Best-seller prende o leitor ao mostrar China arcaica e moderna
Vinte anos depois da sua publicação original na China, onde vendeu milhões de cópias, “O criptógrafo”, do escritor Mai Jia, chega ao Brasil. O romance é um verdadeiro “vira página”, que prende o leitor em uma trama que mostra uma China arcaica e moderna e, por isso mesmo, fascinante. Logo, acertou quem pensou que “O criptógrafo” pode ser uma boa leitura para as férias de inverno.
O que torna a escrita de Mai Jia tão apetitosa é uma mistura de bons personagens com enredo envolvente. Esses personagens estão imersos em um tempo e espaço em que todas suas habilidades pessoais são sugadas em nome da segurança nacional. Afinal, estamos falando de um livro em que o protagonista é recrutado para trabalhar no serviço de inteligência chinês. Trata-se de um ultrassecreto departamento de criptografia e contraespionagem em plena Guerra Fria.
O livro começa com a história dos antepassados mais recentes de Rong Jinzhen, o personagem principal, remetendo à tradição chinesa de honrar os ancestrais. O recurso também serve para mostrar que a genialidade de Jinzhen foi herdada. Ele é neto de uma brilhante matemática que estudou em Cambridge e tinha o apelido de “Cabeça de Ábaco”, tanto por sua inteligência como pelo tamanho da cabeça.
A criança foi levada à propriedade da família Rong, que reconheceu mais uma cabeça graúda na família. Ela foi criada praticamente sozinha, em uma construção dos fundos da residência principal. Na construção, vivia um agregado da família, um adivinho especializado em leitura de sonhos. Com a morte do seu tutor, a família descobre que Jinzhen estava vivendo sozinho no local. Sua genialidade é logo reconhecida. Eles percebem que o menino sabe calcular mesmo sem ter aprendido as operações básicas, intuindo o que é uma soma ou uma multiplicação, por exemplo.
Mai Jia usa sequências numéricas para mostrar estes raciocínios e, surpreendentemente, os números conseguem ser tão emocionantes quanto imagens, transmitindo a excitação diante de um cérebro tão peculiar. O garoto é levado para a capital da província, onde ingressa na escola e, mais tarde, entra na universidade.
A narração é tão elegante que aparenta ser a voz de um narrador em terceira pessoa. Entretanto, o leitor descobre aos poucos que, na verdade, é um narrador na primeira pessoa que está contando a história. O narrador nem sempre se apresenta. “Quero fornecer alguns detalhes suplementares sobre a vida de Rong Jinzhen e relatar o que aconteceu depois da história narrada até aqui”, diz o narrador, mostrando-se ao leitor.
O narrador é um jornalista que decide investigar o que ocorreu com Jinzhen após ter se tornado um herói nacional com direito a uma escultura que lembra “O Pensador”, de Rodin, em frente à temida Unidade 701, onde trabalhava. Ele intercala seus relatos com transcrições de entrevistas feitas com pessoas próximas a Jinzhen. Tal recurso cria uma aura de realidade que se assemelha à estratégia adotada por Lu Xun no conto “Diário de um louco”, onde o narrador publica o diário de um rapaz que acredita que todos são canibais e querem comê-lo. A história consta na edição dos contos completos de Lu Xun lançada neste ano pela Carambaia. Assim como a obra de Lu Xun, a edição brasileira de “O criptógrafo” ganhou uma tradução feita diretamente do mandarim.
Já na universidade, Jinzhen se aproxima de Lisiewicz, professor de matemática que torna-se seu mentor e amigo. Juntos, eles estudam e até inventam um jogo matematicamente perfeito. A veneração a tal jogo faz lembrar do “jogo dos avelórios” da obra “O jogo das contas de vidro” (1943), de Hermann Hesse. A obra chegou a ser rejeitada para publicação antes de Hesse ganhar o Nobel de Literatura. Nela, há inúmeras referências à cultura chinesa, como o estudo do mandarim e do “IChing”, também conhecido como o Livro das Mutações. Curiosamente, a obra de Mai Jia também foi rejeitada inúmeras vezes antes de ser publicada e finalmente tornar-se um fenômeno.
A relação entre aluno e professor e a verdadeira identidade de Lisiewicz são chaves para entender o mistério da trama que envolve a quebra do código Purple. Em 1956, Jinzhen é recrutado pelo governo para trabalhar como criptógrafo e sua principal missão é quebrar tal código. Introvertido e incompreendido, ele passa cerca de um ano sem provar seu talento, até que finalmente se consagra por decifrar o código. Considerado herói, ele ganha uma nova missão que irá atormentá-lo, revelando sua natureza frágil, apesar da genialidade.
O criptógrafo
Mai Jia. Trad.: Amilton Reis e Sun Lidong Companhia das Letras 336 págs., R$ 99,90
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