No governo Lula, bancos públicos devem focar em endividamento, MEIs, indústria e ações sociais

Proposta é que Caixa, BB, BNDES, Banco do Nordeste e Basa atuem em prol do desenvolvimento

Empresas citadas na reportagem:

Tirar do papel o Desenrola Brasil — programa para permitir o retorno ao crédito de milhões de brasileiros endividados — focar em microempreendedores individuais (MEIs), apoiar programas sociais (como construção de cisternas e cooperativas de catadores), financiar até 3,5 milhões de casas para pessoas de baixa renda e até incentivar a troca de máquinas e equipamentos para reaquecer a indústria estão entre as prioridades que os bancos públicos terão no próximo governo.

Embora não tenham sido indicados até o momento os nomes dos titulares de Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia, a equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avalia que as instituições terão função relevante a partir de 2023.

“Os bancos públicos, como aconteceu nos mandatos entre 2003 e 2010, terão papel importante no desenvolvimento econômico e social. Uma missão extraordinária, e o setor privado será chamado (a participar). É crédito para regularizar a situação dos endividados”, disse o senador eleito e um dos coordenadores da campanha de Lula, Wellington Dias (PT-PI) ao GLOBO.

Além de garantir uma atuação às vezes mais célere que a máquina estatal, os bancos públicos poderão auxiliar os planos de Lula em um cenário de escassez de recursos públicos. O maior exemplo será o Desenrola Brasil, programa que prevê a renegociação de dívidas garantidas por um fundo com recursos estimados entre R$ 7 bilhões e R$ 18 bilhões — a depender da faixa de renda que será contemplada.

Segundo Wellington Dias, essas instituições terão um papel importante nesse processo.

68,4 milhões de endividados

O Brasil tem 68,4 milhões de endividados, ou seja, cerca de 32% da população adulta, segundo dados da Serasa Experian. Permitir que esse público volte para o sistema é uma forma de ajudar a recuperar a economia, pois impulsiona a compra de bens e serviços.

A ideia é lançar um programa focado nas famílias mais pobres — o foco pode ser quem ganha até três salários mínimos — e incluir, além de contas de água, luz e outros serviços, redes de varejo e bancos.

Esta foi uma das principais promessas de campanha de Lula, que repetiu modelo defendido por Ciro Gomes (PDT) em 2018 e também nesta eleição.

O governo Lula dará, ainda, atenção especial aos MEIs. Segundo integrantes da equipe de transição, os microempreendedores individuais serão beneficiados com linhas especiais para expandir ou abrir novos negócios.

Minha Casa Minha Vida será retomado

Em habitação, o novo governo quer retomar a faixa 1 do Minha Casa Minha Vida — o nome do programa voltará, aposentando o bolsonarista Casa Verde e Amarela — , com renda abaixo de R$ 1.800. São famílias que não têm condições de assumir um financiamento tradicional.

Hoje esse público não é atendido pelo governo, sob o argumento de falta de verba orçamentária.

A ideia é que a Caixa volte a atender essas famílias. A proposta em análise é contratar 3,5 milhões de unidades habitacionais de 2023 a 2026, considerando todas as faixas de renda. Os subsídios sairiam de FGTS, loterias e Tesouro Nacional.

“No primeiro ano, a meta seria de 500 mil unidades habitacionais e, ao longo dos anos seguintes, 3 milhões de unidades”, disse Rita Serrano, representante dos trabalhadores no Conselho de Administração da Caixa.

O Banco do Brasil deve reforçar seu lado social — a Fundação Banco do Brasil (FBB) — em projetos como a construção de cisternas para famílias no semiárido. São estudadas medidas de apoio a catadores de resíduos sólidos.

Ainda não há detalhes, mas estes bancos, agregados por Banco do Nordeste, Banco da Amazônia e Finep (financiadora de projetos e pesquisas) poderão até mesmo contribuir no financiamento de projetos de infraestrutura, como energia e transportes.

Risco de gigantismo

O risco, segundo os analistas, é criar um gigantismo destes bancos, ou desvio de suas funções. O BB pulou de 18,8 milhões de clientes em 2003 para 54,4 milhões em 2010 — e estava com 78,3 milhões ao final de 2021.

A Caixa viu sua carteira de crédito, em valores atualizados, passar de R$ 74,6 bilhões em 2003 — primeiro ano do primeiro mandato de Lula — para R$ 350,4 bilhões em 2010 quando ele deixou o Planalto, embora hoje esteja em R$ 903 bilhões.

BNDES

O BNDES, por sua vez, encolheu desde que Lula deixou o poder. Em 2010, seus desembolsos somavam R$ 335,7 bilhões, em valores corrigidos. No ano passado, foram R$ 66,9 bilhões.

Em nota, o BNDES informou que “desde 2020, o BNDES não tem mais como métrica de desempenho o desembolso, mas sim o impacto na vida das pessoas, como os 35 milhões de brasileiros abrangidos pelos projetos na carteira de saneamento, as mais de 135 mil pequenas e médias empresas apoiadas pelo Programa Emergencial de Acesso ao Crédito durante a pandemia”. Procurados, BB e Caixa não comentaram.

“O BNDES terá o papel de banco para o desenvolvimento econômico, mas será ampliada a participação de crédito para MEI (microempreendedor individual) e pequenos empresários”, completou o senador Wellington Dias.

O analista da Austin Rating Luis Miguel Santacreu avalia que houve mudança muito forte no perfil dos bancos de desenvolvimento entre os governos Dilma e Bolsonaro. O BNDES e outros bancos que eram usados para aumento de crédito, como instrumento de política econômica, passaram a atuar quase como agências de consultoria.

“A volta dos campeões nacionais talvez não seja o caso. Mas pode ter, sim, políticas setoriais estratégicas, não focando em empresas, mas em cadeias de produtos, em setores. Evidentemente vai ter resgate de planejamento e participação do Estado em setores, mas não com o gigantismo da época da Dilma.”

Na gestão Dilma, os bancos públicos foram usados para tentar forçar a redução da taxa de juros na economia, e foram muito criticados por isso.

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV, vê novo tipo de atuação:

“Há possibilidade de atuação maior no microcrédito, com expansão do Banco do Nordeste e avanço firme da Caixa no microcrédito, mas não de ‘crédito micro’, como o que ocorre com o consignado do Auxílio Brasil. Isso ocorre, porque a estruturação desse tipo de crédito foi feita com foco de complementação de renda, o que pode reforçar o endividamento da população, agravando o problema” disse.

Sindicalistas ouvidos pelo GLOBO destacaram o papel dos bancos públicos como indutores do crescimento.

“Os bancos públicos seguirão o que ocorreu no governo Lula na crise de 2008, o que se mostrou muito eficiente, e também devem ter participação no equacionamento das dívidas dos mais vulneráveis, o compromisso do próprio presidente eleito”, ressaltou Ricardo Patah, presidente da UGT. 

Por Eliane Oliveira, Fernanda Trisotto e Geralda Doca

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