Investidor busca mais dados sobre risco sacado depois da crise da Americanas
As empresas já sentiram a pressão do mercado para melhorar a qualidade das informações sobre o chamado risco sacado, depois que o rombo revelado na Americanas aumentou a preocupação dos investidores com essa operação.
Demonstrações financeiras do quarto trimestre, que começaram a ser publicadas há três semanas, mostram inclusão de mais informações em relação ao trimestre e ao ano anterior. É o caso de Assaí, Ultrapar e Lojas Renner, e há ajustes por vir nos balanços em elaboração, especialmente de indústrias de consumo e varejistas, apurou o Valor com fontes próximas aos grupos. O período de publicação termina em 31 de março.
Para acalmar os ânimos, num momento ainda de tensão no mercado com o anúncio da Americanas, muitas empresas devem reforçar o argumento de que a antecipação dos recursos pelos seus fornecedores com uso do risco sacado não altera a natureza mercantil do compromisso quando não há mudança de prazo e condições de pagamento — ao contrário do que a Americanas pode ter feito. Mais importante do ponto de vista do investidor, haverá uma transparência maior sobre os valores referentes à operação, segundo executivos que supervisionam as demonstrações financeiras.
Com base em levantamento da casa de análise Spiti sobre os balanços de 80 empresas não financeiras do Ibovespa, principal índice da B3, o Valor identificou que em 45 não há menção ao risco sacado, convênio, “forfait” ou outras designações da operação. Isso pode significar que elas não têm esse tipo de compromisso ou que simplesmente não informaram — a Americanas, sabe-se agora, era uma das que tinham a operação, mas não divulgava. Em janeiro, a Americanas revelou um rombo de R$ 20 bilhões no seu balanço relacionado a operações “turbinadas” com risco sacado e que não eram reconhecidas como passivo.
O estudo da Spiti, obtido pelo Valor, foi feito por uma equipe de oito analistas, que levaram três semanas para levantar os dados nos balanços do terceiro trimestre, formulários de referência e demonstrações anuais.
Com base no levantamento, o Valor mapeou quatro grandes grupos. Além das 45 que não mencionam a operação de risco sacado, 35 admitem usá-lo. E a maior parte destas (19 companhias) mantém os compromissos dentro da conta fornecedores, dando detalhes sobre eles nas notas explicativas que são parte das demonstrações financeiras.
Nesse subgrupo, apenas Raia Drogasil, GPA e Assaí não quantificaram os volumes nas notas explicativas das demonstrações de julho a setembro. No balanço do quarto trimestre divulgado na semana passada, o Assaí passou a dar mais detalhes.
Somente nove empresas informam o risco sacado numa linha do passivo separada da conta fornecedores, facilitando a identificação para quem não chega nas notas explicativas.
Por fim, um subgrupo de sete companhias trata esses compromissos como dívidas financeiras, seja em uma linha segregada ou dentro de empréstimos e financiamentos. Alpargatas, Fleury e Vibra estão nesse grupo que trata a transação como dívida. Sergio Rial, que revelou ao mercado as “inconsistências contábeis” na Americanas, é o presidente do conselho de administração da Vibra.
Até a sexta-feira, um quarto das 17 empresas abertas não financeiras do Ibovespa que divulgaram seus resultados do quarto trimestre aprofundaram as explicações sobre o tema risco sacado ou adicionaram dados em relação a publicação de 2021, calculou o Valor.
Foram feitos três alertas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre o assunto, em 2016, 2017 e 2021, com recomendações sobre forma de classificação, num sinal de que a autarquia já havia identificado problemas de transparência nos dados.
No risco sacado, a empresa compradora, um varejista, por exemplo, oferece ao fornecedor a opção de antecipar os pagamentos por meio de uma linha em bancos parceiros. O banco paga o fornecedor, e a compradora paga o banco depois. Na maior parte dos casos, o pagamento ao banco ocorre no dia original da data da fatura e os juros são pagos pelo fornecedor. Nesse caso, existe o entendimento de que a natureza do compromisso segue operacional ou mercantil.
No entanto, se o comprador fecha acordo com o fornecedor para pagar, por exemplo, em 90 dias, mas quando faz o risco sacado as condições mudam (os prazos são maiores ou os valores se alteram), a CVM entende que a transação ganha cunho financeiro, e aquilo que era uma conta com fornecedores deveria virar empréstimo ou financiamento.
No caso da Americanas, a suspeita é que as condições mudavam e, mais do que manter o compromisso na conta fornecedores, ela ainda descontava os juros pagos da conta fornecedores, reduzindo o valor dos compromissos em bilhões de reais e inflando o lucro.
Na quarta-feira, a rede de atacarejo Assaí, que informava ter risco sacado, mas não o valor, divulgou as demonstrações financeiras do quarto trimestre em que cita o montante de R$ 2 bilhões para as operações, Ela volta a reforçar, como no ano anterior, que se trata de uma operação mercantil, sem alterações no prazo negociado com o fornecedor e nos valores.
Os R$ 2 bilhões citados equivalem a 15% da conta a pagar aos fornecedores do ano passado — em 2021, representavam 9%. Crescimento nas vendas, como ocorre no atacarejo nos últimos anos, pode explicar a alta nessa conta.
Sobre a não divulgação até então, a rede informa, em nota, que segue os princípios contábeis do país “de forma consistente” e que o risco sacado é algo comum no mercado e cabe ao fornecedor decidir se antecipa o pagamento.
Disse ainda que passaria a dar mais detalhes após as demonstrações anuais de 2022, como o fez.
GPA e Raia Drogasil são outras varejistas que não informam valores da operação, mas fazem uso do risco sacado. Procurada, a cadeia de farmácias não informa se publicará o montante no balanço de outubro a dezembro. E diz que as informações relacionadas à empresa estão disponíveis em seus materiais já publicados. A rede reforça, em suas notas nas demonstrações do terceiro trimestre, a condição comercial da transação.
O GPA relata apenas, nas demonstrações de 2021, realizar “convênio entre fornecedores”. Em nota ao Valor, a rede diz que os valores de risco sacado serão divulgados nas demonstrações de 2022, a serem publicadas no dia 27, “por entender que é um importante esclarecimento ao mercado”.
Afirma ainda que possui diretrizes de acompanhamento segundo práticas contábeis internacionais, e que paga suas obrigações nos prazos e valores negociados com os fornecedores — estes, responsáveis pela operação, diz. “Os valores do risco sacado são limitados e oscilam, segundo sazonalidade, entre 5% e 20% da carteira de fornecedores [e] o prazo médio de pagamento é inferior a 70 dias”, informa.
Essa defesa da natureza mercantil do risco sacado — sem efeito sobre os empréstimos — se repete em outros balanços já publicados nos últimos dias, e deve ser a tônica desta temporada nas notas explicativas.
No material da Renner, que já publicou seus números do quarto trimestre, foi criada uma nota explicativa específica para “obrigações risco sacado”, que inexistia nas notas de 2021. Essas operações somavam R$ 78 milhões ao fim de 2022, alta de 44% frente um ano atrás (passou de 3% para 4,6% da conta de fornecedores).
Em 2021, a rede relatava a transação como “confirming”, reforçando se tratar de antecipações com caráter mercantil. Sobre a nova informação destacada agora, a Renner disse ontem ao Valor que “optou por dar mais destaque às operações de risco sacado, com ainda mais transparência e respeitando a visibilidade que o tema tomou junto ao mercado e analistas no princípio desse ano”.
Disse que as explicações seguem as mesmas de demonstrações passadas, e que as transações não ocorrem “de forma massificada” e decorrem de decisão dos fornecedores, sem incidência de encargos financeiros para a Renner. Logo, preserva as características comerciais normais do negócio, em preço e prazo.
A respeito do peso na linha de fornecedores, em 4,6%, afirma ser “imaterial” versus o total da conta — em dezembro de 2020, o saldo foi de 4,2% da conta de fornecedores, muito próximo ao de 2022”, afirma em nota.
No setor de energia, a Raízen prestou, nas notas explicativas do quarto trimestre, novas informações sobre a transação, por ela identificada como “convênio”, discorrendo mais sobre o seu funcionamento em relação ao material do ano anterior. Procurada, a Raízen não comentou o assunto.
A Ultrapar decidiu abrir uma nova linha, em seu release dos resultados do último trimestre de 2022, para somar a dívida líquida com o risco sacado e vendor (operação de financiamento das vendas). Esse cálculo não era informado no balanço de 2021.
Fez isso como “apoio adicional” para o mercado, diz o grupo, em nota ao Valor. Ainda afirma que “segue à risca” a regulação, e sempre informou a transação em linha específica no passivo e detalhando nas notas explicativas. A dona da distribuidora de combustíveis Ipiranga ainda afirma que o seu risco sacado é operação “comercial” e, logo, não tem impacto na dívida.
No varejo de duráveis, de concorrentes da Americanas, investidores já buscaram informações nas próprias companhias — Magazine Luiza e Via — logo após o estopim da crise na rede rival. Inicialmente, buscava-se entender a política de publicação e eventual impacto em dívida, num momento de consumo ainda retraído.
O Magazine informa, na nota explicativa do terceiro trimestre, R$ 3,9 bilhões em risco sacado, e o considera uma transação mercantil — é a mesma soma de um ano antes. É também o entendimento da Via, dona da Casas Bahia, que relata R$ 2,5 bilhões no mesmo período, alta de 40% sobre setembro de 2021. A Via descreve taxas envolvidas na transação nas suas notas — Magalu e Via divulgam seus números de 2022 no dia 9.
Em setembro, o Magazine tinha risco sacado equivalente a 46% do total da linha de fornecedores e, na Via, eram 35%.
Como as redes relatam que não mudam, junto aos bancos, as condições negociadas com os fornecedores, elas têm informado a investidores que não trata-se de financiamento, e, assim, não haveria pressões nos índices financeiros (“covenants”) que precisam ser respeitados (sob pena de antecipação de vencimento de dívidas).
Procurado, o Magazine diz que seus balanços estão “completamente de acordo” com as normas contábeis, e os relatórios recentes da varejista foram reconhecidos pela transparência pela Anefac, associação de executivos de finanças. A Via informa “que sempre se pautou pela transparência” em seus resultados e segue as recomendações da CVM. Diz que menciona suas antecipações a fornecedores nos relatórios trimestrais e anuais.
Um caso que deve chamar atenção do mercado será a divulgação dos números da BRF, no dia 28.
O estudo da Spiti destaca o caso do frigorífico pela falta de clareza. Nas demonstrações do terceiro trimestre, a empresa menciona que há operações com modificação das condições de pagamentos e de preços negociados com os fornecedores, e em outras, diz que não houve alteração.
Gestores passaram a ter dúvidas se parte da operação de risco sacado da BRF era financeira, e logo, se pesaria na dívida. “Houve essa segregação seguindo recomendação da CVM de 2016, mas a essência não se altera, continua mercantil. O que mudou foi que houve acordos com prazos de vencimento da duplicata mais longos [para parte dos fornecedores]. Talvez tenha ficado pouco claro essas diferenças”, diz uma fonte a par do assunto.
A BRF deve alterar esse texto nas notas explicativas do quarto trimestre, apurou o Valor.
Em nota, a companhia informou que segue todas as normas da CVM e diretrizes internacionais, e que as condições do risco sacado são definidas entre o fornecedor da BRF e o banco, sem envolvimento da companhia. A empresa também diz fazer ajustes a valor presente em sua conta fornecedores.
A vantagem mais óbvia do risco sacado é o não pagamento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), e a melhoria nas condições dos acordos comerciais ao pagar o fornecedor à vista. Mas também pode evitar uma pressão maior no perfil de endividamento, já que não entra como uma operação tradicional de financiamento.
Há quem considere que tudo deveria ser contabilizado como operação financeira, como Leandro Siqueira, especialista em ações da Spiti e cofundador da plataforma Varos, responsável pelo levantamento usado pelo Valor.
“Não importa se trata-se de transação mercantil, porque se a companhia quebrar, o valor da operação do risco sacado vira dívida”, diz ele. A questão ganha peso pela expectativa de aumento de recuperações judiciais, com a contínua alta da taxa Selic, que vem encarecendo as dívidas dos grupos.
“Se a companhia entrar numa recuperação judicial, o banco não vai ao fornecedor, mas vai cobrar da empresa. E nos cálculos de ‘covenants’ das empresas, se simularmos considerando o risco sacado, os índices seriam mais altos que os atuais”, afirma o especialista.
Siqueira entende que “não é para demonizar o risco sacado”, uma operação usual, usada em larga escala também pelos pequenos fornecedores. “Mas a intenção é discutir definições mais claras da operação para reduzir essa incerteza”.
Segundo o estudo da Spiti, caso esse entendimento do risco sacado como dívida financeira fosse aplicado, cerca de R$ 40 bilhões que atualmente são passivos não onerosos, contabilizados na conta de fornecedores das empresas do Ibovespa, passariam para a rubrica de empréstimos e financiamentos, com efeito direto na dívida.
Já André De Moura, mestre em administração e controladoria e professor da FGV, e Eric Barreto, professor de finanças do Insper, entendem que, se não há alteração, junto ao banco nas condições fechadas no contrato de compra com o fornecedor, trata-se de operação comercial, e não financeira.
“Normas contábeis definem que, se ocorrem mudanças nos termos dos passivos, haveria o reconhecimento de um passivo novo, mas não é o caso. Aqui, prevalece a natureza da operação mercantil entre as partes”, diz Barreto.
“O risco sacado não pode sair dessa crise como o patinho feio pela importância dele no mercado”, diz Moura. Para ele, a defesa do princípio de que uma falência ou recuperação judicial transforma risco sacado em dívida se baseia na ideia de “uma exceção à regra”. Em outras palavras, estaria sendo desconsiderado o princípio contábil da continuidade operacional, que orienta as normas.
Como o Brasil adota as normas internacionais de contabilidade (IFRS, na sigla em inglês) qualquer mudança mais radical na maneira de contabilizar o risco sacado teria que ser discutido no âmbito do Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (Iasb). Enquanto isso, resta à CVM exigir informações mais detalhadas.
“Depois desse escândalo da Americanas, a CVM vai olhar muita demonstração com lupa, e as empresas sabem disso, mesmo que não exista uma norma específica de risco sacado, mas apenas recomendação. Vai ter um bocado de gente mudando as informações do quarto trimestre, abrindo mais dados, mesmo que elas digam que já faziam tudo certo”, afirma De Moura.
“As companhias sabem que a divulgação voluntária nessas horas pode diferenciá-las. Até porque, como não há obrigação (específica) em informar, quem não divulga nada não quer dizer que está agindo corretamente”, diz.
Há uma expectativa entre investidores e estudiosos que a CVM volte a emitir ofício envolvendo o tema com detalhamento maior de recomendações para o risco sacado mercantil e financeiro.
Por Adriana Mattos, Nelson Niero e Fernando Torres
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