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Gestores tentam assimilar baque de caso Americanas
Não é de hoje que se ouvia falar numa possível “contabilidade criativa” em Americanas (AMER3). Mas a divulgação de uma classificação incorreta da ordem de R$ 20 bilhões nas contas de fornecedores e de despesa financeira, que na reconciliação vai afetar o lucro, o patrimônio e a alavancagem de balanços antigos, caiu como uma bomba para gestores de recursos e analistas. Há carteiras que vão sair machucadas ao marcar a desvalorização, mas há outras que estavam vendidas, apostando na baixa, e vão contabilizar ganhos nas suas cotas.
A Moat informou que as posições de seus fundos em ações ordinárias de Americanas, na quinta-feira chegava ao máximo a 8% do patrimônio líquido do master do Moat Capital FIA e que todas as posições nesse ativo estão de acordo com as métricas de risco dos respectivos portfólios, apesar do cenário de estresse. “Como todo o mercado, fomos surpreendidos pelo fato relevante da companhia. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir e resguardar nossos direitos como acionista minoritário e em defesa dos nossos investidores.”
A ARX divulgou comunicado aos cotistas com estimativas do impacto da marcação dos ativos nas cotas de seus fundos de crédito privado. O master do ARX Everest e a versão de previdência do ARX Denali tinham as maiores exposições, de 1,2% e 1%, sofrendo ajustes de -0,542% e -0,449%, respectivamente. As gestoras não comentaram. A Western Asset, por sua vez, afirma estar monitorando o desdobramento das notícias e aguarda mais informações sobre os próximos passos adotados pelos controladores para ter a dimensão do impacto nos papéis da companhia.
Como um grande emissor de dívida, os papéis da Americanas estão bastante pulverizados no mercado e a grande maioria das assets tem alguma exposição, diz um gestor de crédito. Ele afirma que os fundos da casa têm posições nas debêntures mais curtas, com vencimento em maio e junho, que têm cláusula de “covenants”, a exigência de medição de alavancagem que se extrapola certo nível dispara a recompra antecipada ou pedido de “waver”. “A disposição dos debenturistas hoje é de demandar o pré-pagamento dessas dívidas pelo menos.”
“Se fossem R$ 5 bilhões, eu ficaria chocado, mas conseguiria construir, mas R$ 20 bilhões é muita coisa”, diz um gestor de ações que tem exposição pequena nos papéis. Após participar da conferência da empresa, ele afirma que ficou a sensação de que nem os executivos que acabaram de assumir e já renunciaram têm o diagnóstico do tamanho do problema. Limitaram-se a dizer que os R$ 20 bilhões estão no balanço, mas em rubricas erradas “Quando se olha o passivo, com um total de R$ 32 bilhões, dos quais R$ 5 bilhões são de fornecedores – o [Sérgio] Rial [CEO que deixou o cargo] falou em valor pouco maior -, e que tem R$ 20 bilhões de diferença, fica a impressão que tem coisa fora do balanço.”
Ele lembra que há dois anos, quando a Via deu transparência a um passivo trabalhista da ordem de R$ 2 bilhões, já foi um “deus nos acuda”, agora é um evento de R$ 20 bilhões para uma companhia que tem patrimônio de R$ 15 bilhões. A dúvida é o quanto o trio de sócios, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, da 3G Capital, do grupo de controle, estará disposto a aportar na capitalização da companhia.
Para os bancos credores ficou difícil fazer qualquer avaliação de crédito da empresa porque os balanços dos últimos anos não são confiáveis, mas se pararem de descontar faturas de fornecedores, a empresa para de ter produto na prateleira e se torna inviável. Segundo essa fonte, a mensagem de Rial foi que, se isso ocorrer, a solução deixa de ser por meio de capitalização e vai para a recuperação judicial. “Se os bancos não puxarem o tapete, a companhia continua andando e a capitalização acontece, sabe se lá em que tamanho.”
Esse gestor diz ver algum contágio para outras varejistas listadas na B3, mas ao olhar as demonstrações de Via e Magazine Luiza, há aparentemente maior clareza sobre operações com risco de sacado em relação à conta total de fornecedores. “Se olhar com maldade, os executivos sempre receberam um pacote agressivo de remuneração em cima das metas. Quem se beneficiou foram os executivos com uma conta bancária gorda em cima de níveis de rentabilidade que não aconteceram.”
A decisão, por ora, foi manter o 1% de exposição em ações da Americanas na carteira, que pela desvalorização de ontem (77,3%), vai cair a uma fatia residual, 0,25%. “Em condições normais, eu teria mais ou zeraria, mas neste momento, dado que não há nenhuma informação, não faço nada porque o prejuízo já veio.”
Atônito com uma falha que parece se repetir há anos sem ser percebida pelo conselho de administração, auditores e credores, um gestor de ações que faz estratégias de arbitragem conta que estava com posição “short” na varejista porque observava uma queima de caixa operacional pouco eficiente e uma margem maior que seus competidores que não parecia compatível. “Não achava que tinha uma inconsistência contábil, via números que a empresa não conseguia explicar, que geravam algum desconforto”, diz.
Ele sustenta que a transparência em comparação a outras investidas da 3G Capital era inferior, com Ambev no nível de companhia mundial, e Americanas mais propensa a omitir informações. “Havia um gap de governança grande de duas companhias que pertencem ao mesmo grupo econômico, sempre foi um bicho meio estranho, o que faz com que a gente diferencie o que é trade e o que é investimento.”
Esse gestor avalia que o problema com Americanas, do lado da auditoria, é até maior do que foi com Petrobras, em que muita coisa correu fora do balanço, conforme as apurações divulgadas durante a Operação Lava-Jato. No caso atual, foi dentro das demonstrações, “parece ter uma questão reputacional pior e levanta questionamentos sobre práticas semelhantes em outras empresas”.
Os fundos da casa vão registrar resultado positivo na cota de ontem. O gestor diz que o short continuaria a fazer sentido, mas que o mercado de aluguel praticamente secou, com as taxas subindo de 20% para a quase 100%.
Um gestor de crédito que tinha papéis de dívida de Americanas no mercado local, mas estava vendido nos bônus da empresa lá fora também vai capturar bons resultados. Vale fazer ajustes agora, mas ele não abre por que a estratégia não foi executada. “O mais importante é como isso impacta o mercado de crédito como um todo. Por enquanto, a gente não viu nenhuma venda forçada, o mercado perdeu liquidez, mas à exceção de Americanas não teve outro ativo muito descolado.”
O analista de ações de uma asset diz que a cifra de R$ 20 bilhões é um legado da gestão anterior, mas em vez de fazer uma megaprovisão, baixar a prejuízo o que fosse necessário para arrumar a casa, Rial decidiu não tomar esse risco. “Se fosse só uma prática contábil na classificação da operação, colocando o ganho que deveria ser financeiro e trocando de linha, tirando do operacional para o resultado, ok, mas ha hora que afeta o lucro bruto, o buraco é bem mais em baixo.”
A inconsistência contábil suscita dúvidas se o episódio vai se desdobrar para um risco sistêmico, que extrapola as companhias do setor de varejo, diz Ilan Arbetman, analista de ações da Ativa Investimentos.
“Quando você se depara com um fato relevante que tem ali a renúncia do CEO e do diretor de relações institucionais a 10 dias que foram empossados, sob a justificativa que pode ter uma rubrica de fornecedores que do dia para noite passa de R$ 5 bilhões para mais de R$ 20 bilhões, faz a gente repensar na análise de balanços como um todo”, afirma.
Ao mesmo tempo que há dúvidas de como a Americanas vai sair dessa, ele afirma que a operação triangular entre companhias, fornecedores e bancos é boa para toda a cadeia, mas se for comprovado um rombo dessa grandeza fica claro ser necessário um ajuste nessa contabilidade. “Do mesmo jeito que tem isso escondido em Americanas, abriria um precedente para ao menos se investigar se tem algo da mesma natureza em outras varejistas, que muitas vezes compartilham as práticas de mercado”, afirma. Pensando na bolsa e no mercado de capitais, poderia respingar e elevar o nível de risco de como os ativos brasileiros são vistos.”
Arbetman avalia que o caso está mais para uma falha contábil do que algum tipo de atuação proposital para maquiar os números, mas que pode haver uma brecha do lado regulatório que permita algum tipo de interpretação que causou essa bola de neve. “Eu vejo que, se a companhia e a auditoria sabiam da existência dessa massa cinzenta e da possibilidade de os números serem contestados, poderia ter algum tipo de indicação, seja no balanço, seja no press release. Pelo tamanho da história, isso não foi feito.”
O analista diz que “por sorte” não tinha as ações na carteira recomendada desde o fim do ano passado, baixando a indicação de “compra” para “neutro”. O ativo vai passar por nova reavaliação.
A Mantaro Capital também não tinha mais as ações no seu fundo, pela avaliação de que a empresa já se encontrava numa posição competitiva mais frágil, principalmente na atividade de comércio eletrônico, diz Andreas Ferreira, analista de varejo da asset. “A companhia já vinha com uma trajetória de alavancagem trimestre a trimestre e teve problema com capital de giro, queimou bastante caixa.”
Ele cita que, pelos ajustes que faz internamente, a relação dívida/Ebtida já era da ordem de seis vezes e que, ao considerar a surpresa com as operações de risco de sacado, a alavancagem deve explodir. Por ora, prossegue, é tudo preliminar, ainda é preciso saber qual vai ser o impacto da reclassificação nos balanços antigos e como vai se dar o processo de capitalização. “Possivelmente, a empresa vai ter que diminuir de tamanho, deixar a operação mais eficiente, vai entrar em modo sobrevivência e terá mais dificuldade para reter e atrair gente boa.”
Ferreira afirma que é comum no setor de varejo fazer operações em que a empresa assume o risco sacado quando os bancos adiantam os recursos para os fornecedores, mas que em geral contabilizam isso de forma correta. Outro contágio possível seria para os bancos, mas o setor no Brasil é sólido e o risco parece estar bem distribuído.
Um gestor de ações avalia que o fato de os controladores serem quem são, quase “celebridades” no mundo empresarial, ajuda o mercado a ter boa vontade com a companhia, depois do sucesso com a criação da Ambev, fruto da junção das cervejarias Brahma e Antarctica. “Isso acabava ocultando um pouco um histórico controverso de governança”, afirma, citando, por exemplo, as conversas que resultaram na união com a Interbrew, em 2004, em que o grupo belga acertou comprar a “Ambev ruim”, com as ações que os controladores tinham, e em contrapartida, a Ambev levava uma cervejaria canadense usando ações PN e pagando caro por isso.
O negócio, avaliado em €8 bilhões, previa a gestão compartilhada mesmo com a fatia maior dos belgas na combinação das operações que deu origem à Inbev, que depois se tornaria a maior fabricante de cervejas do mundo. “Todo mundo esqueceu porque foi um sucesso fantástico.”
Por Adriana Cotias, do Valor Econômico
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