#tbt: Os relatos de quem viveu a loucura do ‘pregão viva-voz’

Martin Iglesias, especialista de alocação do Itaú, lembra quando operou aos gritos
Pontos-chave:
  • Os operadores mais novos tinham mais demandas e eram os mais empurrados
  • O pregão físico acabou em 2005 na BM&F, e em 2009 na Bovespa

Coletinho, patinete, fone bluetooth e um copo Stanley com café na mão substituíram o suor, a gritaria e a selvageria por fechar um bom negócio no chamado pregão viva-voz, quando as Bolsas brasileiras ainda eram, em parte, analógicas. Será que a nova geração de Faria Limersapelido dado aos profissionais do centro financeiro da Avenida Faria Lima, em São Paulo, sobreviveria à intensidade física e emocional das famosas rodas do “chão da Bolsa”, ali no “olho por olho, dente por dente”? Não dá para saber. Como toda quinta-feira, hoje é dia de #tbt: vamos aos fatos e às memórias de quem viveu pelo menos um dia da loucura dos pregões viva-voz em seu auge. 

A fervura dos ‘pregões viva-voz’

Os pregões das Bolsas de Valores, em sua época física, ferviam de operadores que representavam as corretoras. Nas mãos desses profissionais, em vez de smartphones, estavam telefones celulares, em sua maioria gigantescos, com o viva-voz ligado para informar as operações às corretoras e aos clientes. Quando alguém queria comprar ou vender um papel, era preciso ligar diretamente para a corretora. A linha caía para um operador de mesa, que, dentro do conforto do escritório, transferia para o operador de “chão” da corretora, o responsável por gritar – em meio a tantos outros gritos – a quantidade e a oferta de preço para tentar fechar um bom negócio para o cliente.  

Em 1993, o atual especialista de alocação de ativos do Itaú, Martin Iglesias, conta que em sua primeira experiência profissional no mercado financeiro, como trainee de um pequeno banco, fazia parte do programa trabalhar por um período como operador no pregão viva-voz. Durou apenas um dia, mas foi o suficiente para nunca mais esquecer. 

“Na minha contextura física pequena não sou o melhor cara, e minha voz não é forte. Então fui aproveitado de outras maneiras. Mas aquele dia me ensinou muitas coisas. Essa questão de ter uma visão para tudo é algo um tanto difícil. Saber como e onde fechar, para onde olhar, quem podia fechar com você”, conta Iglesias.  

Duas Bolsas de Valores no Brasil

E não foi numa época das mais tranquilas das Bolsas. Até pelo plural já dá para perceber que eram tempos diferentes. No Brasil dos anos 1990, havia duas Bolsas oficiais, ambas no centro de São Paulo: a BM&F, na Praça Antônio Prado, e a Bovespa, na rua XV de Novembro, onde fica a atual B3 – o resultado da fusão dessas duas instituições com a antiga Cetip. 

Martin conta que colocavam os operadores mais novos para aprender na Bolsa que tinha mais demanda – e também mais empurrões e gritarias. Era, no caso, a BM&F, que operava os contratos futuros de diversos tipos de ativos, como commodities, ouro, dólar, índice, entre outros.  

“O mercado de juros e de dólar tinha muita incerteza em relação ao que aconteceria, lembrando que, em 1993, ainda não tinha o Plano Real. Estamos falando de uma inflação na época de 20 e 30% ao mês, então você não tinha muita previsibilidade do dólar e das taxas de juros, que podiam mudar e oscilar muito em função da inflação. Então, a busca por proteção nos mercados futuros era grande. Portanto, as rodas de negociação eram enormes”, explica Martin. 

Na conversa com o íon, o especialista lembra que um dia presenciou um momento que aconteceu raras vezes na história dos pregões viva voz: “Um dia, as portas da BM&F se abriram sem querer e as pessoas saíram negociando na praça”. 

Martin reconhece que era uma dinâmica muito estressante e intensa, assim como mostram vários filmes. “Às vezes, parecia que tinha um desafio pessoal, quase uma briga. Era uma loucura mesmo”, diz o veterano do Itaú. 

‘Tchado!’

Na hora de operar no pregão físico, o que facilitava bastante, tanto para os próprios operadores quanto para os fiscais, eram os gestos e símbolos com as mãos, de acordo com Martin. Quem queria comprar, enquanto gritava a quantidade e o preço, fazia um gesto de fora pra dentro com a mão, como se estivesse chamando alguém. 

E quem queria vender, o gesto com a mão era de dentro para fora, como se estivesse tirando uma poeira imaginária do ar. 

Como saía um negócio em meio à loucura do pregão? Quando os operadores ouviam o seguinte termo: “Tchado!, uma espécie de diminutivo de “Fechado”, que, inclusive, é usado até hoje como gíria pelos operadores no pregão eletrônico.

 Então, compradores e vendedores, em meio à multidão, tentavam fechar seus negócios e a atenção era mais do que necessária.  “Era preciso ficar muito atento. Pensa: centenas de pessoas na roda e o ‘Tchado!’ poderia ser gritado de qualquer lugar”. 

Da época em que havia boleta de papel

Depois disso, se preenchia uma boleta, que era o registro daquela operação, com as informações de compra ou venda. “Me lembro que cheguei naquele dia a tomar um “Tchado!”, mas fiquei preocupado porque não vi o crachá do cara, não vi a corretora. Estava nervoso naquele dia, com medo até de errar na boleta”. 

Apesar das gritarias, dos empurrões e, às vezes, dos tapas, há um certo ar de saudosismo de quem viveu os pregões físicos da Bolsa, mas por outros motivos mais dignos. “No pregão ao vivo, tinha essa questão ali do calor do momento. E quem aproveitou isso adquiriu uma sensibilidade muito boa de monitorar o mercado. Ao vivo, dava pra ter uma leitura de mercado em meio à gritaria, conforme os altos e baixos do barulho do pregão. A gritaria, na época, era algo muito importante”, diz Iglesias.  

Os pregões ‘viva-voz’ foram perdendo força com o crescimento da internet e as negociações eletrônicas passaram a dominar, sendo inevitável a morte das operações presenciais. Em 2005, a BM&F foi a primeira a acabar com esse tipo de operação e, em 2009, a Bovespa fez o mesmo. 

Texto escrito por Leonardo Pinto. Artigo originalmente publicado no Feed de Notícias do íon Itaú. Para ler este e outros conteúdos, acesse ou baixe o app agora mesmo.