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‘Os auditores vão ficar mais rigorosos’, diz ex-diretora da CVM após caso Americanas
O problema contábil da Americanas deve levar outras empresas do setor a revisarem suas próprias contas. Afinal, a agora contestada operação de risco sacado (também conhecida como “forfait” ou financiamento a fornecedores) é comum em todo o varejo. Na visão da ex-diretora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e professora da FGV Luciana Dias, os auditores vão ficar mais rigorosos em relação às políticas contábeis. No entanto, ainda é cedo para apontar culpados. As informações ainda são escassas e é necessário entender as verdadeiras dimensões do problema. O comitê independente da empresa e a CVM vão analisá-lo e aprofundá-lo.
“É necessário responder onde houve falha na cadeia de governança”, disse a advogada ao Valor. Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
Valor: Até o momento é possível identificar como aconteceram os problemas da Americanas?
Luciana Dias: Pelas divulgações que já foram feitas, não temos certeza se é uma questão de política contábil ou controles. O fato relevante [que anunciou inconsistências contábeis] não deixa isso claro. Precisamos de mais informações e o comitê independente que foi criado vai olhar a forma como essas discussões foram feitas. As operações de risco sacado acontecem diariamente e de vários modos no varejo. A forma como é contabilizada é a questão. Me parece que é um problema que não passa despercebido e não é uma questão nova. Como essa é uma operação conhecida no varejo, é uma questão que costuma ser levantada e analisada pelos auditores. Sem mais informações, ainda estamos no escuro. Precisa ser analisado o que aconteceu para se chegar a esse estágio. Se houve falta de controles, é um problema de governança. Se foi a adoção de uma política contábil mais ousada, é preciso ver como o auditor tratou isso.
Valor: A primeira divulgação ao mercado trouxe poucas informações. Como avalia isso?
Dias: Em geral as empresas fazem este tipo de divulgação com mais informações para o mercado para não gerar especulações. Hoje na Americanas o investidor não sabe se é um problema de controles ou de política contábil, e qual é o verdadeiro tamanho do problema. Trocar os dois executivos mais importantes da companhia e eles renunciarem logo em seguida pode exacerbar a dimensão do problema. Há questões de governança que não são necessariamente fraudes. Não ter controles específicos, não ter discussões nas notas explicativas é bastante intrigante do ponto de vista de governança. O fato relevante não menciona quando surgiu a desconfiança do problema, quem está solucionando. Mesmo que não tenha fraude, pode haver problemas de governança relacionados à falta de controles. Há aperfeiçoamentos de governança a se fazer, qual o tamanho não sabemos. É possível ter um problema de governança que não é desonestidade.
Valor: A sra. acredita que faltou regulação mais rígida? Se for isso, de alguma forma poderia ter impedido o problema?
Dias: Eu acho difícil porque adotamos as normas do IFRS em 2007 e hoje em dia estamos 100% adequados a elas. A CVM não pode regular diferente do IFRS, o que ela pode trazer com mais clareza são suas interpretações a respeito do IFRS, e ela [a CVM] faz isso por meio dos ofícios circulares. O IFRS dá espaço para que a companhia faça julgamentos contábeis, estabeleça políticas contábeis e explique as opções feitas nas demonstrações financeiras. As companhias com boa governança levantam as questões mais relevantes para aquele assunto e discutem nas instâncias de governança adequada. Isso precisa ser documentado para que as informações não se percam, e devem ser estabelecidos controles para que essas políticas sejam adequadamente implementadas. É nesse caminho que vai estar a resposta. É necessário responder onde houve falha na cadeia de governança.
Valor: Como fica o papel dos auditores diante de uma situação como essa?
Dias: Os auditores justamente têm que levar os debates para as companhias. Os auditores revisam as informações e aquelas que são pertinentes para as companhias são debatidas com os comitês de auditoria, por exemplo. Os auditores têm o papel de chamar atenção para o que a CVM destacou em um ofício circular, de levantar questões importantes para a companhia, debater, fazer perguntas. Por isso seria muito estranho se isso não tivesse sido debatido dentro das Americanas. Mas, sem investigação, não dá para colocar dedo no olho do auditor.
Valor: O auditor deve sempre pegar fraude, como deveria agir? Como entender até que ponto os auditores estariam envolvidos?
Dias: A CVM tem alguns casos de fraude contábil e alguns casos de discordância de políticas contábeis, que são situações diferentes. Uma coisa é discordar e outra é fraudar. Mas tanto em caso de políticas contábeis ou de fraudes ela primeiro vai responsabilizar a administração da companhia, e vai ver em que medida o auditor poderia ter capturado aquela fraude, se for o caso. Um processo contra o auditor poderá ser aberto se identificar falhas no trabalho dele, depois que tiver identificado o problema. Só vamos saber o nível de responsabilidade que vai se atribuir ao auditor um pouco mais para frente quando entendermos qual é o problema. Pode envolver o auditor do ciclo anterior e não só o atual. O fato de ter mudado de auditor sem nenhuma indicação de problema é algo que possivelmente indica que é um problema de controles e não de política.
Valor: No caso da Americanas, quais serão as frentes de atuação da CVM e quem deverá ser responsabilizado?
Dias: A CVM vai tentar se informar sobre onde está o problema e a depender vai acessar os responsáveis. Se for um problema de controles, provavelmente vai ouvir o CFO e o controller da companhia, os responsáveis por estabelecer os controles internos, vai solicitar relatórios de auditoria interna, vai ouvir o auditor. Em geral, a companhia não entra como ré nos processos e sim os executivos responsáveis. A CVM tem atuação sobre as instâncias estatutárias, ou seja, que estão dispostas no estatuto.
Valor: A companhia parece estar se preparando para uma recuperação judicial. Isso muda algo?
Dias: Uma recuperação judicial não muda nada [do passado], é um passo a ser dado para resolver o problema. Uma empresa reluta para entrar em recuperação judicial porque as fontes de crédito secam. Pode ser que já tenham secado e a empresa está ganhando tempo e buscando oportunidades de renegociação.
Valor: Ainda estamos no início de um caso emblemático, mas até o momento, há alguma lição deixada para o mercado brasileiro?
Dias: Os varejistas estão acostumados com essa operação, mas imagino que quem é do varejo está fazendo perguntas lá dentro e vendo como isso é contabilizado. Em 2016, a CVM tinha notícia de que muitas empresas brasileiras adotaram a prática [referente ao risco sacado] e que poderia distorcer os números dos balanços, e divulgou um ofício circular sobre o assunto. Não dá para acreditar que 100% se corrigiam. Agora, temos a notícia que uma das maiores do país não refletiu, ao menos não o suficiente, sobre o assunto. As companhias varejistas devem estar revendo suas práticas para entender se há algo a se fazer. Não me espantaria que companhias de varejo façam anúncios de revisão de políticas contábeis ou números. Os auditores vão ficar mais rigorosos. [Em momentos como esse], aproveitam a oportunidade para rever práticas das companhias que auditam. Teria sido melhor se a CVM tivesse tido braços para pedir essas informações e dar oportunidades para as empresas se corrigirem naquela época, se tivesse braços para supervisionar as empresas, dando um tempo para se adaptarem de forma mais educativa. Quando acontece por meio de um incidente desse tamanho, é aquela procura do tempo perdido. O pessoal vai começar a revisar as próprias práticas, estabelecendo discussão com auditores.
Por Juliana Schincariol, do Valor Econômico
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