Indústria criativa: por que o setor cresce mais que o resto da economia
A economia criativa está em alta. Segundo um estudo deste ano da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, o setor superou o desempenho geral da economia brasileira em quase todos os anos deste século e passou a representar 2,9% do PIB em 2020, movimentando um total de R$ 217,4 bilhões. Em 2017, representava 2,6%. Em 2004, 2,1%. “Estamos saindo da indústria de chaminé para a indústria inteligente”, define o presidente da Firjan, Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira.
A indústria criativa envolve atividades que vão das artes à publicidade, da arquitetura ao design, da culinária à tecnologia. São áreas que têm também se tornado molas propulsoras dos demais setores, visto que a produção e difusão de bens simbólicos e intangíveis é tida como o paradigma da economia do futuro. “O futuro é um mundo de processos disru
O total movimentado pela indústria criativa em 2020 é equivalente ao gerado pela construção civil e superior à produção total do setor extrativista mineral no mesmo ano.
“O crescimento [da indústria criativa] mostra que outros setores tradicionais estão perdendo espaço”, diz Luiz Gustavo Barbosa, coordenador da FGV Projetos, unidade da Fundação Getulio Vargas responsável pela aplicação de conhecimento acadêmico na sociedade. “Este desempenho passa uma mensagem para o setor industrial do Brasil: para se manter, será necessário agregar mais valor e incentivar pesquisa e inovação”, adverte. A indústria manufatureira, que já foi 35% do PIB total, está agora em 11%, segundo um estudo da FGV.
É verdade que a face mais visível da economia criativa – o setor cultural – teve perdas durante a pandemia, por causa da interrupção temporária de atividades presenciais como shows, salas de cinema, museus, espetáculos, feiras e livrarias. O estudo da Firjan, chamado Mapeamento da Indústria Criativa, aponta um tombo de 12% no número de empregos formais da cultura em 2020, chegando a 19% no caso das artes cênicas. O Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, que foi criado em 2020, também identificou quedas nas atividades culturais, a maior delas na contratação de trabalhadores da área de museus e patrimônio, de 23%, entre 2019 e 2021.
Mas a indústria cultural representou apenas 6,4% do total do mercado de trabalho criativo em 2020, de acordo com a Firjan. A área de consumo, que engloba publicidade, marketing, design, arquitetura e moda, responde por 47% dos empregos formais, seguida por tecnologia (pesquisa e desenvolvimento, biotecnologia e tecnologia da informação e comunicação), com 37,5%, e mídia (audiovisual e editorial), com 9,1%. Sendo assim, o desempenho positivo entre 2017 e 2020 foi puxado, segundo o Mapeamento, pelas expansões do emprego formal em áreas como publicidade (48%), biotecnologia (22%) e tecnologia da informação e comunicação (18%).
A publicidade concentra a maior parte dos empregos da indústria criativa, 23% do total, com mais de 223 mil postos de trabalho registrados em 2020. De acordo com o painel Cenp-Meios 2021, produzido pelo Fórum da Autorregulação do Mercado Publicitário, a compra de mídia via agências chegou a R$ 19,7 bilhões no ano passado. “Vimos uma recuperação surpreendente, e o investimento publicitário superou com folga os níveis pré-pandêmicos, com um expressivo crescimento de quase 40%”, afirma Regina Augusto, diretora-executiva do Cenp. “De acordo com o estudo Valor da Publicidade Brasileira, produzido pela Deloitte, a taxa de expansão anual desse investimento foi de 4,5% entre 2001 e 2020, acima da inflação do período.”
A indústria criativa só teve desempenho inferior ao da economia geral em três oportunidades entre 2004 e 2020, segundo a Firjan. Em 2020, primeiro ano de pandemia, o PIB criativo caiu 0,8%, em comparação com uma queda de 3,9% para o total. Em plena crise sanitária, o setor contabilizou a abertura de 18 mil novos estabelecimentos em 2020, 7,7% a mais que no ano anterior. Enquanto isso, o restante da economia expandiu 2,5%.
O rendimento médio do empregado criativo formalizado caiu 10% entre 2017 e 2020, acompanhando o patamar do mercado de trabalho como um todo. Ainda assim, a sua média salarial mensal, de R$ 6.926 há dois anos, é cerca de 2,4 vezes maior que a brasileira. A maior remuneração registrada estava em pesquisa e desenvolvimento, de R$ 12.221, enquanto a menor em expressões culturais, de R$ 2.097.
Os números superaram as expectativas, diz a coordenadora do estudo da Firjan, Julia Zardo: “Fomos surpreendidos com o poder de resiliência da economia criativa que, durante a pandemia, em vez de apontar tendência de queda, chegou a contratar mais e pagou melhor do que o mercado em geral”, afirma a gerente de ambientes de inovação. “Ao mesmo tempo, o mapeamento mostrou uma grande heterogeneidade de comportamento entre as áreas”, assinala.
Pelas contas do Observatório Itaú Cultural, que calcula não apenas os vínculos formais, mas também informais, responsáveis por 41% do total, a soma geral de trabalhadores especializados, de apoio (oriundos de outros setores mas empregados no setor criativo) e de profissionais criativos atuantes em outras indústrias caiu 6% entre 2019 e 2020. No entanto, no quarto trimestre do ano passado, houve expansão de 13%, suficiente para superar em 6% os patamares do mesmo período de 2019 e assim alcançar um total de 7,5 milhões postos de trabalho.
“Os números que se apresentam neste período reforçam a ideia de que, mesmo em tempos de grande complexidade, o setor da economia criativa mostra um potencial de crescimento ainda maior”, afirma Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú.
A indústria criativa repercute em outros setores. “O desenvolvimento econômico não será puxado por essas atividades em si”, diz o economista Armando Castelar, do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (FGV-Ibre), “mas sim pelo aumento da produtividade em grandes setores da economia, o que se beneficiará, claro, da difusão do conhecimento, da inovação e de tecnologia, mais em termos de inovações de processo do que de produto”. Em sua opinião, mesmo com o melhor desempenho que o da economia em geral, a indústria criativa ainda não atingiu escala significativa. “Mais importante é o uso dessas tecnologias nos setores tradicionais, como se vê hoje no agronegócio, por exemplo.”
“O que importa nesta discussão são as transformações tecnológicas na origem destas novas terminologias. Para a indústria, isso significa um dinamismo superior nos ramos de maior intensidade tecnológica, na progressiva integração com os serviços, com grande potencialidade de surgimento de novos modelos de negócio em que o bem industrial será cada vez mais um veículo para a venda de serviços embarcados”, acrescenta Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
Um obstáculo para o desenvolvimento dessa indústria criativa está na educação. “Temos que aumentar a quantidade de educação, levando mais brasileiros à universidade, e a qualidade, que é sofrível e incentiva o abandono no ensino médio. Inovação passa por isto e por muita pesquisa básica e aplicada, e a pouca atenção que se deu a isto nos últimos anos é um tiro no pé se queremos ser relevantes nesta dimensão e em indústrias criativas”, diz Pedro Cavalcanti, da Escola Brasileira de Economia e Finanças da FGV. “Não é que não haja hoje um ecossistema de inovação, criatividade, startups e dados aqui. Já há algo assim no Brasil, mas muito pequeno e pouco dinâmico quando comparado aos países líderes. Falta escala porque falta gente suficientemente educada.”
De todo modo, conceitos e profissionais da indústria criativa estão propiciando o desenvolvimento de outras atividades. Exemplo disso é a criação em 2015 do Cubo, o centro de inovação do Itaú Unibanco, que gerou R$ 3 bilhões em investimentos e 7 mil empregos no ano passado, por meio do apoio a 400 startups.
A iniciativa procura alavancar empreendedores tecnológicos iniciantes com alto potencial de transformação em áreas como educação, logística, fintech e agtech (tecnologia do agronegócio). “Em março de 2020, tínhamos soluções prontas para telemedicina, como é o caso da Conexa Saúde, e a alta demanda gerou um crescimento de 50 vezes em apenas um ano”, conta Paulo Costa, CEO do Cubo.
A digitalização crescente da economia é impulsionada pela capacidade de inovação de profissionais criativos. De acordo com o Guia Salarial 2023, da consultoria de recrutamento Robert Half, entre as habilidades mais desejáveis hoje estão flexibilidade, adaptabilidade e visão estratégica. As contratações estão sendo lideradas por indústrias de tecnologia, bens de consumo e infraestrutura.
Um aplicativo de alta performance como iFood, por exemplo, tem a principal fatia de seu desempenho atribuída ao PIB da indústria alimentícia. A Uber, por sua vez, movimenta mercado de consumo de combustíveis e automóveis. “No entanto, nos dois casos, o fator gerador econômico foi uma plataforma tecnológica”, analisa Barbosa, da FGV.
Na indústria moveleira, o principal diferencial entre os móveis fabricados, que agrega valor, é o design. Esses são exemplos de fatores que não são calculados por órgãos e estudos e acabam computados nos números da indústria tradicional. “Então, na verdade, o efeito alavancador da indústria criativa como mola propulsora da economia é muito maior e intangível”, afirma o economista da FGV. “Esse é o dilema que os institutos de estatística do mundo estão começando a enfrentar.”
Conclui-se, portanto, que “o PIB da indústria criativa não é inteiramente calculado pois seu impacto é aferido em outros setores”, diz Zardo, da Firjan. É por esse motivo que tanto a Firjan quanto o Observatório Itaú Cultural esforçaram-se para identificar os rastros dos profissionais criativos em outros setores. Os levantamentos colhem dados e desempenhos não apenas na Classificação Nacional das Atividades Econômicas, mas também no IBGE e na Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, entre outras fontes.
Foi assim que o Mapeamento levantou um top 20 das profissões criativas em ascensão, entre elas analistas de negócios, designer gráfico, programadores, editores de vídeos, chefe de cozinha, gerentes de marketing e pesquisadores em geral. “Por conta dessa transversalidade, atualmente todas as indústrias são criativas”, avalia Leonardo Edde, presidente do Conselho de Indústria Criativa da Firjan.
Pensando em ampliar a cooperação intersetorial, o conselho criou um grupo de trabalho com empresários de diversas atividades para desenvolver um plano de ações destinado a desenvolver o soft power carioca e, posteriormente, nacional. O termo surgiu para denominar as iniciativas que buscam aproveitar e elevar o potencial econômico de um determinado território por meio de sua cultura.
“Identificamos que existe uma pauta comum a todas as indústrias, como necessidades de infraestrutura, políticas públicas, capacitação, priorização do produto nacional, segurança pública e jurídica”, diz Edde. “As indústrias estão se dando as mãos, pois somente unidas podem retomar o desenvolvimento.” Na mesma direção, Castelar aponta: “O que essa indústria precisa é de um bom ambiente de negócios”, diz.
Se a heterogeneidade da indústria criativa é uma de suas características, como delinear seus limites? Este é um dos principais desafios, visto que os conceitos e cálculos variam conforme as metodologias. No Brasil, a terminologia costuma ser associada ao campo de expressões artísticas e culturais, que observou nesses indicadores econômicos a possibilidade de embasar sua relevância e a reivindicação por políticas públicas.
Entre os principais marcos inaugurais está o livro “Economia criativa: Como ganhar dinheiro com ideias criativas”, do professor britânico John Howkins, publicado em 2001. Nele, Howkins conceitua a atividade criativa como aquela na qual a imaginação é processada sob o intuito de fornecer resultados econômicos.
As bases desse paradigma emergente seriam lançadas pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em 2008, quando produziu o “Creative Economy Report”, um detalhado relatório que se tornaria regular, lembra Leandro Valiati, um dos organizadores do “Atlas Econômico da Cultura Brasileira” e consultor na criação do Observatório Itaú Cultural, atualmente radicado no Reino Unido, como diretor do programa de mestrado em indústrias culturais e criativas da Universidade de Manchester.
A mobilização do setor cultural em torno do tema foi decisiva para sua consolidação e difusão, diz Valiati. “Em que pese o menor impacto econômico das atividades culturais em relação a outras, é um setor que sempre teve a capacidade de liderar e reverberar políticas, bem como de produzir insumos de valor simbólico, combustível indispensável para alimentar outras indústrias”, afirma.
Ainda assim, o segmento se mostra distante de alcançar o pleno potencial de exploração de bens simbólicos brasileiros. “Enquanto a Inglaterra recebe royalties por centenas de produtos do Harry Potter, nós temos dificuldades em monetizar nossos ativos, como Carnaval, bossa nova ou a Festa do Boi de Parintins”, lamenta Zardo, da Firjan.
Uma das tentativas embrionárias nesse campo é o planejamento estratégico desenhado para o Cristo Redentor, lançado neste ano pela FGV Projetos. Apesar de seu impacto anual de R$ 1,1 bilhão na cidade do Rio de Janeiro, o monumento ainda tem o desafio de tornar autossustentável a sua operação, de cerca de R$ 20 milhões por ano.
O pesquisador Frederico Silva, especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no tema, acredita que a ausência de um programa coordenado pelo Estado é nosso principal calcanhar de Aquiles. “O mais importante é manter o problema na agenda das políticas públicas, para a consolidação de instrumentos institucionais, especialmente de fomento e de implementação transversal de ações interfederativas”, afirma. “Temos desafios imensos de planejamento, governança, acesso a recursos e desenho de ações que potencializem os recursos disponíveis.”
O impacto da Lei Aldir Blanc, criada durante a pandemia para socorrer o setor cultural do país, é exemplo de como a atuação do Estado pode modificar cenários. O Observatório da Economia Criativa da Bahia realizou uma pesquisa na qual 88% dos entrevistados do setor avaliaram como positivo ou muito positivo o impacto da lei. O relatório do Painel do Observatório Itaú Cultural assinalou que, justamente no período de injeção dos recursos, houve uma recuperação de 14% nos postos de trabalhadores da cultura.
Um levantamento da FGV encomendado pela Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo apontou que a Lei Aldir Blanc movimentou R$ 401 milhões no estado. Desses, R$ 242 milhões de forma direta e R$ 158 milhões indireta. Pelo Índice de Alavancagem Econômica, cada R$ 1 gasto gerou um impacto de R$ 1,65.
“Infelizmente, o Brasil não tem tratado o tema com a devida importância em termos de investimentos em políticas públicas e poderá entrar num circuito de atraso tanto no capital humano quanto na produtividade”, lamenta Valiati. Licenciado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o pesquisador acredita que a nova conjuntura está produzindo irreversíveis mudanças na economia, que não podem ser ignoradas. “Estamos vivendo uma radical e profunda revisão das formas de consumir e produzir, em que surge um novo modelo cada vez mais centrado nas dimensões simbólicas e tecnológicas do comércio.”
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