Brasil tira nota baixa em bem-estar financeiro. O que falta para a educação financeira avançar?

Especialistas apontam desigualdade de renda e falta de incentivo ao ensino de finanças pessoais nas escolas

Após anos de questionamentos sobre o que é educação financeira e qual é sua importância, um novo estudo promovido pelo Banco Central vê algumas boas notícias e outros tantos motivos para preocupação.

O BC produziu o Relatório de Letramento Financeiro a partir de um levantamento que teve como base a metodologia da Rede Internacional de Educação Financeira (Infe), da OCDE. O estudo foi feito em parceria com o Fundo Garantidor de Créditos (FGC) e divulgado no fim de novembro.

Por um lado, o estudo encontrou números positivos em frentes como inclusão financeira e comportamento financeiro. Por outro lado, o país identificou um nível de bem-estar financeiro baixo para os padrões internacionais. E, também, um conhecimento financeiro distribuído de forma desigual.

O que é o bem-estar financeiro?

O bem-estar financeiro é um critério criado pela Agência de Proteção Financeira ao Consumidor (CFPB) dos Estados Unidos.

A definição de bem-estar aqui é “um estado em que você consegue cumprir com suas necessidades financeiras, lidar com choques financeiros e, ao mesmo tempo, ser capaz de se planejar e de conquistar sonhos”.

Brasil tira nota baixa em bem-estar financeiro

Em uma escala que vai de 0 a 100, a nota brasileira ficou em 45,7, que o BC define como “relativamente baixa”. Entre as razões citadas para a conta estão percentuais altos de brasileiros que disseram que estão só “se virando financeiramente” (48,6%), que dizem nunca ou raramente sobra dinheiro (44,8%) e preocupados que o dinheiro não vai durar (36%).

Foram ouvidas cerca de 2 mil pessoas, de 16 a 79 anos, entre março e abril de 2023.

Mas o que explica a dificuldade persistente em avançar com a educação financeira, mesmo 13 anos após ser instituída uma estratégia nacional para o tema? Quais os desafios que temos no horizonte e como acelerar o processo?

Para responder a essas perguntas, ouvimos quatro especialistas no tema. Lembrando que a Inteligência Financeira oferece uma planilha gratuita de planejamento financeiro, para te ajudar a começar 2024 com as contas organizadas.

O que é educação financeira? E letramento financeiro?

Antes de mais nada, vale explicar o que é educação financeira e letramento financeiro, dois termos presentes nos resultados.

De acordo com a definição da OCDE, “a educação financeira pode ser definida como o processo pelo qual consumidores e investidores melhoram sua compreensão sobre produtos, conceitos e riscos financeiros”.

“E obtêm informação e instrução, desenvolvem habilidades e confiança, de modo a ficarem mais cientes sobre os riscos e oportunidades financeiras, para fazerem escolhas mais conscientes e, assim, adotarem ações para melhorar seu bem-estar”, conclui a organização.

Já “letramento financeiro” é a parte prática da educação financeira. Segundo o BC, “é um conjunto de conhecimentos, atitudes e comportamentos adquiridos por meio da educação financeira”.

O que falta para a educação financeira avançar?

De acordo com os especialistas ouvidos pela Inteligência Financeira, uma boa dose da conta está na estrutura da sociedade brasileira. “O mais pesado de tudo é o nosso nível de desigualdade. Há de se tomar um certo cuidado ao analisar os dados considerando se trata de um país que tem renda média baixa”, observa Carla Beni, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“A economia basicamente divide a sociedade em dois grupos, quem gasta mais do que ganha e quem gasta menos do que ganha. Se você gasta mais, você paga juros ao mercado. Se você gasta menos, os instrumentos do mercado te permitem ampliar seu patrimônio”, explica.

Portanto, a desigualdade de renda já se tornaria um ponto de partida difícil. Os resultados verificados pelo BC identificaram uma desigualdade na distribuição do conhecimento.

“Os números indicam que o letramento financeiro dos brasileiros ainda pode melhorar, especialmente para alguns grupos específicos, como mulheres, idosos, pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos e moradores da região Nordeste“, afirmou Luis Gustavo Mansur Siqueira, chefe do Departamento de Promoção da Cidadania Financeira (Depef) do BC, em publicação no site da autarquia.

‘Quanto mais baixa a renda, mais relevante é administrar bem’

O relatório do BC chegou a uma média nacional de letramento financeiro de 59,6 (de 0 a 100). Portanto, um número mais alto do que o critério de bem-estar financeiro. No entanto, ao olhar os números na minúcia, verifica-se a discrepância citada pelo servidor do BC.

Enquanto pessoas com mais de cinco salários mínimos tiveram nota de 64,3, quem ganha até dois salários ficou apenas com nota 56. A professora Carla Beni ressalta que é este o grupo para o qual a educação financeira tem potencial ainda mais transformador.

“Quanto mais baixa for a renda, mais relevante é para que a pessoa consiga administrar melhor, no sentido inclusive de esticar o dinheiro dela, para que ela entenda que o dinheiro traz opções”, explica a docente.

Para os especialistas, o grande gargalo hoje está em avançar com o tema nas escolas. “A construção para um país mais educado financeiramente passa muito pela educação básica”, observa Luis Felipe D’Ávila, especialista em educação financeira da Neon. “Hoje, dependemos muito da curiosidade das pessoas, que geralmente só nos procuram para tratar do tema após passarem por um perrengue financeiro”, completa.

Educação financeira nas escolas

Um ponto ressaltado positivamente é o fato de a Base Nacional Comum Curricular ter incluído em 2020 o tema da educação financeira como obrigatório. O que faltaria agora, portanto, seria uma maior capacitação dos professores para lidar com o tema dentro de sala de aula.

“A educação financeira entrou na BNCC de uma forma transversal, ou seja, professores de outras matérias, como matemática, geografia e português, que devem ensiná-la. A questão é que muitas vezes os próprios professores não foram educados financeiramente”, afirma Letícia Camargo, planejadora financeira pela Planejar.

Para a especialista, um dos caminhos possíveis seria justamente o de ensinar os docentes a gerirem as próprias finanças, o que poderia ajudá-los a passar o conhecimento adiante.

Carla Beni observa que há em geral uma sobrecarga de trabalho dos professores nas escolas públicas e que são necessários outros estímulos. Ela ressalta que materiais de alta qualidade foram produzidos por entidades como a CVM, mas que dificilmente há estímulo para os docentes investirem nessa formação.

Já Fernando Almeida, professor da FIA Business School, ressalta o papel das empresas nesse trabalho. “Eu tenho notado que os próprios bancos tem ajudado a disseminar da utilização correta dos produtos financeiros, é algo que não é só o governo que tenha o papel de fazer isso”, afirma.

Sinais positivos: jovens mais conscientes e inclusão financeira

Para Almeida, os dados por idade trazem um bom indicativo. Se é verdade que os idosos têm mais dificuldades, o relatório também identificou avanços significativos entre as gerações que estão vindo.

“Na perspectiva de idade temos evoluído. Vemos no relatório que 75% das pessoas que tem o hábito de poupança estão na faixa de 25 a 34 anos”, ressalta. A nota média entre quem tem de 16 a 24 anos é de 64,5, ao passo que entre os idosos está abaixo de 54.

Outro ponto, este destacado pelo BC, é o da inclusão financeira. Três em cada quatro brasileiros (74%) conhecem 13 ou mais produtos financeiros, um índice alto. Um dos destaques ficou para o Pix, hoje o produto financeiro mais conhecido da população — 91,6% disseram conhecer o sistema de pagamentos.

A nota mais alta dos brasileiros foi o comportamento financeiro. O resultado vem do fato de a grande maioria dos entrevistados (81,8%) declarar que sempre ou frequentemente pagarem as contas em dia. A maior parte dos brasileiros diz ainda refletir antes de fazer uma compra (81,4%) e adotar mecanismos de controle do orçamento (79,6%).