Incapacidade e falecimento: como planejar e se preparar previamente para estes momentos

O planejamento pode ser uma forma de cuidar de seus familiares, facilitando a tomada de decisões em momentos sensíveis

O português José Saramago, agraciado com o Nobel de Literatura em 1998, explora em sua obra “Intermitências da Morte” uma hipótese curiosa: sem qualquer explicação, as pessoas de determinado país param de morrer. Neste mundo fictício, além de outras circunstâncias inusitadas, com uma expectativa de vida sem limites, situações de incapacidade tornam-se presentes no cotidiano de todos os indivíduos.

Apesar de ficção, o cenário criado por Saramago pode conversar com a realidade. Hoje, graças aos avanços tecnológicos e medicinais, a expectativa de vida ao redor do mundo aumentou significativamente ao longo das últimas décadas. Com uma população mais idosa, casos de incapacidade tornaram-se mais comuns e passaram a exigir atenção especial das famílias em seus planejamentos sucessórios.

Não é nada agradável imaginar que a incapacidade pode atingir qualquer um de nós. Entretanto, tratar da incapacidade e estar preparado caso ela venha a acontecer pode garantir que as vontades do incapaz sejam respeitadas, além de auxiliar seus familiares que serão encarregados de lidar com a situação. Assim, o planejamento pode ser uma forma de cuidar de seus familiares, facilitando a tomada de decisões em um momento tão sensível.

O Direito brasileiro possui uma gama de instrumentos que possibilita tratar da incapacidade de diferentes formas.

E, dessa forma, permite o desenvolvimento de um planejamento prévio para a incapacidade em relação a diversas esferas da vida, como na direção de negócios, na gestão do patrimônio e até mesmo quanto aos tratamentos de saúde que o incapaz está ou não disposto a receber.

Curatela

Com origens que remetem ao Direito romano, a curatela é instituto presente no Direito brasileiro. Desde aquele tempo, consiste em encarregar um terceiro de cuidar dos interesses de alguém que não possa fazê-lo por conta própria.

Conforme dispõe o Código Civil, a curatela é aplicável, dentre outras hipóteses, aos indivíduos que, por enfermidade, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil e àqueles que não puderem exprimir sua vontade. Além disso, vale dizer que a curatela é resultado da interdição do indivíduo, que pode ser decretada por meio de ação judicial promovida pelos pais, cônjuges, outros parentes ou pelo Ministério Público. Uma vez declarada a interdição, inicia-se a curatela.

Existe, contudo, um instrumento que permite ao indivíduo, enquanto ainda é capaz, estipular os termos de sua curatela, caso ela venha a ocorrer – a Declaração de Curatela. A Declaração de Curatela possibilita que o declarante escolha um curador ou um conselho de curadores, que será responsável por seus cuidados pessoais e pela administração de seu patrimônio quando de eventual incapacidade.

Além de designar um curador, o instrumento pode estabelecer regras para a gestão do patrimônio, condutas para o negócio e cuidados pessoais específicos, guiando a atuação do curador de forma pormenorizada. Assim, além das proteções previstas em lei, o declarante pode considerar as especificidades de seu patrimônio para definir diretrizes gerais ao curador.

De toda forma, vale dizer que todas as disposições constantes na Declaração de Curatela devem ser validadas pelo Poder Judiciário no processo de interdição, sendo que o curador deverá respeitar os limites impostos pela sentença de interdição e não pela Declaração de Curatela por si só.

Tutela

A tutela é outro instituto que também possui raízes no Direito romano, mas que possui diferenças essenciais em relação à curatela. A tutela é importante para aqueles que possuem filhos menores, pois, uma vez observada a incapacidade dos pais, a tutela surge como instrumento para garantir que os filhos menores, assim como seus bens, recebam o devido cuidado e atenção. Vale notar que a tutela de menores configura-se não somente nos casos de incapacidade dos pais, mas também caso os pais venham a falecer.

A legislação brasileira estipula uma ordem para indivíduos que assumirão o papel de tutor dos menores na ausência dos pais. São eles: os ascendentes do menor, preferindo-se aqueles que possuem um grau de parentesco mais próximo, ou, na ausência destes, os parentes colaterais, preferindo-se os parentes mais próximos e os mais velhos, cabendo ao juiz determinar aquele que possui melhores condições de exercer a tutela, observando o melhor interesse do menor.

Assim como na curatela, também é possível escolher um tutor de forma antecipada, com o intuito de que os menores não fiquem desamparados nesse momento de fragilidade. Ocorre que o Direito brasileiro possui um cuidado especial para assegurar a proteção das crianças e adolescentes, de forma que todas as definições relativas ao tutor passarão, obrigatoriamente, pelo crivo do Poder Judiciário, visando resguardar o melhor interesse do menor.

Outro fator importante na designação de tutor para os filhos menores é que o ato deve ocorrer por meio de um documento autêntico. Além disso, para assegurar que a vontade dos pais seja cumprida pelo Poder Judiciário, é fundamental que ambos os responsáveis manifestem seus desejos em relação à escolha do tutor de forma conjunta. Também é importante lembrar que, na ausência de designação de tutor pelos responsáveis, e caso não existam outros familiares para assumir a tutela do menor, caberá ao juiz do caso a nomeação do tutor.

Pelos fatores supramencionados, é extremamente importante estar bem assessorado no momento da tomada de decisão e na elaboração dos documentos pertinentes, a fim de garantir que as vontades dos pais sejam cumpridas.

Diretivas Antecipadas de Vontade

Outro instrumento relativamente recente e que possui utilidade para casos de incapacidade é o DAV, sigla para Diretivas Antecipadas de Vontade. O principal objetivo do DAV é tratar de questões relacionadas à saúde do incapaz.

Por meio deste documento, o indivíduo pode delimitar os tratamentos que deseja ou não receber, além de dispor sobre questões como doação de órgãos, cremação e cerimônias religiosas, garantindo que suas vontades sejam cumpridas, mesmo encontrando-se em situação na qual não pode manifestá-las diretamente.

Os médicos ficam vinculados às diretrizes constantes do DAV, devendo respeitar o disposto no documento, exceto nos casos em que haja algum conflito legal.

Testamento

Por fim, ao tratarmos do falecimento, precedido ou não pela incapacidade, o primeiro instrumento que nos vem à mente é o testamento. E não poderia ser diferente: o testamento é a disposição de última vontade.

Nele, é possível destinar 50% da herança para quem você quiser, parcela chamada de disponível. O testador também pode eleger um tutor para seus filhos menores, caso os tenha, e escolher um curador especial que ficará responsável pela administração dos bens até que eles completem 18 anos, definições essas que serão analisadas pelo juiz no processo de inventário.

Como vimos, diversos são os desdobramentos da incapacidade e do falecimento, sendo que ambos podem ser abordados em diferentes instrumentos jurídicos e possuem importância fundamental para o planejamento patrimonial.

Acordo de Quotistas

Além de todo o exposto, é possível, por exemplo, abordar a incapacidade em um Acordo de Quotistas, por meio de disposições que limitam a entrada de sócios incapazes no quadro social, vinculando os sócios a realizarem a venda de suas quotas apenas a indivíduos que possuem plena capacidade civil.

Na sucessão de quotas sociais, os sócios podem estipular no Acordo de Quotistas que os herdeiros, para integrarem a sociedade, deverão ter plena capacidade, prosseguindo com a liquidação da parcela do quotista falecido caso não seja cumprido tal requisito.

Benefícios do trust

O trust, tema que abordei em outro artigo no Inteligência Financeira, também pode tratar da incapacidade e do falecimento. Por meio deste instrumento, o settlor (aquele que instituiu o trust) pode destinar seu patrimônio a um terceiro, que ficará incumbido de realizar distribuições aos beneficiários quando o settlor se tornar incapaz e/ou vier a falecer.

Também é possível estabelecer casos específicos de distribuição do trust para beneficiários incapazes, visando assegurar pleno amparo para seus cuidados de saúde. O trust, entretanto, deve ser implementado com bastante cuidado, vez que não é regulamentado, atualmente, pela legislação brasileira, ensejando dúvidas relativas ao reporte e tributação – cenário que pode mudar caso entre em vigor o Projeto de Lei 4.173/2023.

Entendo que esses temas podem ser delicados para alguns, mas abordá-los é fundamental para que, caso venham a acontecer, a devida preparação já tenha ocorrido.

Espero vocês no meu próximo artigo no Inteligência Financeira.