Novas SAFs dão mais transparência para o futebol?

Equação entre receitas e despesas é desequilibrada. As receitas crescem lentamente e os custos são mais altos do que se coloca no business plan

Nas últimas semanas vimos uma série de clubes de futebol associativos envolvidos com a transformação em Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Casos como o Coritiba, cuja SAF foi adquirida pela Treecorp, ou operações como as do América-RN e Rio Branco-ES, que anunciaram interessados e a intenção de transformação.

Alguns dirão que seguimos no processo de profissionalização dos clubes de futebol, que agora terão mais rigor na gestão, transparência. Considerando o que temos visto na primeira onda de SAFs, não é exatamente a realidade. Ou melhor, não é a garantia e a certeza de que teremos essa evolução esperada. E isso passa por uma série de fatores.

Começando pelo primeiro bloco, dá para perceber a diferença clara entre Botafogo, Cruzeiro e Vasco, seja na formação das equipes internas, na estratégia de cada negócio – que precisa ser avaliada de forma ampla, analisando desde a construção do DNA Esportivo, passando pelo modelo de negócios, controle acionário, gestão e chegado às pessoas – e na comunicação e transparência junto ao torcedor.

Por mais que o cruzeirense por vezes reclame do Ronaldo, ele sempre foi claro em relação às expectativas e à forma de gestão, baseada em profissionais qualificados e austeridade.

Diferente do que disseram os executivos da 777 Partners, que agora lidam com insatisfação da torcida, pois prometeram mais do que era razoável entregar no Vasco. Sobra o trabalho árduo dos executivos do clube de ter que lidar com certa frustração do torcedor.

O que mudou no Botafogo

O Botafogo surfa agora a boa onda esportiva, lastreado em profissionais dessa área que acabam por “corrigir” a falta de organização do entorno, internamente ou na Eagle de Textor. Clube que apresentou números de balanço muito ruins, sem nenhuma explicação ao torcedor.

Veja que a tônica nessa primeira onda foi de pressa pela necessidade de salvar os clubes, cujos donos se depararam com realidades e desafios complexos, seja porque o processo nasceu desestruturado e “esqueletos” deixaram os armários como exércitos de filmes de terror “B”, seja porque prometeram mais do que poderiam entregar, fruto do desconhecimento da indústria e da falta de pessoas qualificadas para entregar um panorama realista aos compradores.

A segunda onda de SAFs

Chegamos então aos aspectos relacionados a esta segunda onda de SAFs.

Já analisei centenas de projetos ao longo da vida profissional. Aeroportos, rodovias, usinas de etanol, desenvolvimentos imobiliários, implantação de redes de telecom, e mais um monte de negócios e indústrias.

A maioria deles com algum grau de previsibilidade, sem nenhuma necessidade de lidar com consumidores apaixonados. E ainda assim a única certeza que eu tinha é que eles seriam bem diferentes do que era apresentado nos slides.

Simplesmente porque custos serão mais altos, tempo de maturação maior, premissas utilizadas eram mais agressivas que a realidade.

Tenho visto o mesmo cenário nessa nova onda e nos projetos que estão no mercado. É natural que o empreendedor tenha a crença de que nas mãos dele o negócio será bem melhor.

Para o vendedor, quanto melhor for o ativo, maior a chance de negociá-lo. Só que nessa hora falta alguém que mostre o que pode dar errado, até para corrigir o projeto e saber lidar com a adversidade quando ela surgir. Existem dificuldades naturais no futebol.

O que está acontecendo com o futebol?

Acompanho a evolução da indústria há anos. As receitas crescem muito mais lentamente do que se espera, e os custos acabam sempre mais alto do que se coloca no business plan.

Neste momento de transformação do futebol vemos elevadas expectativas em relação ao aumento das receitas com direitos de transmissão, fruto de melhor negociação que uma liga de clubes pode fazer, especialmente em termos internacionais. Mas é uma premissa agressiva.

O mercado brasileiro é único quando falamos em transmissão, e no exterior poucos mercados são capazes de pagamentos relevantes para os direitos do Brasileirão.

O executivo de uma empresa europeia me disse certa vez: “O direito que vale é o local. Para os demais, pagamos pouco porque são apenas para compor grade, mesmo a Premier League”.

Aliás, os valores que a Premier League e a LaLiga recebem de negociações internacionais deve-se mais ao fato de serem vendidos em muitos países que aos valores individuais, numa construção que levou mais de uma década até o nível atual.

Tem também a expectativa de levar clubes da Série D para a Série A ou B. Parece simples: aporta-se dinheiro e a mágica é feita. Pois bem, a Série D é um dos campeonatos mais difíceis de serem conquistados, porque é decidido em mata-mata, e nem sempre a maior folha salarial vence. Lembra competições duras como a Championship inglesa ou a Serie B italiana.

Faltam administradores no futebol

Não é só isso. Tem a questão dos profissionais que levarão o projeto adiante. O futebol brasileiro passou anos nas mãos das mesmas pessoas, num sistema sem oxigenação. Hoje temos carência de profissionais que tenham formação e conhecimento de mercado para gerir clubes.

Por mais que tenhamos formado pessoas em diversos cursos de gestão, poucos acessaram a indústria na prática, e vivemos numa dança das cadeiras dos nomes de sempre, ou de profissionais de carreira fortemente ligados à estrutura política dos clubes.

Não temos os chamados Diretores Esportivos, função essencial na indústria. Os executivos de futebol reclamam, mas a função semelhante à que se pratica em mercados desenvolvidos é exercida no Brasil por dirigentes políticos, sem nenhuma capacidade técnica. Isso explica a constante troca de treinadores e contratações de atletas sem nenhum critério.

Sem contar que uma SAF não vai transformar um clube de R$ 20 milhões de receitas em outro com R$ 200 milhões. Até porque, parte das premissas de crescimento de receitas também serão aplicadas aos demais clubes. Se todos crescem, nenhum cresce.

Surgimento de SAFs

Sei que vira-e-mexe retomo este tema, mas é porque ele é importante. O surgimento de mais SAFs pode ser um fator de impulsionamento ao crescimento e modernização da indústria do futebol no Brasil. Mas é preciso ter atenção aos riscos e às dificuldades de gestão do negócio, que se traduz em ter as expectativas corretas.

Basta verificar que a nova onda de SAFs tem atraído investidores locais, enquanto os estrangeiros se mantêm atentos, mas distantes, pois o benchmark é um mercado maduro como o europeu. E, comparativamente, o Brasil está caro.

Não podemos transformar as ondas num tsunami, que ao invés de atrair bons fluídos no 7º pulo, arrasta tudo que tem pela frente.