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Saiba as diferenças entre uma recuperação judicial no Brasil e nos Estados Unidos
A recuperação judicial é um mecanismo de socorro a empresas inadimplentes que mostrem condições de, a partir de uma renegociação com os credores, quitar as dívidas e se reerguer.
No Brasil, o instrumento foi criado por lei há 19 anos. Até setembro do ano passado, 966 empresas pediram recuperação judicial no país, de acordo com os dados mais recentes da Serasa Experian.
Recuperação judicial: quem mais recorre
Quem mais recorre ao mecanismo são micro e pequenas empresas – 64% do total de pedidos de janeiro a setembro de 2023. Ainda assim, chamam a atenção casos de grandes companhias, como Lojas Americanas, Oi e SouthRock, responsável pela marca Starbucks no Brasil.
Dessa forma, isso acontece pelo volume de dinheiro envolvido nesses processos e pela quantidade de credores afetados. Se a empresa é listada em bolsa de valores, o impacto de uma notícia de recuperação judicial pode ser ainda mais imediato.
“A recuperação judicial é para empresas que sofreram uma crise momentânea, mas que ainda são viáveis”, diz Pedro Almeida, advogado especialista em Contencioso Empresarial do GVM Advogados.
“No caso de negócios que se baseiem em um modelo ultrapassado, por exemplo, sem condições futuras de se soerguerem, não adianta só reestruturar a dívida.”
O papel dos credores na recuperação judicial
Os credores, ou seja, aqueles para quem a empresa deve, têm um papel fundamental nos processos de recuperação judicial.
Assim, cabe a eles avaliarem e votarem, em assembleia, o plano de recuperação proposto pela companhia – que, em geral, prevê uma redução considerável no valor das dívidas e prazos mais dilatados para o pagamento.
Caso a proposta seja rejeitada pelos credores, eles podem apresentar um plano de autoria deles. Se os credores vetarem a proposta do devedor e não apresentarem outro plano, se inicia um processo de falência.
Mas companhias que tenham atuação tanto no Brasil quanto em outros países podem pleitear a recuperação judicial aqui ou no exterior.
Foi o caso da aérea chilena Latam, que recorreu à Justiça americana, por meio do mecanismo Chapter 11.
O nome faz referência ao capítulo de número 11 do Código de Falências norte-americano. O Chapter 11 disciplina a recuperação judicial por lá.
Recuperação judicial é melhor nos Estados Unidos
Segundo especialistas, os Estados Unidos estão à frente quando o assunto é recuperação judicial, ainda que o Brasil siga um modelo internacionalmente reconhecido e venha avançando na legislação e na jurisprudência, especialmente nos últimos quatro anos.
Assim, companhias que possam escolher onde pedir a recuperação judicial eventualmente preferem os Estados Unidos.
“O mecanismo da recuperação judicial em si é semelhante nos dois países: é uma negociação coletiva da empresa com os credores”, diz o advogado Pedro Almeida.
“Mas o processo funciona melhor nos Estados Unidos, pelo sistema judiciário deles e pelo cumprimento estrito da lei.”
De acordo com Almeida, há situações em que os próprios credores se sentem mais confortáveis se a ação correr nos Estados Unidos.
Dessa maneira, há uma leitura de que o processo lá é mais transparente, rápido e seguro do que no Brasil.
Outro ponto que contribuiu para o rigor do processo norte-americano é que crimes contábeis por lá resultam em penas duras, como de prisão, o que raramente acontece no Brasil.
Veja a seguir os principais pontos da comparação entre os modelos do Brasil e dos Estados Unidos:
Lei americana surgiu quase 30 anos antes da brasileira
No Brasil, a lei que hoje disciplina a recuperação judicial foi criada em 2005. Já nos Estados Unidos, o mecanismo é de 1978, explica o professor e advogado especialista em Direito Empresarial Luiz Friggi. “Lá a lei é mais madura e desenvolvida.”
A regra brasileira passou por uma reforma em 2020 e a americana, em 1994.
Antes da Lei nº 11.101/05, havia no Brasil, desde 1945, a concordata. “Era um mecanismo totalmente diferente da recuperação judicial”, conta Friggi.
Assim, a concordata não levava em consideração a participação de credores, mas apenas a decisão do juiz, além de restringir o perfil de quem poderia ser incluído na renegociação.
A recuperação judicial brasileira foi inspirada no modelo da Uncitral, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional.
Dessa forma, a entidade tem como objetivo modernizar e uniformizar regras de comércio internacional.
EUA têm medida extra de transparência
“Há uma assimetria informacional muito grande quando comparamos o modelo brasileiro e o dos Estados Unidos”, afirma o advogado Luiz Friggi.
Por exemplo, nos EUA, o devedor precisa apresentar à Justiça e aos credores o “disclosure statement”, um documento a ser homologado pelo juiz contendo informações detalhadas e em linguagem clara sobre a situação financeira da empresa.
Assim, caso o documento tenha falhas, a empresa pode ser punida.
No Brasil não existe essa figura do “disclosure statement”.
Portanto, são exigidos da empresa extratos de contas bancárias, balanço dos últimos três exercícios e relação dos credores e empregados, dos bens dos sócios e controladores e dos ativos imobilizados.
“São informações muito simples e não verificadas”, diz Friggi.
Informação é importante para um processo bem-sucedido
José Luiz Bayeux Neto, sócio do Warde Advogados e especialista em disputas societárias e recuperação de crédito, destaca a importância da informação para uma recuperação judicial bem-sucedida.
“O devedor apresenta um plano de novação (transformação de uma dívida em outra) e cabe aos credores decidirem sobre ele. Para isso, os credores precisam de informações sobre a empresa. Há dados que podem até mesmo barrar tentativas de fraude.”
Assim, Luiz Friggi destaca um dos requisitos para que a Justiça americana autorize a recuperação judicial: a “boa-fé” da empresa devedora.
Na lei brasileira não há essa previsão. “No Brasil, essa avaliação fica mais a cargo dos credores. Nos EUA, o próprio juiz corta a ação pela raiz se perceber que não há boa-fé.”
A reforma feita na legislação brasileira há quatro anos inseriu um mecanismo que vai nesse sentido e que tem ajudado a barrar possíveis fraudes.
O instituto da constatação prévia consiste em uma perícia encomendada pelo juiz na empresa devedora logo na primeira fase do processo.
O perito designado checa se a empresa existe, se opera e se tem funcionários, além de verificar dados contábeis, com o objetivo de saber se a firma tem mesmo condições de se reerguer com o apoio da recuperação judicial.
Brasil carece de credores mais ativos no processo
Friggi aponta que dispositivos inseridos na lei brasileira na reforma de 2020 tem potencial para estimular a participação de credores nos processos de recuperação judicial.
Dessa maneira, um deles, é a possibilidade de se apresentar um plano de credores, em contraponto ao plano de renegociação do devedor.
“Muitos credores nem tinham conhecimento dessa opção”, diz o advogado. Para o especialista, o dispositivo pode estimular uma cultura de participação dos credores, com a formação, por exemplo de comitês.
Nos Estados Unidos, esse é um dispositivo consolidado há anos.
Os planos elaborados por credores podem ser apresentados ao mesmo tempo que o plano do devedor, provocando uma competição entre as propostas.
Já no Brasil o plano dos credores só pode ser apresentado depois de o do devedor ser rejeitado pela assembleia de credores.
No Brasil, dívida fiduciária é tratada de forma diferente
A lei brasileira tem um artigo que exclui da recuperação judicial o crédito fiduciário e, assim, permite a bancos credores um tratamento diferenciado. Para Friggi, isso serve como uma “supergarantia para os bancos”.
Funciona assim: se o banco concede um empréstimo que tem um imóvel da empresa como garantia, esse crédito não está sujeito a entrar na renegociação de uma recuperação fiscal.
A companhia terá de negociar diretamente com o banco.
Nos Estados Unidos essa proteção adicional aos bancos não existe. “A empresa pode negociar com todos os grupos de credores dentro do processo de recuperação judicial”, diz Friggi.
Papel do administrador judicial difere nos dois países
Quando a recuperação judicial é homologada pela Justiça brasileira, é nomeado obrigatoriamente um administrador judicial para conduzir o processo.
Dessa maneira, trata-se de um profissional, geralmente advogado, que vai atuar como braço direito do juiz em tarefas administrativas e de fiscalização.
Assim, cabe a esse administrador, por exemplo, montar o quadro de credores, fazer relatórios periódicos sobre o processo e presidir a assembleia de credores.
Mas nos EUA, existe a figura do “trustee”, um funcionário público federal com função de supervisionar o processo.
Por isso, lá o juiz pode escolher designar ou não um “trustee” para ações de recuperação judicial.
Os casos que demandam esse profissional são os mais complexos e que envolvem dívidas altas. As atribuições do “trustee” incluem ajudar a empresa devedora a redigir o plano de recuperação.
Inadimplência e falência soam menos mal nos EUA
José Luiz Bayeux, da Warde Advogados, descreve que, no Brasil, há uma cultura entre as empresas de resistir ao máximo antes de recorrer à recuperação judicial.
“Algumas esperam até demais”, diz Bayeux.
Assim, após acionar o mecanismo, a empresa segue a operação normalmente, ainda que com uma fiscalização reforçada por parte da Justiça e algumas restrições, por exemplo, para a venda de imóveis.
Dessa maneira, o impacto da recuperação judicial na reputação da empresa pode se dar em oscilações dos papéis da companhia na bolsa de valores e também em procedimentos rotineiros, como a compra de mercadoria.
“Os fornecedores passam a vender só à vista e não mais a prazo, por receio de não receber o pagamento”, diz Bayeux.
Mas nos Estados Unidos, segundo Luiz Friggi, predomina uma cultura de que crises e até mesmo falências fazem parte da história de empresas e empresários.
Como a estrutura do país para lidar com o “insucesso” permite processos ágeis e não tão custosos quanto no Brasil, os empreendedores saem desta fase com melhores condições de se reerguer e fazer novas apostas em negócios.
Carolina Freitas, repórter freelancer do JOTA
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