- Home
- Mercado financeiro
- Economia
- Por que a onda extrema de calor na Europa mexe no bolso e na vida de todos?
Por que a onda extrema de calor na Europa mexe no bolso e na vida de todos?
Os entusiastas dos vinhos vão ter de aprender a ampliar seus horizontes, pois há algo de efervescente no reino da Dinamarca. Por improvável que pareça, o país escandinavo está no mapa da viticultura. Com a temperatura do planeta 1,5º C mais alta e ainsolação local prolongada em três a cinco semanas nas últimas duas décadas, a pequena cidade de Almind tornou-se umbom “terroir” e ganhou até uma denominação de origem (DO) para chamar de sua.
A DO levou sete anos para ser reconhecida pela União Europeia (UE), uma batalha vencida por Sven Moesgaard, o visionáriodono da Skærsøgaard, que se dedica há 24 anos ao ofício e já produz 20 mil garrafas por ano. Seu espumante tem faturadoprêmios internacionais. As vinhas crescem na latitude 55.5, em um vale onde a formação montanhosa é do tempo em que a Dinamarca era considerada uma nação do Ártico.
“As condições climáticas mudaram. O gelo dessa área costumava derreter pelos fiordes. Agora produzimos espumante aqui. Somos a vinícola mais ao norte do mundo”, afirma Moesgaard ao
Valor. Químico de formação, ele entende dos efeitos damudança do clima sobre os processos de fermentação e vinificação das uvas e por que eles têm melhorado a qualidade doseu vinho.
“Será que podemos ser um país produtor de vinho?”
“Será que podemos ser um país produtor de vinho? Estou cada vez mais certo de que sim”, diz. “A temperatura mais alta é péssima para o mundo, mas Deus oferece presentes e temos de saber aproveitá-los. A acidez do nosso espumante é perfeita.” Moesgaard afirma que hoje a acidez equivale à que era dos vinhos franceses. Mas, agora, com o calor, a uva produz maisaçúcar, e o vinho fica mais alcoólico e ácido. Em alguns países do Sul da Europa foi necessário criar leis que permitissemmudar as condições de acidez dos vinhos artificialmente.
Aqui, produzimos como nos velhos tempos.”
Sven Moesgaard, o visionáriodono da Skærsøgaard, que já produz 20 mil garrafas por ano
Parte da produção da Skærsøgaard, que também inclui tintos e brancos, tem sido exportada para Alemanha, Suécia e,ironicamente, para a França. Na última segunda-feira, a temperatura em Almind era de 27º C, mais alta do que em Beaune,capital dos vinhos da Borgonha, onde fazia 24º C. Com o passar dos anos, o vilarejo dinamarquês ganhou duas horas a maisde insolação do que a Borgonha, reconhecida como uma das melhores regiões de vinhos do mundo.
A Dinamarca não é a única novata no ramo. Suécia, Noruega e Finlândia também estão nesse novo mundo. O Reino Unido foipioneiro em sair atrás do inusitado. Hoje, há até franceses se instalando do outro lado do Canal da Mancha para produzirvinhos, sobretudo espumantes, “made in Britain”. A fronteira vinícola muda a olhos vistos. E não é só ela. Variedades deinsetos, entre eles mosquitos, têm se aventurado pelo norte nos últimos anos. Se antes de 1970 apenas nove paísesenfrentavam epidemias de dengue, hoje são uma centena, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Com os extremos climáticos mais frequentes, cidades e seus moradores vêm tentando buscar alternativas que lhes permitamse adaptar aos novos tempos para o bem, como no caso de Moesgaard, ou para o mal. Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) assinado por cientistas de renome e publicado neste ano, estima que o“estresse do aquecimento urbano” pode reduzir a capacidade de trabalho dos indivíduos em 20% nos meses mais quentes jáa partir de 2050.
Talvez nem seja preciso esperar tanto
Há algumas semanas, durante a onda de calor que levou os termômetros da Inglaterraa baterem pela primeira vez na história a temperatura de 40,3º C, autoridades pediram aos cidadãos que evitassem os meiosde transporte público e que, se possível, trabalhassem de casa nos dias de calor intenso.
A temperatura foi tão brutal para padrões britânicos que derreteu um pedaço da pista do aeroporto de Luton. Os supermercados – por onde consumidores resolveram passear nos dias quentes para aproveitar o ar-condicionados -instalaram cortinas para cobrir os refrigeradores onde mantêm os perecíveis. Menos de 5% das residências no Reino Unido dispõem de ar-condicionado.
E, se as pessoas têm saído cada vez mais atrásdeles e de ventiladores nos anos recentes, elas têm tentado ser comedidas no uso desses eletrodomésticos até recentementeconsiderados supérfluos. Os altos preços das contas de energia, que devem triplicar neste ano, fazem com que pensem duasvezes antes de ligá-los. O problema é que cerca de 20% dos lares na Inglaterra ficam superaquecidos nos meses de verão.
Os moradores de pequenos apartamentos em Londres são os que mais sofrem, de acordo com dados da Universidade deLoughborough. O Comitê de Mudança do Clima do Parlamento britânico afirma que, se o governo não agir depressa, asmortes relacionadas ao calor vão triplicar nas próximas décadas. Estima-se que dois terços das casas do país, ou 19 milhõesde lares, não tenham sistemas de isolamento adequado. Ou seja, superaquecem quando faz calor e exigem altos custos deaquecimento nos meses frios. Representam um problema energético e de saúde.
O tema, que já estava na agenda do governo, faz parte da pauta do debate entre os candidatos do Partido Conservador quedisputam o cargo do primeiro-ministro Boris Johnson, que renunciou e deixará Downing Street no início de setembro. O custo de renovação dos sistemas de isolamento e ventilação das casas – em sua maioria construídas no século XIX – está na ordemdos bilhões de libras.
Na última semana, nova onda de calor atingiu o país, que agora registra um de seus piores e mais prolongados períodos deseca da história. Várias regiões estão em alerta vermelho. Milhões de pessoas se veem proibidas de regar plantas – ajardinagem é uma paixão nacional – e têm sido instruídas a economizar água. Irrigação de plantações inteiras passaram afazer parte da paisagem britânica, até recentemente sempre verde por natureza.
Mas essa foi a saída encontrada pelosfazendeiros para preservar o que sobrou das safras de frutas e legumes neste ano. Na Borgonha, as administrações regionais proibiram regar jardins, gramados ou plantas com mais de um ano até segunda ordem. Hortas só podem ver água de 22h às8h. Nada de lavar automóveis ou calçadas. Estas são apenas algumas medidas localizadas com as quais os cidadãos começama se acostumar a cada ano que passa.
Cidades pelo mundo têm discutido como se adequar à era dos extremos. Na Espanha, no Reino Unido e na França estuda-secriar um sistema que dê nomes às ondas de calor, assim como já acontece com tempestades e tufões. É uma maneira deconscientizar as populações da necessidade de agir. A cidade espanhola de Sevilha já tem um projeto-piloto em andamento.
O impacto da mudança do clima
Para Eugene Chan, professor de marketing da Escolade Administração Ted Rogers da Universidade Metropolitana de Toronto, Canadá, é fundamental convencer o cidadão do impacto que a mudança do clima tem sobre suas vidas e o que podem fazer individualmente para minimizá-lo. Mas nãoadianta apelar para a emoção para influenciar seu comportamento.
As pessoas vão dizer que a mudança do clima é um problema ‘sério’ e que ‘ameaça a vida’, ou usar imagens de casos extremos onde a Terra está alagada por conta do degelo. Mas essa não é a melhor forma de persuasão. É melhor usar números e estatísticas.”
Eugene Chan, professor de marketing da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá
“Mostrar os fatos, simplesmente, é mais eficaz”, diz o especialista em consumo, que tem um estudosobre o comportamento dos consumidores em relação à mudança do clima. Para ele, as pessoas vão aceitar começar porpequenas iniciativas. “Podem querer selecionar o seu lixo para reciclagem, especialmente em países onde ainda não há coletaseletiva. Depois, os consumidores vão se acostumar à ideia de sustentabilidade e adotar ações maiores, como dirigir menos.”
É nisso que aposta a campanha que a ONG Programa de Ação Dejetos & Recursos (Wrap na sigla em inglês) para reduzir odesperdício de alimentos pelas famílias. O resultado é que a principais marcas de supermercados do Reino Unido começarama abrir mão das etiquetas que indicam até quando alimentos frescos devem ser “preferencialmente” consumidos.
A medida tem por objetivo evitar que os alimentos terminem no lixo. Um dos argumentos para convencer o consumidor é que essepequeno gesto, além de proteger o meio ambiente, vai permitir economizar no fim do mês – música para os ouvidos de quemestá às voltas com a maior taxa de inflação dos últimos 40 anos. O índice ao consumidor britânico fechou julho em 10,1% aoano. Mas o Banco da Inglaterra, o BC inglês, estima que o indicador atualizado bata nos 13% ainda em outubro.
A Wrap afirma que 4,5 milhões de toneladas de alimentos que ainda poderiam ser consumidos são jogados fora anualmente.“O desperdício alimenta a mudança do clima e custa dinheiro ao consumidor”, diz a agente de Estratégia em Alimentos eBebidas da Wrap, Estelle Herszenhorn. No Reino Unido, segundo ela, o que cada família joga fora equivale a 700 libras porano, cerca de R$ 4,3 mil. Dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) indicam que todos osanos um terço da produção alimentar é desperdiçada mundialmente.
O movimento promete ser mais amplo, e, aos olhos de muitos, controverso. A data de validade, presente em produtosmicrobiologicamente perecíveis, também pode estar com os dias contados. Em janeiro deste ano, o supermercado Morrisonsavisou aos clientes que estava retirando a data de validade de 90% de suas marcas próprias de leite. A ideia era estimular oque chamaram de teste do olfato.
Já o Co-Op disse que estava trocando as etiquetas de validade de seus iogurtes pelas de “consumir preferencialmente até”. “Isso é algo que está no nosso controle. Uma pequena mudança de hábito que pode fazer diferença. E ainda ser sentida nobolso. No Reino Unido seria salvar 7 milhões de cestas de compras por ano”, afirma Herszenhorn.
Junto com a campanha pelo fim das etiquetas, a entidade também prega a venda de produtos unitários, dispensando as embalagens plásticas. A Wrap ainda trabalha com uma espécie de cartilha com medidas para garantir a validade prolongada dos produtos. Guardá-los nageladeira é uma delas.
“Batatas e maçãs podem durar um mês a mais, e os brócolis, duas semanas. Camarões e carnes podem ser congelados antesda data de validade”, diz. A ideia da campanha tem estimulado empresas a relançar embalagens em um novo nicho demercado, o da sustentabilidade do dia a dia. Na Inglaterra, o Leiteiro de Verdade é um pequeno comércio que entrega na porta de casa as velhas garrafinhas de vidro. As embalagens dos outros laticínios também não têm plásticos.
O traço urbano tem sido questionado por especialistas e pelos próprios governos. O desafio é como tornar os grandes centros mais resistentes ao calor com o mínimo de intervenções possíveis e ao menor custo. Afinal, o mundo acaba de sair de ummomento em que países se endividaram para conter os efeitos da pandemia, enquanto lutam para segurar a disparada dainflação.
Não há saídas simples
Em alguns casos, não há saídas simples. Não é de hoje que cidades costeiras do Reino Unido se preparam para o nível maisalto do mar e possíveis erosões. Obras de contenção têm proliferado, e habitantes têm sido deslocados. No vilarejo galês deFairbourne, que corre o risco de submergir, as pessoas estão sendo aconselhadas a se mudar.
Na Espanha, Barcelona ampliou de 5% para 30% a cobertura de árvores pela cidade. As variedades resistentes à secaminimizam os efeitos do aquecimento urbano e ainda melhoraram a qualidade do ar, além de reduzir em US$ 10 milhões as despesas do cidadão comum com a conta de luz pelo uso de ar-condicionado. A cidade americana de Austin tambémresolveu investir em cobertura verde. Foram mais de mil árvores plantadas em terrenos públicos.
Cada US$ 1 investido se converteu em US$ 10 em valor agregado ao ecossistema por meio de benefícios como melhor controle contra tempestades eredução do uso de energia em tempos de calor. Em algumas cidades africanas, ONGs têm dado apoio aos cidadãos para usarpersianas que ajudam a manter o calorão da porta para fora.
O exemplo de Londres, que criou a primeira Zona de Emissão Ultra Baixa (Ulez na sigla em inglês) do planeta, despertou ointeresse de outras cidades mundo a afora. Nesta área, que hoje afeta 4 milhões de pessoas e está sendo ampliada, veículosmais poluentes pagam uma taxa adicional (para além da tradicional “congestion charge” cobrada de cada automóvel que entra na área central da capital). Um quarto das emissões de carbono de Londres vem dos meios de transporte.
A Ulez, deacordo com dados publicados pela prefeitura, reduziu em 67 mil, na média diária, o número de veículos poluentes queentram em seu perímetro. Com isso, ajudou a reduzir os níveis de dióxido de nitrogênio (NO2) na capital em 20%.
Em fevereiro de 2019, o governo espanhol lançou o programa Estratégia de Transição Justa com um plano de ação urgentepara conter os impactos econômicos nas regiões afetadas pelo fechamento das minas de carvão e das termelétricas movidasa carvão. A iniciativa envolveu um grande acordo firmado entre governo, sindicatos e mineradoras em abril de 2020.
O plano prevê a realocação de mão de obra e a busca por empregos alternativos a partir de projetos de energia renovável e outrasatividades. Há ainda na Espanha um movimento para que o segmento da arquitetura também se adapte. Estima-se que aconstrução civil gere 36% do CO2 e 35% dos resíduos globais do planeta.
As múltiplas iniciativas individuais não dispensam o grande debate internacional sobre mudança do clima. Analistas sãocategóricos ao destacar que é um problema global que só poderá ser resolvido com ações globais. Ficou claro paragovernantes – inclusive nos países ricos, onde cresce a preocupação com o tema – que medidas pela sustentabilidade rendemvotos. Pesquisa de 2019 com eleitores da União Europeia mostrava que 77% consideravam o aquecimento global um critérioimportante para escolher candidatos.
A maior preocupação, no entanto, era com a produção saudável e sustentável de alimentos. Os percentuais chegavam a 87%dos entrevistados na Eslováquia, 86% na Áustria, 85% na Itália e 81% na França. No Reino Unido, pesquisa do instituto IpsosMori, à mesma época, indicava que 85% dos britânicos temiam a mudança do clima, o maior percentual desde que começoua ser medido o sentimento da população a respeito do tema, em 2005.
Tudo isso explica os grandes protestos que fecharam parte das capitais europeias nos anos recentes. E também apreocupação com a origem dos produtos vendidos pelas grandes redes de atacado e varejo. O Tesco, o Sainsbury’s e oWaitrose, três grandes supermercados britânicos, investiram US$ 11 milhões em um novo sistema de incentivos financeiros para produtores brasileiros que se comprometerem com a produção de soja sem desmatamento. Em uma primeira fase, oprojeto deve financiar 36 fazendas a produzir 75 mil toneladas de soja por ano no cerrado brasileiro.
Mas a disparada do custo de vida resultante dos quase três anos de pandemia e da guerra na Ucrânia, que já dura seis meses,trataram de ofuscar o debate climático. A inflação foi para o topo da lista de preocupação dos cidadãos e para a agenda dospolíticos. Planos de transição energética foram atrasados enquanto a Europa tenta equacionar como resolver a suadependência de gás russo.
Novas taxas
A discussão em âmbito ministerial na Alemanha e na Holanda para a criação de nova taxa sobre carnes deve ser posta embanho-maria. A ideia era que o tributo cobrado sobre o consumo rendesse recursos que seriam distribuídos entre apopulação mais pobre, certamente mais afetada pela medida.
O tema vinha sendo estudado por acadêmicos de outros países e era considerado por outros governos. Taxação semelhanteteria que ser acordada entre mais nações para ter efeito. De acordo com a especialista Franziska Funke, do Instituto paraPesquisa do Impacto do Clima de Potsdam, na Alemanha, esse debate é fundamental pois trata de sustentabilidade,segurança alimentar, saúde e bem-estar animal.
A taxação, segundo ela, não é suficiente para resolver o problema. Funke falaem redução de impostos para frutas, verduras e legumes e incentivos à produção de alternativas à carne. “Não podemos nosesquecer dos benefícios para a saúde, como redução da obesidade, ou para o ambiente, com a diminuição dodesmatamento”, diz Funke. Mas ela admite que essa discussão deve ser atrasada em função da alta do custo de vida.
Para Chan, as ondas de calor mais frequentes no hemisfério Norte, embora estejam nas primeiras páginas dos jornais, nãosão por si só capazes de mudar comportamentos. “As pessoas terão hábitos mais sustentáveis quando perceberem que elaspróprias estão por trás da mudança do clima”, diz. “Precisam entender que seu comportamento causa as ondas de calor, ouas tornará mais frequentes no futuro. Isso é muito difícil de fazer porque elas vão sempre se perguntar como ações individuaispodem causar ondas de calor em um país ou continente inteiro.”
Segundo o professor, o clima é um problema que afeta a vida de todos. “A maioria das pessoas não está preocupada com o que vai acontecer em 50 ou 500 anos. É preciso mostrar osefeitos imediatos que os seres humanos causam ao clima.”
Leia a seguir