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Dicas de leitura: 10 questões sobre o racismo contra os negros no Brasil
Em “O pacto da branquitude”, a doutora em psicologia Cida Bento, eleita pela revista britânica “The Economist” uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, argumenta que a essência do racismo está na ideia de que existe uma cor “normal”, a branca. E que essa premissa impede qualquer mudança na hierarquia das relações sociais, principalmente no mercado profissional. A cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), uma referência na promoção da equidade em grandes empresas, usa no livro sua experiência como recrutadora de talentos para apresentar evidências sobre o que chama de um “acordo tácito” entre brancos que não querem perder privilégios. Ela deu a seguinte entrevista ao Valor:
Ao ingressar no mestrado em psicologia na PUC-SP, a sra. passou a estudar mais o tema da branquitude, em uma pesquisa que se desdobrou em um trabalho de doutorado e que agora é um dos temas centrais do seu livro. O que é a branquitude?
Cida Bento: Branquitude é diferente do “ser branco”. É uma relação de dominação, similar a tantas outras, tais como de gênero, classe e orientação sexual, em que se constata a supremacia de um grupo sobre outro. No caso da branquitude, estamos tratando da supremacia do grupo branco, que é construída e fortalecida de maneira silenciosa, e que se expressa, por exemplo, na presença majoritária de pessoas brancas em lugares de poder, em posições consideradas mais nobres, onde os salários são maiores e decisões importantes que afetam as instituições e as sociedades são tomadas.
Muitas empresas dizem se preocupar com diversidade e equidade nos seus quadros, inclusive colocando esses objetivos entre suas listas de missões e valores. Como atingir essas metas se a maioria das lideranças ainda é formada de homens e pessoas brancas?
Bento: Fazendo diagnósticos que auxiliem a organização a olhar sua “foto” no que diz respeito a gaps na entrada e na ascensão de funcionários, na oferta de treinamentos, com mentorias de pessoas não brancas e mulheres. E, a partir dos resultados, desenhar, compartilhadamente, um plano de ação para tornar a instituição mais equânime. Esse processo combina ações simultâneas de formação e sensibilização para aprofundar o conhecimento sobre as desigualdades, em especial no campo das relações raciais. Além de ações afirmativas concretas de mudança de processos, definindo metas e métricas que impulsionem a equidade.
Entender como as desigualdades de gênero e raça são engendradas dentro de instituições públicas e privadas está no centro das suas pesquisas. O que a sra. descobriu nos últimos anos sobre práticas discriminatórias nos ambientes de trabalho que mais a impressionou?
Bento: Foi o conceito de “sistema meritocrático”, que explica ou justifica as desigualdades dentro das organizações.
A sra. comenta no livro que fala-se muito da herança da escravidão e dos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase não se menciona a herança escravocrata e os reflexos positivos entre pessoas brancas. O que é a herança escravocrata?
Bento: É a herança concreta e simbólica que indivíduos brancos recebem, querendo ou não, por descenderem de um grupo que escravizou pessoas ao longo de quase quatro séculos, e que define um ponto de partida que coloca esse grupo em um melhor lugar social que outros. Essa condição “melhor” é muitas vezes chamada de sistema meritocrático.
O que está avançando hoje na agenda antirracista e no combate ao preconceito?
Bento: O debate, ainda incipiente mas crescente, que envolve diferentes segmentos sociais, instituições e pessoas não negras; e cria condições para a implementação de ações afirmativas concretas em áreas como educação, trabalho, saúde, moradia e segurança.
Uma outra leitura: A sociedade desigual
Momentos históricos do Brasil, como a Revolta dos Malês, na Bahia, e os anos pós- escravidão, são usados pelo economista Mário Theodoro no livro “A sociedade desigual” para explicar os caminhos que transformaram um país majoritariamente negro em um “viciado” em injustiças sociais. Para o ex-diretor da área de estudos internacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segmentos que deveriam interferir apenas na qualidade de vida da população, como saúde e educação, têm papéis decisivos na construção da desigualdade entre brancos e negros.
Ele deu a seguinte entrevista ao Valor:
O sr. diz no livro que o racismo no Brasil é onipresente – pode aparecer numa sentença judicial, mais pesada para uma pessoa negra; na recusa de um emprego, na abordagem diferente da polícia. Existe um racismo notadamente brasileiro?
Mário Theodoro: O racismo é, infelizmente, um fenômeno único, que hierarquiza indivíduos e grupos em razão de sua origem e fenótipo. Mas ele assume características específicas em função da história de cada sociedade. No Brasil, como em outros locais que se desenvolveram a partir da adoção do regime escravista, ele se instituiu como um elemento central da chamada sociedade desigual. Foram três séculos e meio de um regime produtivo em que a clivagem racial delineava o processo de produção. Durante todo esse tempo, era a legislação vigente que balizava as diferenças. O racismo como justificativa da desigualdade vai ganhar protagonismo sobretudo a partir dos anos 1850, quando a escravidão começa a ser posta em xeque. Nesse momento, o discurso racista, da hierarquia das raças, e da superioridade ariana, ganha intensidade. A perspectiva eugênica condenou a raça negra, responsabilizando-a por todas as mazelas sociais e anunciando que países como o Brasil, de maioria negra, estariam fadados ao insucesso. A própria política de imigração europeia, largamente subvencionada pelo Estado, tinha como escopo maior o branqueamento da sociedade brasileira.
Uma das suas linhas de estudo foca no papel da educação na construção da desigualdade. O sr. defende que vivemos um apartheid educacional, em que alunos de classe média e alta não se relacionam com estudantes de famílias pobres ou colegas negros. Como mudar isso?
Theodoro: O racismo não é apenas um elemento que atravessa as relações entre indivíduos, mas instituições públicas e privadas. Há um relevante debate no Brasil sobre a relação entre educação, mobilidade e desigualdade social. Contudo, pouca ênfase é dada à educação como espaço de reprodução da desigualdade racial. A educação ainda é um elemento central de transmissão das desigualdades entre negros e brancos. A expansão de uma educação privada que não pode ser acessada pelas classes populares reduziu a possibilidade de convivência interracial para os estudantes brancos das classes médias e altas. De outro lado, a escola pública, onde está a grande maioria de alunos negros, continua sendo enfraquecida por restrições orçamentárias mas, principalmente, pela ausência de um projeto pedagógico inclusivo e racialmente igualitário. O racismo está presente na educação tanto na diferença de qualidade das escolas como na ausência de uma maior convivência racial no ambiente escolar privado.
Oitenta por cento das pessoas que recorrem ao Sistema Único de Saúde são negras, segundo levantamento das Nações Unidas. O que o sr. descobriu sobre desigualdade racial e o acesso à saúde no Brasil?
Theodoro: O SUS, que surge na esteira da ideia de um sistema de proteção social universal, é um dos mais engenhosos legados da Constituição de 1988. O seu desenho associa a ação do Estado à ideia de uma cidadania extensiva a toda a população. Entretanto, como muitos estudos mostram, a universalização e a qualidade dos serviços ofertados têm esbarrado na falta de recursos. E, desse modo, o enfraquecimento do sistema, cuja clientela é majoritariamente negra, amplia a exclusão racial na saúde, aprofundando uma distribuição seletiva do bem-estar. E, mesmo quando opera conforme suas prerrogativas, observam-se problemas no atendimento à população negra. Pesquisas publicadas pelo governo demonstram, há anos, que o SUS fornece serviços de pior qualidade para os grupos afrodescendentes. As mulheres grávidas negras têm acesso a um número menor de consultas pré-natal e o tempo médio dos médicos no atendimento a pessoas negras tende a ser mais reduzido do que o dispendido com pacientes brancos. A sociedade desigual necessita de ações de combate direto ao racismo. Sem isso as políticas sociais clássicas, por mais bem desenhadas que sejam, continuarão a suscitar diferenças.
As cotas raciais nas universidades são consideradas um dos poucos instrumentos formais de contraposição ao racismo no Brasil. Como o sr. vê as cotas hoje?
Theodoro: As cotas raciais constituem o principal instrumento de ação afirmativa, ampliando oportunidades a jovens negros e combatendo o preconceito, o lado mais desumano do racismo diuturno. A elite brasileira nunca viu com bons olhos essa política, apesar da ideia não ser nova. Outras cotas que não as raciais já aconteceram. A Lei dos Dois Terços, do início da década de 1930, pretendia substituir os operários imigrantes – que nas primeiras décadas do século XX chegaram a abarcar 90% dos empregos na indústria paulista – pela mão de obra nacional. Na educação, a chamada Lei do Boi, entre 1968 e 1985, proporcionou a entrada direta de filhos de fazendeiros nas universidades com cursos de temática rural, com um montante de vagas de cotistas que alcançava 80%. As cotas sempre foram bem assimiladas até beneficiarem a população negra. Isso é compreensível em uma sociedade avessa a mudanças, com uma elite que não quer perder privilégios.
As cotas terão um impacto no futuro?
Theodoro: Elas têm um grande potencial para quebrar os alicerces de uma sociedade desigual em um futuro próximo. O acesso mais abrangente ao ensino superior vai ser muito benéfico ao país e deixará sua elite mais da cor do seu povo. Os argumentos contra as cotas não se sustentam. Seja o do perigo da divisão racial no país – já não somos assim? -, o do aumento do ódio racial, o do fim do conceito de igualdade perante o Estado. Além desses, o mais utilizado é o da quebra do princípio da meritocracia. Mas a meritocracia no Brasil, em face das abissais diferenças entre negros e brancos, significa privilégios herdados e o reforço da enorme desigualdade em favor da população branca. As vagas nos cursos não são exclusividade de um grupo que delas usufruíam. São de propriedade da sociedade brasileira e administradas pelo Estado, que pode estabelecer diferentes critérios de acessibilidade em função do interesse público. E, desse ponto de vista, buscar a inclusão de segmentos mais vulneráveis, desde que preencham os critérios exigidos – caso dos cotistas – é o melhor caminho para a busca de uma sociedade mais inclusiva.
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