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Ucrânia vai acelerar a separação EUA-China?
A guerra na Europa ameaça acelerar um processo potencialmente muito mais impactante para o mundo, que é a separação – política, econômica, financeira e tecnológica – entre os EUA e a China. Qualquer movimento mais ríspido nesse sentido terá repercussões globais.
A guerra quente de Ucrânia e Rússia é um evento perturbador, tanto no sentido de que causa uma ampla série de problemas ao mundo como por ser uma crise inesperada e que gera incerteza e perplexidade. Mas o grande evento transformador deste início de século deverá ser a guerra fria (por enquanto) em gestação entre EUA e China.
Crise na Ucrânia expôs como dependência gera vulnerabilidade
Essa separação entre as duas maiores potências – “decoupling” é o termo usado em inglês – está em andamento há vários anos, desde que os EUA mudaram de posição quanto ao engajamento com Pequim, ainda no governo do democrata Barack Obama. Após décadas de aproximação econômica, na expectativa de que o regime chinês promovesse alguma abertura política e reformas, Washington concluiu que a China não se moveria na direção de uma maior liberdade.
Pelo contrário. O país, sob o presidente Xi Jinping (que assumiu em 2013), se moveu no sentido de menos liberdades. Houve um fechamento político, com supressão de dissenso e controle cada vez maior da mídia e da internet. O nacionalista Xi concentrou poder de um modo não visto desde a época de Mao Tsé-tung. Esse processo culminou em 2020 com a intervenção chinesa em Hong Kong (ex-território britânico devolvido aos chineses em 1997, mas que gozava de autonomia e tinha um sistema de governo mais democrático). Isso encerrou o experimento chamado pelo chineses de “um país, dois sistemas”. A China tem o seu sistema, que julga superior, e não se moverá dele. E não só: passou a propô-lo abertamente como um modelo para outros países.
No governo do republicano Donald Trump, a hostilidade se tornou evidente com a guerra comercial. A ordem de prisão contra a diretora financeira (e filha do fundador) da Huawei, uma das maiores empresas chinesas, foi um marco. Aos poucos a China foi assumindo a posição atual de principal adversário estratégico dos EUA. Frear a China é praticamente o único tema em que os dois partidos americanos conseguem trabalhar juntos no Congresso.
O democrata Joe Biden nunca escondeu que conter a China era a maior prioridade externa de seu governo. As iniciativas se multiplicaram em várias frentes. Ele manteve as sobretaxas comerciais aplicadas por Trump, dificultou ainda mais a venda de tecnologia e de empresas aos chineses e buscou organizar uma frente dos países desenvolvidos contra Pequim, ao contrário de Trump, que sempre ignorou ação conjunta, multilateral.
Mas a guerra na Ucrânia parece que acrescentou um senso de urgência à mobilização ocidental contra a China.
Washington sempre criticou a aproximação energética da União Europeia com a Rússia, sob o argumento de que fomentava a dependência europeia do gás e do petróleo russos. A ex-premiê alemã Angela Merkel, defensora dessa aproximação com Moscou, alegava que isso criava uma dependência mútua, já que a economia russa dependeria mais da UE, e que isso desencorajaria uma ação agressiva de Moscou.
A invasão russa da Ucrânia mostrou que a UE estava errada. Em nome da segurança (ou da defesa do regime), o presidente Vladimir Putin sacrificou a economia russa. Hoje, a UE apoia a Ucrânia numa ponta, enviando armas e dinheiro, enquanto na outra ponta financia a guerra de Putin ao comprar energia russa, de cuja dependência ainda vai demorar para se livrar.
Esse momento “cria cuervos” da Europa gerou um debate nos EUA, hoje em pleno andamento, sobre como a relação econômica com a China também criou uma dependência nos EUA, que traz riscos ao país. Hoje os EUA (e o mundo) dependem da China para inúmeros insumos e bens de consumo. Isso ficou evidente na pandemia, quando Washington teve de obrigar empresas locais a produzir equipamentos médicos de proteção individual.
A percepção dessa vulnerabilidade parece estar fazendo os EUA aceleraram o processo de separação em relação à China. Há ainda grande incerteza sobre o alcance dessa separação imensamente complexa, pois as economias estão muito integradas, o que não ocorria na época da Guerra Fria original, entre EUA e União Soviética. A China, por exemplo, é segundo maior detentor de títulos da dívida americana, com mais de US$ 1 trilhão.
Mas iniciativas americanas nas últimas semanas vêm buscando promover a diversificação da produção para fora da China.
Em maio, Biden propôs um acordo econômico a países da Ásia, com o objetivo de isolar a China. Nesta semana, ele propôs uma iniciativa à América Latina, também buscando conter a crescente influência chinesa na região. Nos dois casos, porém, as propostas foram escassas em detalhes. Ontem, na Cúpula das Américas, Biden pediu a CEOs americanos que tragam mais produção para a América Latina.
O receio em relação à China não está restrito aos governos. O golpe sofrido por muitas empresas na Rússia acendeu um sinal de alerta. Em maio a montadora francesa Renault anunciou sua saída do mercado russo, com perda de US$ 2,29 bilhões. Há uma ansiedade crescente quanto à dependência de negócios/produção num país com um regime hostil. As tarifas e restrições dos EUA à China são pequenas em comparação às sanções adotadas contra a Rússia. Medidas mais drásticas contra Pequim podem ter efeitos desastrosos para quem estiver excessivamente exposto à China. E uma coisa que as empresas aprenderam com a guerra na Ucrânia é que a economia está subordinada à segurança.
Nesta semana, o “The Wall Street Journal” noticiou que a Apple planeja transferir parte da produção para outros países. Hoje 90% dos produtos Apple são fabricados na China, o que consistiria numa vulnerabilidade significativa e perigosa para a empresa. Não se sabe quanto da produção deixaria a China.
Os EUA vêm acelerando ainda os laços de segurança com o entorno da China. Em maio, Biden pareceu se comprometer a defender Taiwan de um ataque chinês, o que seria uma mudança importante. O Japão acertou ampliar a cooperação com a Otan, a aliança militar ocidental.
É possível que um objetivo de Putin com a guerra seja acelerar a separação EUA-China, forçando um rearranjo geopolítico global. Se for isso, está conseguindo.
Por Humberto Saccomandi, editor de Internacional do Valor desde a criação do jornal, em 2000. Na “Folha”, foi correspondente em Londres e editor-adjunto de Mundo.
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