatno Iguatemi que chegava ao Rio. Não funcionou como esperavam. “Quando abriu, o shopping teve um arrastão no primeiro dia. A gente se perguntava o que estava fazendo lá.”
Em um ano de operação, ela e Bastos venderam os carros, além de dois apartamentos do patrimônio que o pai havia construído. “O dinheiro foi embora pelo ralo: a gente entrou num shopping errado, não sabia nada de varejo, errou pra caramba.” Tentando pagar as contas, ela vinha para São Paulo de ônibus, esperava abrir as lojas do Bom Retiro e levava produtos que pudesse vender. Virou sacoleira.
Foi quando conheceu a Babilônia Feira Hype, que existia no Jockey Club, ao ar livre, muito inspirada no modelo de mercados que há em Londres, como o Portobello Road. “Havia um monte de artistas, era um jeito novo de consumo num formato cool.” Era 1997, e foi aí que nasceu a Farm, quase por acaso.
Ela foi ao polo têxtil comprar tecidos, pegou cartões com nomes de umas costureiras e fez meia dúzia de peças para levar aos administradores da Babilônia. Eram bodies coloridos, camisas, saias. “Não sei o que aconteceu, mas eles olharam e falaram: ‘Que maravilha, você vai vender muito’. Pensei: ‘Que exagero!’ Eu não sabia fazer roupa, tinha experiência de auditoria…”
Intuitivamente, achou que não podia chegar com uma arara e pendurar as peças. Chamou um figurinista para fazer o estande. Queria algo diferente. “Eu não tinha dinheiro, mas ele tinha criatividade, e eu achava que toda a experiência tem que ser cuidada. Da luz a tudo o que entra na construção de uma marca.”
Faltava um nome. Ela morava no Posto 6, em Copacabana, e havia passado a infância ouvindo que a galera estava “na Farm” (sonoridade carioca para a abreviação da rua Farme de Amoedo, onde todos se reuniam na praia). “Ali era o lugar mais legal da cena cultural, e eu achava esse som tão carioca, cresci com ele… O louco é que eu nunca colocaria um nome inglês, não deixo a Farm fazer camiseta com palavras inglesas, é tudo português. Agora, com a global é outra história.”
Os aperitivos estão na mesa e escolhemos os pratos. Todos pedem filé de pescada amarela com purê de banana da terra e pupunha. Ela comenta: “Nunca fiz uma entrevista tão chique na vida, jantando, bebendo, é o máximo”. No ano passado, Barros perdeu 20 quilos porque tomou muito hormônio para conseguir engravidar. “Digo que engravidei na terceira idade, engordei pra caramba e há dois anos estou em processo de emagrecimento.”
Filha única, tem dois filhos de casamentos diferentes: Manuela, de 17 anos, e Theo, de 3, com o atual marido, o médico cirurgião Leandro Basto, especializado em bariátrica, com quem está há 11 anos. “É bom porque ele também trabalha muito, e ninguém cobra ninguém. Tem que ter esse match.” Atualmente, moram numa casa no Jardim Botânico, onde Barros concentra parte de sua rotina. Às 10 horas, depois do café preparado por uma funcionária que está com ela há 20 anos, desce para sua sala de trabalho com vista para o Cristo Redentor, onde vê passarinhos, árvores, natureza. “O home office foi libertador.”
Na hora do almoço chega o personal, e Barros vai malhar na academia que tem em casa. Faz uma hora e meia de exercícios. Depois do banho e do almoço, volta a trabalhar até 19h ou 20h. Em Nova York, tem um escritório onde faz provas de roupa. Vai bastante para lá. Viaja de férias e a trabalho também, para pesquisar. Tem uma casa em Angra dos Reis e um barco, o que lhe permite navegar até praias desertas.
Ser mãe aos 48 anos foi uma epopeia. “Quando a gente começou o relacionamento, percebi que ia dar certo, mas falei: ferrou! Ele não tinha filhos, era meu amigo, e eu sabia que sempre gostou muito de crianças. Eu sou sete anos mais velha. Adoro falar isso, acho libertador para muitas mulheres. Tem muito preconceito no Brasil, e isso dói nas mulheres. Dói mesmo.”
Já ela nunca ligou para o fato de ele ser mais novo. “Tenho uma cabeça muito jovem, e envelhecer tem a ver com falta de planos. Não me vejo junto com uma pessoa que não tem projetos. Aquela pessoa que já deu, sabe? Não vai rolar comigo. Mas filho, sim, sabia que seria um problema. A gente tem um relógio biológico, e isso é muito cruel com as mulheres. Que bom que tem a ciência, foi isso que me ajudou.”
Já namorando, o seu lado empreendedor veio à tona. Começou a se preparar para a ideia de o futuro marido querer filhos. E, de forma escondida, começou a congelar óvulos. “Ele não podia saber. Lembro de uma vez que vieram em casa me dar injeção na barriga, e ele estava lá e perguntou: ‘O que você tá fazendo?’ ‘Nada, nada, um tratamento pra celulite’, respondi. Pensei: se ele sabe o que estou fazendo vai fugir, vai embora amanhã.”
Foram cinco anos de tratamento. Depois, o marido entrou no esquema e aplicava as injeções. “Começa a ficar difícil encontrar óvulos saudáveis depois dos 40. Depois dos 45, é procurar agulha num palheiro. Acho maravilhoso mulheres de 30 que começam a congelar, nessa idade são mais férteis. Só acho triste porque é caro, não é pra todas. A gente vem lutando pela igualdade, e isso é um limitador. Porque ter filho é uma entrega muito grande, e existe uma questão do mercado de trabalho. Você fala que está grávida, e teu chefe te olha diferente.”
Não é só a gravidez em si, ela continua: “Aí tem que amamentar, vem a depressão pós-parto. É maravilhoso, mas é uma encrenca profissional. Você está no auge, e teu relógio bate. Tem alguma coisa errada nisso, quero ter uma conversa com o gestor da natureza. A ciência veio pra ajudar essas mulheres. Congela esses óvulos, não vai morrer! Quando quiser, vai lá e usa”.
O tratamento, no entanto, não é dos mais leves. São injeções de hormônios que afetam todo o metabolismo. “É uma injeção braba, psicologicamente é pesado. Dá medo, insegurança. Tomei cinco anos de hormônio, engordei. Mesmo com fertilização in vitro, perdi três vezes, porque os embriões não iam pra frente. É um processo doloroso.”
Quando tudo isso aconteceu, ela já colecionava sucessos. Desde o primeiro dia na Babilônia, a Farm vendeu tudo. “Eu não tinha a menor pretensão, era brincadeira. Ainda tinha a operação da Mercearia e vendi num final de semana o que vendia durante um mês na loja. Aí passei a entender o que vendia. Foram cinco anos de Babilônia, foi difícil desapegar. Vendíamos muito, era muito dinheiro.”
O sucesso se repetiu no primeiro espaço comercial, num prédio de escritórios em Copacabana, e na primeira loja, em 1999. Conseguiu então um espaço grande no Iguatemi de São Paulo. “Nós abrimos, tinha fila na porta.”
Diante da procura, os sócios perceberam que havia algo “especial naquilo que tinha começado como uma gambiarra” e decidiram se aprofundar. Ela foi estudar moda e ele, varejo. “Fui da primeira turma da faculdade de moda do Rio, na Cândido Mendes, até lá não conhecia a técnica nem a teoria para construir uma confecção.” Nomes como Chanel ou Yves Saint Laurent não eram referências.
O preço foi uma estratégia. Barros e Bastos pensaram escapar das lojas de departamentos – na época o fast fashion era incipiente no Brasil – e furar a bolha das butiques caras. “Para isso era preciso ter um produto tão bacana quanto o das butiques, ou a tentativa de, mas com um preço mais popular.
Esse foi um dos grandes segredos da Farm. Entrou com um preço muito bom, mais democrático e com uma experiência de consumo diferente.”Em 2012, a fusão da Farm e da Animale deu origem ao Grupo Soma, que hoje possui dez marcas. “O Soma nasceu na casa do Marcello com a gente tomando vinho com o Roberto (Jatahy, CEO do Soma). A gente precisava de um precisava de um parceiro, estava com dívidas, queria alguém pra comprar parte da Farm. O Roberto, sozinho na Animale, também percebeu que precisava juntar forças. As culturas são diferentes, mas são duas marcas cariocas. Foi difícil, mas deu certo.”
A ida para o exterior foi amparada pelo Soma e seria impossível sem ele. Foi um investimento de R$ 50 milhões. “É um aporte muito grande. Com esse dinheiro acho que a gente abre 300 lojas no Brasil. Levar para o mercado internacional pra gente não foi estratégia de marketing, mas um negócio. A gente queria ganhar dinheiro. Mas era uma aventura, com chance pequena de dar certo.”
Novamente entrou o empreendedorismo. “Somos movidos a aventura, a risco. O Marcello quer ver a Farm brilhar no mundo, o Roberto quer resultado, e eu quero ver o Brasil se projetando, tenho muito orgulho de ser uma marca brasileira.” Ir para o hemisfério norte significava tentar entender outro mundo, outro mercado. “É um mercado muito amadurecido, com concorrência absurda, e a gente não é ninguém. Entrar com uma marca brasileira… querendo ou não existe um preconceito.”
A primeira percepção foi que chegar lá com o produto que vendiam aqui os colocaria na categoria fast fashion, em que não haveria chance de concorrer. Era preciso subir um degrau na qualidade cultivando os mesmos valores da marca: alegria, descontração, “joie de vivre”. “Fizemos um processo de imersão, contratamos consultoria. É um grande erro achar que você está pronto. Tem que ter muita humildade. Esquece o que sabe, pega uma coisa ou outra, mantém sua identidade, e o resto vai aprender tudo de novo. É uma língua nova. Não adianta chegar lá falando português e achando que vai se comunicar.”
O preço médio de um vestido no Brasil é R$ 350 reais. Na Farm Rio custa US$ 200 ou o mesmo em euros. São tecidos de maior qualidade, outras coleções, outra equipe de design, outro posicionamento, outra arquitetura. Barros é a diretora de criação também da Farm Global e com isso voltou a ser estilista. “Percebi que a gente era muito mais do que Rio de Janeiro. Pesquisamos as florestas, o Brasil, toda a natureza. O Marcello fala que o melhor branding do mundo é o sucesso. Não adianta criar uma coisa linda e não vender. A gente cresceu muito. Vou fazer mestrado em antropologia do consumo porque quero estudar a Farm.”
Pedimos mais uma garrafa de vinho e, só mais tarde, a sobremesa. Seus acompanhantes vêm se sentar à nossa mesa. Barros é adepta do conforto. Conta que vai a casamentos de Havaianas (a marca produz as suas numa parceria) e que nunca mais usou salto. “Usava como auditora, era uma tortura. Veja os homens sem camisa, peludos. Eu tenho que me depilar. A gente usa sutiã porque o peito cai, e é feio. Ah, gente, deixa cair. Precisamos nos unir pra mudar isso, porque a vida vai ser melhor para as próximas gerações.”
Por isso, ela aboliu o sutiã. “É uma tortura ocidental, a gente vive amarrada com sutiã, com roupa apertada. Não uso calcinha, também, incomoda. Pronto, falei. Tá gravando? Pode colocar. A minha ginecologista acha maravilhoso. Só com roupa transparente, cada vez menos.” Dizer tudo isso não a impede de ser uma fã declarada do universo feminino, da inteligência emocional, da capacidade de a mulher ser múltipla. Só falta mudar algumas coisas. Vai ser bom para todas.”
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