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Romance épico traz jornada de mulheres afetadas pela falta de dinheiro
“O dinheiro realmente não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro.” A máxima de Millôr Fernandes poderia definir o que encontramos nas páginas de “As maravilhas”, de Elena Medel. Não à toa, nesse romance de estreia da escritora espanhola topamos com frases como: “A questão não é a família nem o amor: é o dinheiro”. Ou ainda: “No fundo se trata de dinheiro: da falta de dinheiro”. Contudo, a esse aspecto material se soma outro que, juntos, compõem o cerne da obra, por isso María, dona da fala anterior, arremata: “Mas também se trata disso: ser mulher”.
Acompanhamos quase 50 anos de situações protagonizadas por María e Alicia, avó e neta, respectivamente, entre 1969 e 2018. Não há, porém, um arco temporal linear a nosso dispor, mas idas e vindas entre diferentes anos de suas vidas que pontuam os títulos dos capítulos.
Esse período traz à tona muito da história recente da Espanha, tendo como marco o fim da ditadura franquista, mas a partir da perspectiva dessas mulheres – e daqueles que a cercam (ou cerceiam).
Destaque para o 8 de março de 2018, Dia Internacional das Mulheres, quando as espanholas realizaram uma greve feminista, data que abre e encerra o romance de modo surpreendente, a contrastar percursos de politização e apatia a partir da especificidade da condição social e de gênero.
A essa forma engenhosa do romance se soma o não cumprimento da expectativa de que a ligação parental pudesse sugerir uma sucessão progressiva entre as gerações das mulheres em questão, além da evidente lacuna encarnada pela personagem Carmem, filha de María e mãe de Alicia.
As duas protagonistas, cada uma a seu tempo, partem de Córdoba para ganhar a vida em Madri, e nesse movimento deixam essa terceira personagem de quem pouco sabemos no território natal.
María, por exemplo, passa a trabalhar como cuidadora de crianças e idosos, além de faxineira: ocupações que nunca garantem o suficiente para retornar e criar a própria filha. María e Carmem tornam-se mães muito jovens, já Alicia recusa a maternidade, contrariando o desejo do marido Nando, de modo que o livro toca fundo no abandono feminino diante de certos papéis, ainda que o peso da situação econômica tenha grande influência em certas decisões ou naquilo para o que não há escolha.
Em relação aos personagens masculinos, chama a atenção o impacto de certas ausências, sobretudo a paterna, caso do pai de Carmem, não nomeado e apenas identificado como um homem que María conheceu em um ônibus, e o de Alicia, que passa de provedor de uma vida farta e de facilidades a empresário endividado que tenta simular um acidente de carro e, fracassando, enforca-se.
O gesto impede que as herdeiras sejam asseguradas e faz com que tenham de lidar com a perda de bens e retornar ao bairro da borda da cidade de onde saíram. A despeito das situações e tragédias que poderiam descambar para sentimentalismos, nada é derramado no livro.
Em “As maravilhas”, Elena Medel problematiza também o poder das versões, sobretudo a dos trabalhadores, e a autoridade que se conquista com a escrita das histórias. Quem as escreve e em que condições? É uma das questões que surgem em uma das reuniões de um grupo frequentado por María.
“Que horas a gente vai contar nossa história? E acha que a gente conseguiria? Você sabe que me atrapalho todo na hora de escrever. Além de não ter tempo, nem sei como fazer isso”, pontua um dos integrantes.
Nesse sentido, a universidade está entre os acessos ressaltados: “Estou falando de estudos de verdade: ir para universidade, vários anos e várias disciplinas, com família bancando tudo. Quem da nossa idade estudou, sem contar os chefes”. E a linguagem que se adquire nesse deslocamento educacional alvo de uma apropriação distinta da que se recebe de modo passivo: “Se não tomarmos cuidado, vamos usar as palavras dos nossos inimigos”.
María, entretanto, ouve tudo sem nunca pedir a palavra. Mas o silêncio é quebrado no contato com outras mulheres que, como Loli, percebem que o inimigo pode não ser apenas o patrão, mas o operário com quem se deita. O banheiro feminino é convertido em espaço político.
“Estamos aqui, María lhes dizia, fingindo para o mundo que somos amiguinhas tomando café para comentar o casamento das famosas, porque nossos maridos não suportariam escutar o que temos a dizer: eles seriam os primeiros a proibir nossas conversas.”
As maravilhas que dão título ao romance remetem ao clássico de Lewis Carroll. No entanto, a queda da Alicia de Medel é social e resulta em um encontro com uma dura realidade no contexto de seu país. As riquezas que um dia provocaram inveja se convertem em falta, mas o que cada um faz com o que lhe é retirado é decisivo. “Como assunto da mensagem, Celia escolheu um sem vínculo aparente com a situação: ‘As maravilhas’.” De alguma forma, Medel fez como essa personagem ao batizar seu livro.
As maravilhas, de Elena Medel Trad.: Rubia Goldoni Todavia, 192 págs., R$ 64,90.
Resenha: Luciana Araujo Marques é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp).
Por Luciana Araujo Marques — Para o Valor Econômico, de São Paulo.
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