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A mirabolante história do financista com cabeça a prêmio na Rússia
Ainda no século XIX, Nikolai Gogol, autor cuja nacionalidade é disputada por russos e ucranianos, retratava o império como a terra do absurdo, do imprevisível, mas também do estranhamente verossímil.
Essa é a lógica por trás da história, por exemplo, do homem que perdeu o nariz para reencontrá-lo andando pelas ruas de São Petersburgo como se nada tivesse acontecido no conto “O nariz”, de 1836. O escritor é referência até os dias de hoje para analistas que tentam explicar tudo o que parece inexplicável na Rússia. Afinal, pode ser tênue a linha que separa a provável realidade da possível ficção. Quem conhece e protagonizou histórias nesse país fascinante, às vezes aterrador, sabe que é a mais pura verdade. A do financista convertido em ativista político Bill Browder é rocambolesca.
Relatada no livro “Ordem de bloqueio: uma história real sobre corrupção e assassinato na Rússia de Putin”, tornou-se rapidamente um best-seller nos Estados Unidos. De guru bem-sucedido das finanças e maior investidor privado da bagunçada Rússia pós-soviética, ele se tornou um dos maiores inimigos declarados do Kremlin, que o acusa de sonegação de tributos e evasão de divisas na ordem de US$ 230 milhões.
A versão dele da história é outra. Browder garante que o governo russo, desde os servidores menos graduados aos da mais alta patente – entre eles o próprio presidente Vladimir Putin – estariam envolvido esquema bilionário de corrupção que funciona há anos com conivência de instituições financeiras inclusive no Ocidente. Eles teriam feito desaparecer os US$ 230 milhões e muito mais.
O caso montado por Browder, assessores e amigos próximos ficou imenso. Tornou-se questão global. Se antes a ideia era apenas rebater a tese do governo russo contra ele e a atuação de suas empresas, tornou-se a missão da sua vida após a morte do advogado e amigo próximo Sergei Magnitsky. Este último, depois de muito escarafunchar em arquivos físicos e digitais, de recorrer a fontes decisivas para apontar os verdadeiros culpados do sumiço do dinheiro, acabou preso numa cadeia russa, onde foi encontrado morto em 2019.
Browder conta com riqueza de detalhes armadilhas russas que atribui às mais altas esferas do poder daquele país e as várias versões que o lado russo teria criado para enquadrá-lo ao longo dos anos. Enumera o desaparecimento de muitos personagens envolvidos de alguma maneira ao caso, entre eles nomes que estamparam as primeiras páginas dos jornais internacionais nos últimos anos, como o de Boris Nemtsov, que se tornou amigo de Browder logo no início de sua saga. Considerado um dos maiores inimigos do Kremlin, foi assassinado quase em frente ao centro do poder russo em 2015.
Ele também associa o suposto envenenamento do ativista político e jornalista Vladimir Kara-Murza, um dos melhores amigos de Nemtsov, à sua proximidade com as investigações. Kara-Murza, por sinal, preso desde abril deste ano, acusado de disseminar fake news sobre a guerra na Ucrânia, acaba de vencer o prêmio Václav Havel de Direitos Humanos.
Todos os elementos do dossiê criado por Browder e colaboradores durante as últimas décadas acabaram dando origem à chamada Lei Magnitsky, hoje presente em 34 países: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália, os 27 países da União Europeia, Noruega, Montenegro e Kosovo, além de territórios britânicos ultramarinos e protetorados da Coroa. Nova Zelândia e Japão também devem encampá-la. É partir dela que muitos russos têm sofrido sanções do Ocidente desde o início da guerra na Ucrânia.
Segundo Browder, mais de 500 indivíduos e entidades foram sancionados a partir dessas leis, que já foram aplicadas também “aos sauditas responsáveis pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi; a funcionários chineses que montaram os campos de concentração de uigures em Xinjiang; aos generais de Mianmar responsáveis pelo genocídio de Rohingya; aos irmãos Gupta, que sucatearam o governo sul-africano; e a centenas de outros por atos igualmente perniciosos”, conta no livro, acrescentando que, “para cada pessoa ou organização sancionada, há milhares de violadores de direitos humanos e cleptocratas que estão aterrorizados esperando sua vez”.
Há décadas Browder tem a cabeça a prêmio na Rússia. Há décadas o ex-CEO e cofundador do Hermitage Capital Management enfrenta o poder russo de peito aberto. Browder certamente sabe com quem está lidando. Afinal, manteve-se no topo da cadeia alimentar do mundo das finanças na Rússia por pelo menos uma década, até 2005, quando foi expulso do país e teve suas empresas fechadas.
Se fosse filme, sua saga seria um daqueles thrillers eletrizantes. Mas os elementos de traição, espionagem, assassinatos, corrupção nacional e transnacional, complôs e conspirações são tantos que até para enredo cinematográfico parecem exagerados. E é isso o que prende o leitor até a última página, a despeito de tropeços entre um registro informal demais e uma tradução que por vezes soa artificial.
Browder é personagem incômodo em muitos países. E até controverso para quem o acompanhou de dentro do mundo das finanças, como revelou ao Valor um banqueiro que conhecia a história de perto. Mas não se pode negar que sua persistência tenha dado origem a um importante filtro para impedir a livre movimentação transnacional de recursos de origem no mí
“A lei Magnistky veio para ficar”, orgulha-se Browder.
Ordem de bloqueio
Bill Browder Trad.: Alexandre Raposo, Claudia Mello Belhassof e Paula Diniz Intrínseca, 336 págs., R$ 69,90
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