Apostas esportivas não são investimentos e podem viciar

Especialistas ouvidos pela IF detalham os riscos das apostas online

É praticamente impossível escapar dos anúncios de sites de apostas esportivas. Em tempos de Copa do Mundo, todos os intervalos comerciais das TVs aberta e paga e das rádios estão tomadas por anúncios que incentivam as pessoas a “fazer uma fezinha” em jogos de futebol.

Mercado de apostas esportivas cresce no Brasil e no mundo

Apesar da pausa nos campeonatos regionais e no Brasileirão, dificilmente escaparemos desse tipo de propaganda nos próximos meses. Dos 20 times que jogaram a série A do Campeonato Brasileiro de 2022, dezoito são patrocinadores por sites de aposta.

O mercado global de apostas esportivas é parrudo.

O setor movimenta, segundo levantamento da Grand View Research, cerca de US$ 59 bilhões por ano.

Em 2027, esse valor pode chegar a mais de US$ 127 bilhões.

Só no Brasil, são R$ 7 bilhões anuais, valor que mais do que dobrou desde 2018, quando ainda estava na casa dos R$ 2 bilhões.

“E qual é o problema disso?”, você pode estar se perguntando. Usar essas plataformas é apenas mais uma forma de se divertir e investir, certo? Há, inclusive, quem se refira às apostas como “investimentos esportivos” ou “trading esportivo”. Tudo muito inocente, aparentemente. No entanto, esse tipo de operação não é investimento.

Apostas esportivas não são investimentos

A aposta esportiva ou nao, segundo Lai Santiago, educadora financeira da fintech de crédito Open Co, não pode ser considerada um investimento. “Isso porque um investimento tem por princípio a existência de fundamentos econômicos. Você tem também uma expectativa de retorno específica”, afirma Lai.

“Ainda que dentro do universo da bolsa de valores, por exemplo, em que você tem uma certa volatilidade, você está investindo em fundamentos econômicos de uma empresa”, explica.

No caso da aposta, Lai continua, “ela não tem garantia alguma de ter retorno”.

O fator sorte

Existe alguma diferença entre a sorte e a volatilidade? “A sorte independe de fatores concretos, enquanto a volatilidade mostra para a gente um padrão, um comportamento esperado e muito claro, daquela ação, companhia ou organização” diz Lai Santiago.

Portanto, investimentos envolvem estratégia.

E sorte tem a ver com acaso.

“Então, quando estou aplicando em ações, tenho uma expectativa de retorno e volatilidade específicas. Caso eu faça uma retirada no curto prazo, posso ter um risco muito alto de perder o dinheiro. E por que isso é diferente de eu ir lá e perder o dinheiro numa aposta? Porque quando eu estou investindo numa ação de uma empresa, ela tem momentos de deslizes. Mas, no longo prazo, quando a gente escolhe bons papéis dentro do mercado financeiro, a tendência é que no longo prazo a gente tenha um prêmio por ter se aberto ao risco”.

E Lai vai mais longe: “Ainda que a volatilidade mostre uma expectativa de desvio-padrão no curto prazo, no longo prazo, a gente tem uma expectativa de retorno mais provável do que a probabilidade de uma aposta”, explica.

Portanto, a questão do tempo é preponderante na diferença entre apostas e investimentos. “Na aposta, tenho um intervalo muito curto para tomar essas decisões.”

É possível apostar no mercado financeiro

Lai Santiago explica que a lógica da aposta também pode existir no mercado financeiro.

“Da mesma forma que eu digo que uma aposta esportiva é uma aposta, não um investimento, também digo que day trade é uma aposta. Existem maneiras de você tomar decisões no mercado financeiro que, se a gente for olhar por conceito serão mais apostas do que um investimento com fundamento econômico”.

O exemplo que vem desta Copa do Mundo

Quer um exemplo bem próximo de todos neste momento? Vamos ver a Copa do Mundo deste ano.

Basta apenas olhar para os resultados mais recentes, como a eliminação de Bélgica e Alemanha. “Essa Copa está sendo a copa das zebras, né? Existem várias situações em que a gente vê times grandes tomando uma surra de times menores.”

É verdade que os riscos de perder dinheiro existem tanto nas apostas quanto nos investimentos.

Afinal, nem um e muito menos o outro garante seu dinheiro de volta.

Mas fato é que com as apostas seu risco é gigante, com a desvantagem de que a estratégia usada tem mais a ver com resultados passados do que com um estudo mais aprofundado. “Você acaba ativando alguns gatilhos comportamentais que podem te induzir ao erro sistemático”, diz a educadora financeira.

E, em casos extremos, esses gatilhos podem acabar levando as pessoas que apostam a desenvolver o transtorno do jogo, ou jogo patológico, o vício em jogar.

Quando apostar se torna um vício: o transtorno do jogo

Segundo Cirilo Tissot, médico psiquiatra especialista no tratamento de compulsões por drogas químicas, games e compras, um dos problemas com as apostas esportivas – e qualquer outro tipo de aposta – é que “ganhar tem uma certa característica aleatória”. Elas oferecem à pessoa “um reforço intermitente: você não sabe quanto você vai ganhar ou não, principalmente no jogo de azar”.

Mas psiquiatra deixa claro “que não necessariamente isso faz com que a pessoa se vicie”.

Aliás, o vício em jogos é uma condição psiquiátrica conhecida, chamada de transtorno do jogo ou jogo patológico. O que, então, faz com que alguém se vicie em apostas esportivas?

De acordo com Tissot, os homens estão mais predispostos a desenvolver esse vício do que as mulheres. Mas elas também apresentam alto risco, especialmente depois dos 40 anos.

O segundo fator de risco é estar com baixa autoestima, diz o médico.

E em terceiro lugar estão complicações de ordem econômica, que fazem com que a pessoa “queira ganhar dinheiro rápido”.

E ainda: quem é impulsivo apresenta um risco extra, já que “o transtorno está diretamente ligado” a essa característica, explica Tissot. Esses indivíduos têm grande risco de desenvolver o vício por apostas, sejam elas esportivas ou não.

E como perceber se alguém está viciado em apostas?

Quando a pessoa prioriza isso as apostas em detrimento de todas as outras coisas. “Pensar na aposta é maior do que qualquer outro compromisso social. A pessoa perde muito tempo pensando no próximo jogo, jogando e se recuperando da ressaca”, afirma o psiquiatra.

“Jogava das cinco da manhã até meia noite”

Alberto (nome fictício), conta que começou a se viciar em apostas com o jogo do bicho. Depois de brigas com a esposa, prometeu que tentaria parar de jogar. “Foi aí que conheci as apostas online”, diz. Por meio dessas plataformas, ele jogava “dentro de casa escondido dela sem ela saber”. “Ela achou que eu estava me curando e eu estava só piorando”, relata.

Ele acordava às 5 horas da manhã e jogava até meia noite. Apostava em tudo que era tipo de futebol, não só no Brasil, mas também na Europa, Japão, África. Alberto hoje frequenta os Jogadores Anônimos, grupo de apoio para pessoas viciadas em jogos e apostas.

Para ele, como o futebol é um esporte do qual as pessoas gostam muito, “a gente acha que conhece, acha que domina”. “Eles ficam oferecendo bônus e você acha que dobrou seu bônus, mas tem que apostar várias vezes, em vários tipos de aposta para retirar esse dinheiro”, diz Alberto.

Ele relata ainda que, para alimentar o vício, começou a tomar empréstimos.

“Parcelava em 40, 60 meses. Assim que o dinheiro saía, eu já transferia tudo para as apostas online”, diz.

Chegou a perder R$ 8 mil em duas horas. “Não tinha mais de onde tirar dinheiro. Já tinha gastado toda a rescisão da minha esposa, de quando ela tinha saído do trabalho. Cheguei nela chorando, não porque tinha perdido o dinheiro, mas porque eu não tinha mais de onde tirar para jogar.”

Ele está há um ano e um mês sem apostar. “A batalha é diária. Agora tem Copa do Mundo. Toda hora é propaganda, toda hora então é pessoas que você idolatra, todo jogador de futebol fazendo propaganda [de apostas online. E aí você não pode nem assistir televisão.”

É possível apostar de maneira saudável?

Voltemos, pois, para a questão das finanças pessoais.

Nem tudo precisa pender para algo ruim.

Então, é possível, sim, fazer apostas de maneira saudável.

Como?

Existem alguns critérios para que uma aposta seja segura. “Primeiro, se a pessoa tiver um histórico de vício em jogos, comportamento compulsivo com bolsa de valores ou day trade, não aposte”, afirma Lai Santiago.

Outro ponto importante: se os valores que serão apostados não vão interferir na vida financeira de curto, médio e longo prazos da família, tudo bem.

Por último, o apostador precisa entender que aquilo é uma aposta e que, sim, pode perder tudo.

Segundo o psiquiatra Cirilo Tissot, para muitas pessoas que têm a tendência a desenvolver vício em jogos e apostas, o mais importante não é o fato de jogar, mas o quanto você usa o jogo para escapar da realidade. “Se você joga, se satisfaz com o jogo, se diverte e volta para a sua rotina, você conta em voz alta o que aconteceu, então o jogo cumpriu sua função”, diz.

Mas qual é o problema do jogo patológico? “É um escapismo. O jogo vira a razão do viver. Você não para porque se satisfez, para porque foi derrubado: ficou completamente sem dinheiro”.

Para Tissot, “jogar de uma forma segura significa ter controle do que você está fazendo”. Como fazer isso? “Você segue o que seu raciocínio disse o que deveria fazer antes de entrar no clima emocional da aposta. A pessoa se protege do jogo patológico quando ela tem cem dólares e isso o que ela vai gastar, nada além disso”, afirma Tissot.


Se você está precisando de ajuda para lidar com o vício em jogo, procure um profissional de saúde mental. Os Jogadores Anônimos também podem ajudar: https://jogadoresanonimos.com.br/.