Incertezas da política monetária

A consequência mais óbvia de uma meta de inflação mais alta é uma taxa de inflação mais alta

O Brasil convive, há vários trimestres, com incerteza sobre o arcabouço de política fiscal, dado o aparente consenso, na classe política, de que seria preciso, no mínimo, flexibilizar bastante o regime baseado no chamado Teto de Gastos, adotado em 2016. O mesmo não ocorria, até pouco tempo atrás, com a política monetária.

O arcabouço de política monetária, adotado em 1999, baseado em metas numéricas para a inflação (cheia) e um intervalo de tolerância, sobreviveu bem a crises domésticas, bem como duas crises internacionais muito relevantes, em 2008 e 2020. Mais recentemente, houve um importante reforço institucional, com a autonomia de jure, e não apenas de fato, do banco central. Mesmo assim, as expectativas de inflação para os próximos anos vêm subindo, e não apenas em horizontes mais curtos.

A consequência mais óbvia de uma meta de inflação mais alta é uma taxa de inflação mais alta. A elevação das expectativas no curto prazo tende a refletir choques, cujos efeitos se dissipam ao longo do tempo. Elevação de expectativas em horizontes mais longos é mais preocupante, porque evidencia alguma erosão da credibilidade do regime – a regra de bolso, dos banqueiros centrais, para medir ancoragem, é monitorar como se comportam as expectativas, em relação à meta, no horizonte dois anos à frente.

A incipiente desancoragem de expectativas reflete o debate sobre o futuro da trajetória de metas para a inflação, atualmente em 3,25% para 2023, e 3,0% para 2024 e 2025. A reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) de junho deverá fixar uma meta para 2026, podendo também alterar as metas já estabelecidas. Vamos examinar aqui argumentos pela elevação das metas.

Um argumento, recorrente, é que os problemas fiscais brasileiros seriam de tal monta que metas mais ambiciosas de inflação seriam inatingíveis, ou seriam disfuncionais. Como a inflação atua como a alíquota de um imposto regressivo, taxas mais elevadas implicam que as camadas de renda mais baixa da população, que não possuem acesso a instrumentos de indexação, acabariam pagando o custo dos problemas fiscais. A saída inflacionária para o problema fiscal não parece desejável, ainda mais em um país com a desigualdade e os problemas sociais que nos caracterizam.

Outro argumento, bem simplista, é que inflação de 3,0% seria muito atípica, algo muito raro e, portanto, exótico, na experiência brasileira. A inflação ficou abaixo de 3% em 1998 e 2017, e muito próxima em 2006. Mais importante, e óbvio, a inflação raramente ficou em 3% desde a adoção do real, apenas cerca de 10% do tempo, porque esse nunca foi o objetivo da política monetária – é difícil ter inflação baixa se a meta é alta.

Um terceiro ponto, é que a inflação global teria se deslocado para cima, de modo que seria mais difícil reduzir a inflação no Brasil, porque o componente importado atrapalharia. É verdade que a inflação global subiu em 2021 e 2022. No ano passado tivemos, segundo dados compilados pelo FMI, taxas de inflação de 6,4% nos EUA, 10,2% na Alemanha e 2,7% na China. Ocorre que os economistas do Fundo projetam taxas de inflação de 2,4%, 5,4% e 1,8% para esses países em 2023, 2,2%, 2,9% e 1,9% em 2024, e 2,0%, 2,3% e 2% em 2025. Os analistas de mercado e dos bancos centrais em geral têm visões semelhantes.

Em suma, a inflação global elevada tem sido sim um problema para a nossa autoridade monetária nos últimos anos, mas, a julgar pelas projeções dos economistas do FMI, esse problema tende a ser eliminado nos próximos com os choques de 2021/2022 se dissipando e com a política monetária contracionista adotada pelos respectivos bancos centrais. É possível que os economistas do Fundo, dos bancos e gestoras de ativos, e bancos centrais estejam errados, e que a inflação mundial se consolide em um patamar persistentemente mais elevado, mas parece arriscado, no momento, assumir esse erro coletivo como cenário básico, e usá-lo como premissa para decisões de política econômica.

Um outro argumento é que metas mais elevadas permitiriam ao banco central praticar taxas de juros mais baixas, estimulando, assim, a atividade econômica. Economistas do Itaú Unibanco examinaram essa hipótese detalhadamente (Meta mais alta, inflação mais alta, Itaú MacroVision), e cabe resumir aqui sua análise.

Uma primeira consideração é histórica. O que diz a experiência brasileira com metas de inflação mais altas, e, mais recentemente, com sua redução. De fato, a história mostra pouca correlação: entre 2003 e 2016 a meta de inflação foi mantida em 4,5%, com juros nominais em média de 12,2% e, mais importante, taxa de juros real média de 6,7%. Entre 2017 e 2022, com meta de inflação em queda, os juros nominais ficaram em média em 7,1%, e o juro real médio foi de 2,8%. Diversos outros fatores impactaram o nível do juro real nesses dois períodos, mas o ponto é exatamente esse: reduzir/subir a meta não necessariamente aumenta/reduz o juro real médio da economia.

Os economistas do Itaú Unibanco consideraram dois cenários em suas simulações. No primeiro, vale a hipótese, bem otimista, que a elevação da meta não abala a credibilidade do regime, de forma que as expectativas de inflação só aumentam no exato incremento da meta de inflação. Nesse caso, supondo um aumento da meta de 100 p.b., a inflação subiria cerca de 100 p.b. em oito trimestres, com a taxa Selic parada.

A taxa de juros oscila entre estabilidade e alta de 80 p.b. no horizonte de 8 trimestres. A trajetória de juros nominal fica estável na estratégia de elevar a inflação para meta no horizonte de 8 trimestres. Com juros nominais subindo menos do que a inflação, a taxa de juros real cai. Após esse período de convergência o juro nominal sobe 100 p.b., em linha com a revisão da meta, e o juro real volta ao patamar inicial – qualquer estímulo seria, portanto, apenas temporário.

Se a política monetária seguir o comportamento usual da autoridade monetária (a chamada Regra de Taylor do modelo do BCB), a taxa de juros nominal subiria 80 p.b. em 8 trimestres, levando a uma convergência da inflação mais lenta para a nova meta.

Um cenário mais plausível, também examinado pelo citado trabalho, é que as expectativas de inflação aumentem mais do que simplesmente o incremento da meta. A simulação considera o aumento de 100 p.b. na meta de inflação adiante, mas com desancoragem de expectativas da mesma magnitude. Nesse caso, a inflação subiria 200 p.b., caso a Selic seja mantida constante, e juros 160-200 p.b. para fazer a inflação convergir para a meta. O impacto na inflação em 4 trimestres é altista em125 p.b., com impacto de +200 p.b. na inflação do ano seguinte. A inflação, portanto, sobe mais do que a revisão da meta 8 trimestres à frente. A política monetária responde à desancoragem das expectativas, para manter a inflação na nova meta.

Em suma, a consequência mais óbvia de uma meta de inflação mais alta é uma taxa de inflação mais alta, com impacto sobre todas as variáveis nominais – o impacto sobre a taxa de juros reais é incerto e de natureza temporária. Poderíamos ter um estímulo de curto prazo, mas isso ao custo de uma inflação permanentemente mais elevada. Não parece uma iniciativa muito promissora.