Como o Plano Real saiu do papel, venceu a inflação e mudou para sempre a história do Brasil

Primeira reportagem de série especial mostra como um grupo de economistas encontrou a sociedade cansada da hiperinflação e combinou erros aprendidos com novas ideias para chegar lá

O engenheiro Clóvis Carvalho levantou-se na manhã do dia 2 de março de 1994 e decidiu ir a uma feira livre. Ele estava curioso para saber se um complexo plano do qual ele fazia parte seria capaz de deixar o mundo das ideias e chegar ao dia a dia do povo. Então número dois do Ministério da Fazenda, Carvalho voltou para casa com a certeza de que o Plano Real daria certo.

“Era o dia seguinte da implementação da Unidade Real de Valor e os feirantes estavam todos com as suas tabelinhas fazendo a conversão do cruzeiro real para a URV. Foi algo incrível de ver”, relembra, em entrevista exclusiva à Inteligência Financeira sobre os 30 anos do Plano Real.

Dez meses antes, Fernando Henrique Cardoso havia aceitado o convite do então presidente Itamar Franco para comandar o Ministério da Fazenda. A tarefa era complexa: combater a hiperinflação, algo que seus antecessores tentaram e falharam fragorosamente.

Naquele ano, o IPCA bateria a casa dos 2.500% ao ano, uma agonia para as famílias com as despensas vazias.

FHC era chefe da pasta das Relações Exteriores e estava em viagem quando Itamar assinou a nomeação. O telefone de Clóvis Carvalho tocou no dia seguinte. Ele e o novo ministro não eram próximos, mas FHC buscava um administrador para a secretaria-executiva e seu nome foi sugerido por dois grão-tucanos, José Serra e Sérgio Motta.

Ao receber o convite, Carvalho ficou ressabiado.

“Eu disse que ele estava louco”, conta, achando inusitado um sociólogo buscar um engenheiro para atuar na pasta da Fazenda de uma economia em crise aguda.

Ouviu que o governo formaria um dream team de economistas para enfrentar a inflação e que o ministério precisaria de alguém para ajudar na organização e deixar as mentes criativas trabalharem.

O dream team do Plano Real

FHC cumpriu a promessa.

Aos trabalhos que levaram ao Plano Real, viriam a se juntar economistas de renome, como Edmar Bacha, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Resende e Gustavo Franco. A missão de controlar a alta dos preços era tão árdua quanto crucial: a sociedade estava exausta da alta dos preços e das trocas constantes de moedas.

Foi a importância da tarefa que fez Clóvis Carvalho, relembra, deixar seu cargo de executivo em uma indústria de metais e aceitar o convite de FHC. Seu passado como militante estudantil, preso na ditadura militar, pesou para o sim.

Persio Arida e Gustavo Franco
Os economistas Pérsio Arida e Gustavo Franco. Foto: José Paulo Lacerda/Estadão Conteúdo – 10/03/1995

“Fernando Henrique dizia que era a hora de fazer as coisas que importam. E o que importava naquele momento era combater inflação, o imposto mais duro e cruel. Era minha chance de buscar o sonho da justiça social”, diz.

Reunidos sob a liderança de FHC, os economistas agora precisavam buscar as respostas que a sociedade pedia.

Alguns deles havia tomado parte de algum dos seis planos econômicos anteriores, que desde 1986 tentavam combater o chamado dragão da inflação. Portanto, estavam diante do medo de errar novamente, mas munidos dos aprendizados do que tinha vindo antes.

Como todos sabemos, no entanto, deu muito certo.

A inflação foi controlada e o Brasil ganhou uma nova e finalmente estável moeda. Contudo, como contam estudiosos e envolvidos na história, o real vai além do dia 1º de julho de 1994. Foi um processo que começou muito antes e se consolidou de fato apenas anos depois.

Vamos visitar um pouco dessa história nesta reportagem, que inaugura a série especial que a Inteligência Financeira preparou para os 30 anos do Plano Real.

O que foi o Plano Real e como ele venceu a inflação?

O Plano Real foi um conjunto de medidas adotadas a partir de 1993 para estabilizar a economia brasileira e controlar a inflação.

Foram três grandes fases.

Na largada, adotou-se um ajuste fiscal, com corte de gastos públicos, desvinculação de receitas e negociação das dívidas dos estados.

De acordo com Carla Beni, professora de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), a grande inovação do plano veio na segunda etapa.

Em março de 1994 entra em vigor a Unidade Real de Valor (URV), um modelo engenhoso através do qual se pretendia controlar a chamada inflação inercial.

Assim, a especialista explica que inflação inercial é aquela que se dá pela própria dinâmica da correção dos preços segundo os índices passados.

“A ideia da URV era zerar a memória inflacionária. Se adaptou toda a economia para calcular a URV, que era o equivalente a um dólar. O objetivo era ter um modelo em que fosse controlada a inflação inercial antes da adoção da nova moeda”, explica, em entrevista à Inteligência Financeira.

O então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso exibe cartilha da URV
O ministro Fernando Henrique Cardoso segura a cartilha da URV enquanto concede entrevista. Foto: Wilson Pedrosa/Estadão Conteúdo – 1/3/1994

Dessa forma, diariamente o Banco Central calculava o valor da URV, que começou em CR$ 647,50 e chegou a valer o equivalente a CR$ 2.750 no seu último dia de vida em 30 de junho.

Nesse período, o cálculo levava em conta a inflação em cruzeiros reais, mantendo os preços equivalentes, mas permitindo que o real não “carregasse” o legado inflacionário da moeda que sairia de cena.

Por fim, tivemos a terceira fase, que foi a adoção do real em si a partir de 1º de julho de 1994.

Aqui, além de distribuir e adotar a nova moeda, o governo implementou também a âncora cambial, estabelecendo um teto para a taxa de câmbio a fim de evitar que os preços voltassem a subir.

‘Longo e doloroso aprendizado’

“O Plano Real foi resultado de um longo e doloroso aprendizado”, resume o cientista político Sérgio Fausto em entrevista à Inteligência Financeira.

Diretor-geral da Fundação FHC, ele atribui o sucesso do real a uma série de fatores, com destaque para a presença de economistas e lideranças que carregavam uma bagagem, tinham boas relações com o mercado internacional e souberam aproveitar um cenário político ineditamente favorável.

Para o jornalista e ex-ministro Thomas Traumann, de fato é impossível entender o Plano Real sem considerá-lo “resultado de uma série de fracassos”.

Autor de O Pior Emprego do Mundo, livro em que trata do comando da Fazenda brasileira como a tarefa mais inglória que há, ele afirma que as marcas dos planos anteriores eram um traço importante daquela equipe.

“O Plano Cruzado era para ter um congelamento de preços de só três meses. No primeiro momento, teve um sucesso muito grande, mas durou pouco. Por isso, a equipe do Plano Real olha e diz: não vai ter congelamento de preços. São pessoas que apanharam muito, receberam muitas críticas, mas olharam para os erros anteriores e decidiram fazer diferente”, argumenta, em conversa com a Inteligência Financeira.

Para além de uma equipe que sabia o que não fazer e que trouxe novas boas ideias, como ressaltou a professora Carla Beni ao mencionar a URV, os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em considerar que há uma conjunção única de fatores que contribuíram para o sucesso do Plano Real.

Desde a atuação dos políticos e economistas envolvidos e os esforços de comunicação do governo até fatores que estavam fora do controle na largada, como o resultado das eleições presidenciais de 1994.

Bastidores da história que controlou a inflação

Nem sempre a paz reinou

Um fato curioso sobre o Plano Real é que se engana quem acredita que desde o princípio todos os integrantes da equipe estavam de acordo sobre tudo o que viria pela frente.

Na verdade, o relato é de que houve muita divergência ao longo das reuniões e que muitas vezes foi preciso dar opções a FHC.

O ministro ora desempatava a favor de um, ora de outro.

“Nós primeiro tentávamos o consenso, que é sempre a melhor opção. Se não era possível, a gente ia atrás ao menos do consentimento. Se não dava para ter nem o consenso e nem o consentimento, a autoridade decidia e nós íamos em frente”, afirma Clóvis Carvalho.

Há divergências sobre o tamanho desses descompassos internos.

Durante a apuração de seu livro, Thomas Traumann afirma que o que mais o surpreendeu dos relatos ouvidos era o de que “eles brigavam o tempo todo”. “Entender isso me deu muita informação”, conta.

Para Sérgio Fausto, “existia uma divergência criativa, mas dentro de parâmetros e com boa administração”.

O importante para o atual diretor da Fundação FHC é que quem via de fora não ficava sabendo.

“Nada vazava, e imagine o que poderia ser feito no mercado se alguém soubesse quais eram as opções e o que estava sendo discutido”, questiona.

Voo com destino para onde?

Clóvis Carvalho conta que um momento decisivo ocorreu nos últimos meses de 1993.

A avaliação dos envolvidos era a de que tinham várias boas ideias sobre a mesa, mas “o pessoal estava disperso”, como resumiu o ex-secretário-executivo da Fazenda.

A missão de organizar o “plano de voo” foi entregue a André Lara Resende. Cientes de que a sociedade estava cansada de tantos planos, eles precisavam externar uma ideia que tivesse começo, meio e fim.

Mas o problema é que o real não seria concebido com um único projeto de lei, mas com um conjunto de iniciativas.

Foi desse debate que surgiu a Exposição de Motivos 395, tornada pública em 7 de dezembro de 1993. “Esse texto, para mim, foi o nascimento concreto do plano”, diz Clóvis.

Vale a pena saber falar francês?

Um dos entraves do Plano Real era que as ideias que estavam na mesa no Brasil não faziam parte da receita padrão que o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomendava aos países em dificuldades.

Para o Brasil, no entanto, ter algum tipo de endosso do FMI era importante para dar credibilidade ao plano econômico.

Sérgio Fausto conta que, para se aproximar de Michel Camdessus, diretor-gerente do Fundo, Fernando Henrique Cardoso recorreu a uma habilidade sua: falar francês fluentemente.

“O ministro falava com o Camdessus sempre em francês, no idioma dele. Isso era importante para a relação pessoal que os dois tinham”.

No final, Michel Camdessus cedeu e, em março de 1994, divulgou uma nota de apoio ao Plano Real.

Os presidentes, os ministros e o Plano Real

Ao ser nomeado em 1993, Fernando Henrique Cardoso se tornou o décimo ministro da Fazenda desde a redemocratização oito anos antes.

Tamanha rotatividade dá uma dimensão do quão difícil e instável era a função naquele tempo.

Em uma passagem retratada em O Pior Emprego do Mundo, há uma memória do antecessor de FHC, Eliseu Resende. Durante uma viagem para Nova York, Resende ouviu do então presidente do Banco Mundial, Lewis Preston, a pergunta irônica de que se ficar dois meses no cargo no Brasil “era algum tipo de recorde”.

Mas de acordo com fontes ouvidas pela reportagem, Fernando Henrique chegou ao posto com alguns diferenciais. Um deles era o peso político e as já citadas conexões fora do país.

Algo que surpreendeu seus comandados no Ministério da Fazenda era que FHC tinha certeza que o momento político era bom para um programa econômico, o oposto do que se imaginava na época.

“Em geral, programas econômicos são feitos no início do mandato e o governo Itamar já estava na reta final”, observa Sérgio Fausto.

A lógica de Fernando Henrique era outra: o escândalo que ficou conhecido como ‘Anões do Orçamento’ enfraquecia o parlamento, que estaria mais suscetível a aceitar iniciativas do governo.

“O Congresso procurava uma boia de salvação da sua credibilidade e o governo deu o real”, completa o cientista político.

O fator Lula

Fechando o cenário, havia o ‘fator Lula’.

Derrotado no segundo turno em 1989, Luiz Inácio Lula da Silva havia se tornado o favorito para as eleições de 1994, o que não animava muito os líderes do Congresso Nacional, onde o PT não tinha força e influência.

No primeiro momento, o PSDB chegou a ensaiar uma possível aliança, em que o partido poderia até indicar o vice de Lula. Como a ideia não vingou, o plano foi aproveitar a rejeição que o petista sofria para angariar apoios ao Plano Real.

Luiz Inácio Lula da Silva segura cédula de R$ 1
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante o lançamento de nova célula de um real, no Palácio do Planalto, em Brasília. Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo – 11/9/2003

Os prazos da lei eleitoral levaram Fernando Henrique Cardoso a ter de deixar o ministério da Fazenda antes da implementação do Real, ainda em abril, para que pudesse disputar a Presidência.

Quando saiu, Lula ainda estava à frente das pesquisas, mas isso foi revertido nos meses seguintes até que FHC vencesse a eleição já no primeiro turno.

“O plano de estabilização precisava de uma âncora política, que desse credibilidade de que ele continuaria. A candidatura do presidente Fernando Henrique foi essa âncora”, diz Sérgio Fausto.

Itamar Franco, Rubens Ricupero e Ciro Gomes

O papel do então presidente Itamar Franco no Plano Real foi alvo de disputas nos anos seguintes.

A equipe econômica que o elaborou ganhou protagonismo no legado, embora tenha sido Itamar como presidente quem tenha assinado os projetos que deram forma ao plano.

Há momentos decisivos. Um deles foi após a saída de FHC, que queria Clóvis Carvalho ou Pedro Malan como seu sucessor. Itamar se recusou. O presidente manteve a carta branca da equipe que fora montada, mas exigiu indicar o ministro. Seu primeiro escolhido foi o diplomata Rubens Ricupero, que à época era seu ministro do Meio Ambiente.

“Foi um impacto forte não termos mais o FHC. Foram momentos de incerteza, de ameaça de que aquilo não se manteria. Felizmente, o Ricupero era alguém que merecia de todos, como o grande diplomata que era, que fosse bem recebido”, diz Clóvis Carvalho.

De acordo com Thomas Traumann, Itamar Franco não queria ser uma “marionete” sentada na cadeira de presidente. No entanto, tanto Ricupero quanto seu sucessor, o ex-governador do Ceará Ciro Gomes, foram nomeados com a missão de manter o barco como estava. “A ordem era não mexer em ninguém, mas eles que falavam com o presidente”, diz o escritor.

O Plano Real depois de 1994

A vitória de Fernando Henrique Cardoso nas eleições de 1994 foi importante para consolidar o Plano Real, na avaliação dos especialistas ouvidos pela reportagem.

“Moeda tem uma base fiduciária, ou seja, a base dela é a confiança. A moeda é uma abstração emitida pelo Estado e só funciona se todo mundo acreditar nela. Como o ministro virou presidente e os economistas da equipe continuaram você teve um peso fiduciário muito grande”, argumenta a professora Carla Beni.

Dentre os membros da equipe do Plano Real saíram ministros e presidentes do Banco Central, como o próprio Clóvis Carvalho, que assumiu a Casa Civil, e Pedro Malan, que enfim se tornou ministro da Fazenda.

No entanto, a história do Plano Real não termina ali.

O Real sob teste

Nos anos que se seguiram, momentos decisivos aconteceram. Sérgio Fausto conta que FHC sentiu nos primeiros meses de 1999 um medo de que tudo pudesse dar errado e que ele não havia sentido até então.

Quando o câmbio foi flexibilizado, a cotação do dólar disparou e o real ficou por um fio. “Ali realmente parecia que tudo ia dar errado”, conta o cientista político, que assessorava o presidente à época.

“O câmbio foi de R$ 0,89 para R$ 1,20 em duas semanas. Isso somado com a crise de energia elétrica do apagão levou o Brasil para uma recessão. O real realmente podia ter dado errado”, diz Thomas Traumann. O escritor afirma que, ironicamente, foi a posse do presidente Lula em 2002, com uma política econômica conservadora, que ajudou a consolidar os avanços.

Outro episódio da mesma época envolve dois personagens em posições distintas. Clóvis Carvalho conta de um telefonema que recebeu do ex-presidente Itamar Franco, que em 1998 havia sido eleito governador de Minas Gerais.

Itamar ligara para avisar que as contas estavam apertadas e, por isso, tinha decidido não pagar a parcela da negociação da dívida negociada do estado e assinada quando ele próprio era presidente.

Acontece que um dos aprendizados que a equipe do Plano Real tinha tido de planos anteriores era o de incluir nos acordos de renegociação uma previsão legal de transferências automáticas de recursos de impostos para pagar as parcelas.

Por isso, Clóvis conta que calmamente respondeu “o senhor não sabe, mas o senhor já pagou”. “Ouvi cobras e lagartos, mas a seriedade da forma como o plano foi feito me dava essa segurança”, diz.

O filme brasileiro continua

É por essas e outras que Thomas Traumann diz que “quem olha o Brasil apenas por pequenos trechos não enxerga o big picture“. Afinal, fato é que é consenso que o Plano Real não foi um único episódio em 1994, mas um processo econômico e político que se consolidou com o tempo.

“A história não é uma foto, é um filme. E sem o Plano Real certamente nosso filme brasileiro seria de terror”, afirma Sérgio Fausto.

Ele cita uma pesquisa do Ipespe para a Febraban, de dezembro de 2023, na qual os brasileiros citaram o Bolsa Família e o Real como os programas mais importantes. “É uma visão acertada, mas sem o controle da inflação o Bolsa Família não seria possível”, argumenta.

Da adoção do Plano Real para cá, crises de alta da inflação complicaram a vida de presidentes, mas nunca mais voltamos a viver as mesmas agonias de antes.

O real completa 30 anos como a moeda oficial do Brasil, mais tempo que cinco moedas que vieram antes somadas, com a perspectiva de grandes inovações com o Drex, o real digital.

“O Plano Real não foi um divisor de águas, ele foi o divisor de águas da nossa história econômica recente”, conclui a professora Carla Beni.