SXSW 2023: Deu ruim, volta

A vice-presidente de Cultura da agência Africa, Renata Decoussau, faz um balanço do que viu no festival de inovação SXSW 2023, que terminou ontem, em Austin, no Texas
Pontos-chave:
  • Ainda que seja inegável o entusiasmo com a aceleração da inteligência artificial, foram muito os chamados de algumas das palestras mais esperadas para nos reconectarmos com a base da nossa existência humana e social
  • O que é que a gente precisa buscar lá do passado para poder seguir adiante?
  • Veja três ferramentas simbólicas para representar o que eu acho que não pode faltar na nossa mochila de ir pro futuro

O festival de inovação SXSW 2023, que aconteceu em Austin, no Texas, terminou neste domingo (19), depois de 10 dias de muitas experiências e conteúdos ricos.

Se eu tivesse que escolher uma imagem para representar o SXSW de 2023, eu usaria aquele meme em que vemos a sequência evolutiva de um primata até o homem moderno, o Homo sapiens, e este último virado pra trás dizendo: “deu ruim, volta”. Sabe qual é, né?

Ainda que seja inegável o entusiasmo com a aceleração exponencial da inteligência artificial, sobretudo o chatGPT, foram muito os chamados em letras garrafais de algumas das palestras mais esperadas, para a necessidade urgente de nos reconectarmos com a base da nossa existência humana e social. Até porque a gente nem vai conseguir desfrutar de toda essa maravilha prometida no futuro próximo se não estivermos bem.

Durante os dias que estive no festival, atentei muito mais ao que foi falado sobre o tema: gente.

Modelos alternativos

Não por coincidência, existiu uma trilha de conteúdo chamada Psicodélicos com 24 eventos. Houve ainda outras 19 sessões na trilha de Cannabis e mais 36 eventos no tema Mudança Climática. Ora, a gente é capaz de desenvolver um montão de trecos legais que tiram o fardo operacional de atividades cotidianas e amplificam nossas possibilidades, mas a gente ainda está longe de decifrar como faz pra ficar só com a parte boa disso na medida em que avançamos.

Estamos doentes no individual, no coletivo e intoxicando o planeta. Portanto, passou da hora de buscar maneiras de abrir a cabeça e resolver as coisas lá dentro de um jeito mais efetivo pra não se sentir tão vazio. Só a construção coletiva de modelos alternativos vão permitir que a gente feche essa conta.

Então, voltando ao meme, se deu ruim e é hora de voltar, eu fiquei pensando: O que é que a gente precisa buscar lá do passado para poder seguir adiante?

Revi minhas anotações, quebrei os protocolos do vocabulário corporativo e escolhi três ferramentas simbólicas para representar o que eu acho que não pode faltar na nossa mochila de ir pro futuro. São essas as minhas antigas novidades favoritas:

A lupa do otimismo

Resgatar nossa capacidade se sermos otimistas parece ser a única opção viável. Isso não significa sermos coniventes, ingênuos ou mesmo pouco críticos, mas sem acreditar que dá para melhorar fica ainda mais improvável que mudanças aconteçam. Diria que é hora de valorizar os emocionados, ser blasé já ficou fora de moda.

Na sessão de abertura do festival, o Simran Jeet Singh trouxe o conceito de “chardi kala” do Sikhismo, uma espécie de otimismo eterno, como prática que deve ser constante. Ele diz “Não se trata de escapismo ou de positividade tóxica. É sobre reconhecer os desafios pelo que eles são, e encará-los com os nossos valores.” O Sikhismo é uma religião do século XV, do Punjab, uma região hoje dividida entre Paquistão e Índia. Não é uma filosofia exatamente nova.

Nessa mesma linha, o Ryan Gellert, CEO da admirável Patagonia, disse não ter o luxo de ser pessimista a essa altura do campeonato e conecta de forma simples: “As empresas criaram os problemas climáticos, elas terão que resolver” ou “If you make a mess, clean it up”. É um otimismo com raiz em responsabilidade.

Tamanho bombardeio de informação e ruído nos faz muito distraídos. Nossas ações estão sendo monitoradas e transformadas em dados que provavelmente serão interpretados para reduzirem e simplificarem nosso poder de escolha.

Amy Webb trouxe essa reflexão e apresentou uma metodologia para conectar tendências, traçar cenários e desenhar um plano prático de ação para que nossas decisões sejam informadas, conscientes, responsáveis.

Ela traçou cenários pessimistas e otimistas para daqui 10 e 15 anos e jogou no colo da plateia a responsabilidade do futuro acontecer de uma forma ou de outra. Ela não é exatamente uma otimista no discurso, mas na prática apostou em despertar o desejo das pessoas em construir uma realidade mais positiva.

A lâmpada incandescente

Retomar a nossa capacidade de socializar e aprender a conflitar de forma saudável é a chave para desenvolvermos relacionamentos saudáveis e satisfatórios. Como uma lâmpada incandescente que produz luz através da tensão gerada na resistência do seu filamento, parece que qualquer atalho fácil para a felicidade acaba tendo o efeito contrário. A Cabala, disciplina e escola de pensamento judaico do século XII, também nos traz essa ideia de que resistir ao nosso comportamento reativo é o que mantém a Luz espiritual brilhando.

Sem dúvida a minha palestrante favorita, a psicoterapeuta Esther Perel, abordou o tema de uma outra AI – Artificial Intimacy – e o perigo de tentarmos remover os atritos dos relacionamentos. Ela coloca que a fricção é componente necessário do desejo. Nem sempre os conflitos entre pessoas precisam ser resolvidos, eles podem simplesmente serem administrados. Aprendemos sobre nós mesmos através do medo, da insegurança, da inconveniência que as relações podem trazer. Lidar com o incerto tem valor para mantermos nossa habilidade de lidar com obstáculos da vida. Sem esse músculo desenvolvido, ficamos cada vez mais intolerantes.

Ainda na palestra da Esther, uma metáfora interessante com fast food. Quando surgiu, a promessa de facilitar a vida e remover o trabalho de preparar a comida pareceu maravilhoso. Mas aos poucos fomos baixando a barra do que aceitamos como comida, passamos a aceitar qualquer coisa em nome dessa praticidade, e claro que essa conta também chega. Ela faz o paralelo com a qualidade da nossa presença e alerta: hoje estamos acostumados a ter atenção parcial das pessoas. É importante que a gente não baixe a expectativa das relações humanas, que a gente não normalize atenção pela metade.

Um outro painel interessante foi o “To trip or not to trip”, que discutiu se faz sentido tirar ‘a viagem’ do tratamento com psicodélicos. Está cada vez mais evidente para a ciência que os tratamentos vêm oferecendo um suporte valioso na cura de traumas, facilitam o acesso a sentimentos de conexão profunda consigo e com o mundo, substitui estresse por curiosidade, e reduz julgamentos negativos dos pacientes sobre si mesmo. Foi um debate bem interessante e no final, a PhD Rachel Yehuda, foi categórica em afirmar que não dá pra desconectar as coisas, que a riqueza da experiência da viagem está em um processo denso, reverbera biologicamente, psicologicamente e sistemicamente, ou seja, a viagem…é tudo.

Uma xícara de açúcar

Qual foi a última vez que você pediu uma xícara de açúcar ao seu vizinho? A comodidade do consumo a um clique pode estar nos roubando aos poucos essa outra base fundamental da nossa existência social, algo como a capacidade da cooperação mútua. Douglas Rushkoff, autor do livro “Team Human”, chama a atenção sobre a importância de convivermos e cooperarmos como espécie, isso é inclusive o princípio central da Origem das Espécies de Darwin. Estarmos integrados plenamente na nossa comunidade, trocando favores não financeiros com nossos vizinhos seria um caminho fundamental para nossa ressocialização, como ele diz. Ele ainda defende que deveríamos trocar a descarga de dopamina do clique tecnológico pelo fluxo de oxitocina da conexão com as outras pessoas e que através da regeneração do tecido social é que vamos resolver as questões econômicas.

O painel sobre inovação para moradias populares com Christiane Pelajo, Paulo Boneff, líder global de responsabilidade social da Gerdau, Jorge Melguizo, consultor e ex-secretário de desenvolvimento social de Medellín, e Edu Lyra, co-fundador e CEO da Gerando Falcões, jogou ainda mais luz para a necessidade de soluções de impacto econômico e social integradas, considerando comunidades no centro. Jorge Melguizo, em uma fala muito intensa e poderosa elaborou que o problema de moradia não se resolve construindo casas simplesmente. É preciso desenvolver um sistema de habitação e não se combater a violência com mais polícia. É preciso formar cidadãos com dignidade, capazes de participar da sociedade. O oposto de violência é convivência. Eles chamaram a atenção também para o fato de não haver quase pessoas negras na plateia e para o abismo entre os mundos que acessam toda a tecnologia apresentada no festival.

Bem, durante o período do festival, acompanhamos ainda a quebra do Sillicon Valley Bank, novos anúncios de demissões em massa e o lançamento do ChatGPT-4. É tanta euforia e desconfiança pra equalizar, mas também estamos cercados de novas pistas de quais são coisas importantes que a gente não pode perder nessa jornada. Deixo você por aqui, trazendo por fim uma dica do livro: “Futuro Ancestral”, do Aílton Krenak, que não estava no SXSW mas é uma referência para mim do pensamento filósofo originário do nosso Brasil mesmo.