Gestão do patrimônio: você conhece os benefícios do trust?

Um dos motivadores para a utilização dos trusts é a possibilidade de que, na sucessão, o patrimônio seja transmitido aos beneficiários sem inventário
Pontos-chave:
  • O trust não é uma ferramenta nova, mas continua sendo muito interessante para a gestão e perpetuação do patrimônio ao longo das gerações

Recentemente, foi publicada a Medida Provisória (“MP”) 1171/2023, que trata da tributação de investimentos e estruturas detidas no exterior por pessoa física residente fiscal no Brasil, dentre os quais estão os trusts. Por esse motivo, tratarei dos trusts no artigo desse mês, explicando o instrumento, dando dicas sobre como utilizá-lo e mostrando as eventuais mudanças que podem entrar em vigor se a MP 1171/2023 for transformada em lei.

A etimologia da palavra trust tem relação com a palavra nórdica treysta, que significa to trust, rely on, make strong and safe (confiar, contar, tornar forte e seguro). Inclusive, a tradução da palavra trust para o português é simplesmente “confiança” como substantivo ou “confiar” como verbo. Dito isso, não poderia deixar de parafrasear William Shakespeare: “love all, trust a few” (ame todos, confie em alguns).

Origem do trust

A origem do trust remonta a séculos atrás, tendo raízes no direito anglo-saxão. Na Inglaterra, à época das Cruzadas, os landowners (proprietários de terras) frequentemente partiam para a guerra. Durante suas ausências, eles transferiam a posse das terras aos chamados feoffees (indivíduos de confiança), com a expectativa de que estes as mantivessem seguras até seu retorno ou que utilizassem a terra e produzissem nela em prol de suas famílias.

A forma primitiva de trust, conhecida como use, foi objeto de discussão na Court of Chancery (corte que proferia decisões com base em justiça e equidade), mas apenas com a aprovação do Trustee Act 1850 foi estabelecido um conceito legal claro. Nele, surgiram elementos-chave, como a separação entre propriedade legal e beneficiária, a obrigação do trustee (agente fiduciário) de agir no melhor interesse dos beneficiários e a aplicação de princípios de confiança e boa-fé.

Posteriormente, os trusts se espalharam por outras jurisdições, sobretudo nos EUA (Estados Unidos da América), tornando-se uma forma de administração e transmissão da riqueza às futuras gerações. A legislação fiduciária foi adotada por muitos países ao redor do mundo, porém as regras variam significativamente, principalmente se estivermos diante do sistema romano-germânico, onde o direito de propriedade é tido, em geral, como indivisível.

O que é o trust?

Mas, em poucas palavras, o que é o trust? O trust nada mais é do que uma relação fiduciária pela qual o settlor (instituidor), por meio de um trust deed (contrato fiduciário), transfere a propriedade legal dos seus ativos ao trustee, que se torna responsável pela administração destes em favor de um rol de beneficiários. No mundo atual, um dos maiores motivadores para a utilização dos trusts é a possibilidade de que, na sucessão, o trust fund (patrimônio do trust) seja transmitido automaticamente aos beneficiários, sem que haja a necessidade de um processo de inventário.

Porém, o trust possui outras facetas. No próprio trust deed ou por meio de uma letter of wishes (carta de desejos), o settlor pode criar uma série de regras ou orientações que condicionam as distribuições aos mais variados eventos. É possível, por exemplo, estabelecer marcos de idade nos quais os beneficiários receberão as distribuições, bem como estipular montantes máximos por subnúcleos familiares.

As distribuições também podem estar sujeitas a ações por parte dos beneficiários, se o settlor quiser assim estabelecer. Dessa forma, ele poderá vincular as distribuições à apresentação de certidão de casamento ou união estável do beneficiário optando necessariamente pelo regime da separação total de bens, a emissão de declaração de antecedentes criminais, a finalização de cursos de graduação, a manutenção de trabalho regular, a realização de doações a entidades carentes, entre outras. O trust, ainda, pode prever distribuições a eventual curador em caso de incapacidade do settlor, não sendo ferramenta apenas de planejamento sucessório, mas também de governança.

Planejamento sucessório

Ocorre que, apesar dos benefícios aqui expostos, o trust ainda não é regulamentado pela legislação brasileira, ensejando dúvidas quanto ao reporte e tributação quando as partes são residentes fiscais no Brasil. Esse cenário, entretanto, pode ser alterado se a MP 1.171/2023 for aprovada pelo Congresso Nacional. A seguir, vamos abordar alguns desses pontos.

  1. Reporte
  2. Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (“DCBE”)

O Banco Central do Brasil (“BACEN”) orienta que a DCBE deve ser preenchida pelo beneficiário, quando este for residente fiscal no Brasil. Assim, seja o trust revogável (quando o settlor reserva o direito de desfazer a estrutura) ou irrevogável (quando o settlor renuncia a qualquer direito sobre o patrimônio) e seja o trust não discricionário (quando o settlor estabelece a parcela destinada a cada beneficiário) ou discricionário (quando o settlor concede ao trustee o poder de decisão sobre distribuições), a declaração sempre será realizada pelo beneficiário.

Tal orientação do BACEN não considera todas as possíveis características da estrutura, vez que trata o trust como um verdadeiro ativo e não como uma estrutura contratual específica, além de que, por vezes, o beneficiário não sabe de sua posição como beneficiário ou sequer possui acesso aos recursos. Sendo assim, é essencial a análise do caso concreto para verificar a melhor forma de realizar a declaração e considerar os possíveis efeitos fiscais decorrentes dessa decisão.

  • Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (“DIRPF”)

Instrumento contratual

No âmbito do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (“RERCT”), a Receita Federal do Brasil (“RFB”) indicou que o procedimento mais adequado seria tratar o trust como mero instrumento contratual, transparente para fins fiscais. A MP 1.171/2023 adota esse mesmo racional, indicando que devem ser declarados os bens e direitos detidos pelo trust e não o trust em si.

Porém, a maior dúvida sempre foi: quem deve declarar? Isso nunca foi esclarecido pela legislação brasileira, gerando grande insegurança jurídica. Em geral, sobretudo para trusts revogáveis e não discricionários, o usual é que o settlor proceda com a declaração, mantendo sob sua titularidade. No entanto, na hipótese de um trust irrevogável e discricionário, referida solução parece não se amoldar perfeitamente , vez que, em termos técnicos, nenhuma das partes é proprietária dos ativos.

Para tentar sanar esta insegurança jurídica, a MP 1.171/2023 dispôs que os ativos permanecem sob a titularidade do settlor após a instituição do trust e passam à titularidade do beneficiário somente no momento da distribuição ao beneficiário ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro. Assim, o texto estabelece um marco temporal a partir do qual a incumbência de declaração passa do settlor para os beneficiários.

  • Tributação

A tributação dos trusts sempre foi um desafio para os residentes fiscais no Brasil. Isso porque não há definição legal e, com isso, muitos entendimentos diversos podem ser adotados. A MP 1.171/2023, por sua vez, definiu regras tributárias para os trusts e, se aprovada, será a primeira lei que disciplina o assunto de forma ampla.

Impostos sobre rendimentos e ganhos de capital

Ao tratar dos trusts como estruturas transparentes, a MP 1.171/2023 determina que, durante a titularidade do settlor, este será tributado sobre os rendimentos e ganhos de capital conforme a natureza dos bens e direitos subjacentes detidos pelo trust (por exemplo, aplicações financeiras ou entidades controladas no exterior), sendo irrelevante, nesse momento, a existência do trust.

Mas e quando houver a transmissão aos beneficiários? Em 2020, a RFB publicou a Solução de Consulta 41, que enquadrou as distribuições feitas pelo trustee aos beneficiários residentes fiscais no Brasil como rendimentos oriundos no exterior. Com isso, deveria ser adotado o regime do carnê-leão, com alíquotas progressivas de até 27,5%.

Tal manifestação foi amplamente criticada por tributaristas que entendem que os valores distribuídos aos beneficiários têm natureza de herança, não sendo tributáveis pelo Imposto de Renda (“IR”), mas sim pelo Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (“ITCMD”). Apesar dos entendimentos divergentes, a RFB, órgão responsável pela cobrança tributária, já havia delimitado sua linha de pensamento.

A MP 1.171/2023, por sua vez, afirma que a distribuição ao beneficiário possuirá natureza jurídica de transmissão a título gratuito, consistindo em doação, se ocorrida durante a vida do settlor, ou transmissão causa mortis, se decorrente do falecimento do settlor. Assim, se o texto for aprovado como está, a transmissão aos beneficiários estará próxima à caracterização do fato gerador de ITCMD.

De toda forma, é importante analisar a lei estadual específica e observar as discussões relativas à inconstitucionalidade da cobrança do ITCMD na sucessão causa mortis de ativos no exterior (ou seja, quando o falecido possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior) e na doação desses bens (na hipótese em que o doador for residente ou domiciliado no exterior), vez que esta persiste até a edição de uma lei complementar, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 851.108.

Como vimos, o trust não é uma ferramenta nova, mas continua sendo muito interessante para a gestão e perpetuação do patrimônio ao longo das gerações. Além disso, à medida que o mundo evolui e surgem novos desafios, a legislação fiduciária continua a se adaptar. Será que, daqui a alguns anos, podemos ter um trust no Brasil ou alguma ferramenta semelhante que permita a administração dos ativos por profissionais especializados, nas hipóteses de incapacidade, sucessão e post mortem? Eu espero que sim.