Bono: Como a mente do vocalista do U2 funciona
Há poucos egos autodeclarados na história da cultura pop. Por maiores que sejam as personalidades dos grandes astros — de qualquer disciplina —, são poucos os que falam abertamente sobre como gostam de ser bajulados, como querem ser reconhecidos e como descaradamente exercitam seu carisma nuclear.
A vasta maioria dos popstars ou leva naturalmente uma vida extravagante, como se aquilo fosse apenas uma recompensa natural de seu próprio trabalho, ou prefere a reclusão. Entre um extremo e outro há uma enorme fatia que finge modéstia ao falar de suas próprias habilidades — algo que não acontece em outras áreas diferentes da cultura, como na política e nos esportes, por exemplo. Bono, fundador e vocalista do grupo irlandês U2, é um dos raros desta espécie a não ter problemas em reconhecer o próprio ego.
Ele sempre assumiu-se narcisista e, ainda que o ar messiânico da primeira fase da banda pareça contrastar com isso, ele sabe que é um dos grandes responsáveis por transformar uma promissora banda pós-punk de um canto esquecido do Reino Unido em um dos maiores fenômenos comerciais da virada do milênio.
Por mais que reforce a importância do U2 como banda, Bono é uma marca tão importante quanto seu próprio conjunto musical, e a ideia de uma autobiografia escrita pelo irlandês parece um convite inevitável a uma extensa autocelebração sobre a própria maestria.
Mas “Surrender: 40 músicas, uma história”, que está sendo lançado simultaneamente em todo o mundo, dribla o leitor justamente ao tratar a própria egolatria como uma espécie de defeito de caráter. Bono assume a condição de escrever sobre sua própria vida bem antes de seu fim (afinal, tem apenas 62 anos de idade) como uma forma de ironizá-la. E ao começar o livro retratando-se a partir de mesa cirúrgica sem saber se sairá vivo dali, ele conta sua história de forma não linear, dividindo os capítulos pelos títulos das canções que compôs, (quase todas) em ordem cronológica.
Descobrimos a partir de sua própria narrativa como a história de sua banda — ao contrário das biografias dos grandes nomes do pop — só é conhecida de seu público mais fiel. Não há momentos clássicos na formação do U2 que tenham entrado para a história da música pop. A banda entra neste panteão já quando torna-se gigantesca e seus grandes momentos históricos são reconhecíveis por qualquer um que seja contemporâneo da banda.
De quando trouxeram a Irlanda para o mapa do pop com “Sunday Bloody Sunday” a sua participação no Live-Aid, da sua descoberta dos Estados Unidos nos discos “The Unforgettable Fire”, “The Joshua Tree” e “Rattle and Hum” ao redesenho da Europa pós-socialista dos clássicos “Achtung Baby” e “Zooropa”.
E enquanto repassa esses momentos, Bono vai nos apresentando a seu círculo interno, sua relação com cada integrante da banda, seu longo relacionamento com a namorada de adolescência Alison Stewart (hoje Ali Hewson), a frutífera relação com o empresário Paul McGuinness e cada passo que tornou o U2 um dos maiores nomes da história do pop, a paternidade, a fortuna, a relação com os pais e amigos de infância.
Esmiúça a história das canções, das gravações dos álbuns e das turnês para deleite dos musicólogos, mas aproveita para fazer elucubrações sobre assuntos tangentes que acabam o fazendo crescer como ser humano: sua relação com a música, a fama, a inspiração, a Irlanda, a religião e os negócios fazem o livro fugir do que se espera de uma biografia de um astro do rock.
“Quero deixar registrado que não acho que a música pop tenha qualquer obrigação de ajudar além de ser uma fonte de três minutos de pura alegria, uma melodia que é como um beijo roubado, uma pílula da verdade cantada e engolida. Dourada ou não”, escreve o vocalista do U2.
“A música para mim sempre foi uma tábua de salvação em tempos de turbulência. Ainda é. Isso é suficiente para justificar sua existência; o sagrado serviço de levar uma alma de um ponto a outro não deve ser subestimado. Somente o fato de dar a alguém um motivo para se levantar da cama de manhã já conta muito. A música como o amor que expulsa todo o medo. A música é a sua própria razão de existir.”
São insights como este que transformam “Surrender” em um ótimo livro, mais que uma biografia ou um livro de memórias. A autoindulgência sobre si mesmo transforma-se em autoironia e faz com que o livro flua menos arrogante do que possa parecer, embora decaia bastante em sua terceira e última parte (como a própria história do U2), em que Bono parece apenas enfileirar como conhece celebridades de todos os parâmetros, narrando encontros com Gorbachev, Obama, Steve Jobs, Prince, Mandela, Bill Gates e Paul McCartney como se fossem mera rotina — e não apenas negócios. Há um interminável capítulo que parece apenas justificar o fato de ter posado para uma foto ao lado de George W. Bush.
Mas essa parte final do livro não chega a macular os dois terços iniciais, em que mergulhamos em uma viagem fantástica contada por seu protagonista. Como em “Many Years from Now”, que Barry Miles escreveu com Paul McCartney; o primeiro volume das “Crônicas” de Bob Dylan; “Como a música funciona”, de David Byrne; ou “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso; em “Surrender” lemos um autor de nossos tempos contextualizando sua própria vida como se ela mesma fosse uma obra de arte. Uma consciência artística que torna a narrativa histórica suculenta e saborosa, como só os verdadeiros bon vivants sabem fazer — mas poucos sabem contar tão bem. Viver é melhor que sonhar, já disse outro destes.
Serviço
Surrender: 40 músicas, uma história – Bono. Trad.: Rogerio W. Galindo. Intrínseca, 640 págs., R$ 99,90
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