Não há mistério na constatação de que o escritor inglês John le Carré, nascido em 1931, se tornou lendário pela qualidade que imprimiu aos livros de espionagem. Nem é preciso ser um detetive ou um repórter investigativo para descobrir quais caminhos trilhou para ser considerado um reinventor do romance chamado genericamente de policial.
Para os leitores desse segmento – milhões e milhões de pessoas mundo afora – e para muitos críticos de literatura, ele elevou os livros policiais a patamares de excelência ao aprimorar forma e conteúdo de modo quase sem paralelo. São obras muito bem escritas e que fugiram do padrão mais tradicional de se buscar simplesmente o “quem matou quem?”. Seus personagens são extremamente bem desenhados e se envolvem em tramas labirínticas, que exigem atenção do leitor. E, fugindo ao esquema de mocinhos de um lado e bandidos do outro, todos (ou quase todos) têm padrões morais discutíveis.
Pseudônimo de David John Moore Cornwell, escolhido por ele quando começou a escrever e ainda trabalhava no Serviço Secreto do Reino Unido, durante a Guerra Fria, Le Carré voltou a mostrar algumas dessas características mais marcantes em “Silverview” (ainda sem tradução em português), obra publicada em outubro, dez meses depois de sua morte, em dezembro do ano passado, aos 89 anos. O nome do livro é o mesmo da casa onde se passa uma das cenas mais importantes da trama, no interior da Inglaterra.
No Brasil, os livros de Le Carré têm sido editados pela Record. Segundo a assessoria de imprensa da editora, “Silverview” sairá em português. O mais recente lançamento, em setembro, foi “Agente em campo”, do original “Agent Running in the Field”, a última obra publicada ainda em vida pelo escritor, e trata dos dilemas de “Ned”, um agente secreto inglês. Na época da sua divulgação em inglês, foi dado destaque pela imprensa às críticas feitas pelos personagens ao Reino Unido e à “pura loucura do Brexit”. Boris Johnson, atual primeiro-ministro, é descrito como um ministro de Relações Exteriores ignorante.
O que se espera de um bom romance policial? Por que ainda fazem tanto sucesso Agatha Christie e Arthur Conan Doyle décadas depois da publicação dos seus livros, que poderiam ser considerados datados? Como se sabe, esse tipo de livro atrai muitos leitores porque é uma forma de se transpor para um outro mundo e/ou outra época com a certeza quase absoluta de que, no fim da história, o criminoso será descoberto e, com grande frequência, punido.
Ou seja, uma oportunidade de escapar da realidade difícil de muitos. Saber que haverá “um final feliz”, como num conto de fadas moderno e sem príncipes encantados, é um ímã para muitos leitores. Segundo o instituto de pesquisas NPD, dos Estados Unidos, os thrillers são a terceira maior categoria de livros, com vendas de impressos e de e-books atingindo 14,1 milhões de unidades no acumulado do ano até o fim de maio. Essas vendas são ainda mais significativas em outros países, como no Reino Unido.
Durante a pandemia, a procura por esse gênero de livros aumentou e cresceu também a oferta de livros policiais mais amenos, que garantem conforto ao leitor, mas esse não é o caso de “Silverview”. A trama gira em torno de um personagem ambíguo, Edward Avon, imigrante polonês que, logo se descobre, é ex-agente do MI6, serviço secreto do Reino Unido. Excêntrico na forma como se veste e se comporta, ele se aproxima do outro personagem central do livro, Julian Lawndsley, bem mais jovem, que ganhou dinheiro no mercado financeiro e resolve mudar de vida ao abrir uma livraria numa cidadezinha do interior da Inglaterra. Em torno dessas duas figuras, Le Carré vai construindo uma história de mistério sobre qual é o verdadeiro papel de Avon e da sua esposa, a dona da casa chamada de Silverview e figura igualmente fascinante.
Poucos dias depois do seu lançamento, “Silverview” estava na lista dos livros de ficção mais vendidos do “New York Times”. A carreira de Le Carré durou 58 anos, durante os quais escreveu 25 romances e uma autobiografia, vendendo mais de 60 milhões de cópias em todo o mundo. E várias obras suas foram posteriormente adaptadas para filmes e séries de TV. Quando ganhou o Prêmio Olof Palme (batizado em honra do ex-primeiro ministro sueco), ele doou os US $100 mil recebidos para a organização Médicos Sem Fronteiras.
Silverview – John le Carré
Viking, 215 págs., US$ 28,00
Agente em campo -John le Carré -Trad.: Marta Chiarelli
Record, 266 págs., R$ 54,90