Como o futebol e a Copa do Mundo viraram política de Estado no Catar
Quando Catar e Equador entrarem em campo neste domingo, às 13h (de Brasília), no estádio Al Bayt, será dado o pontapé inicial da primeira Copa do Mundo no Oriente Médio. Os significados são muitos, a começar pelo discurso oficial da Fifa de expandir o futebol a todos os cantos do planeta e pregar a tolerância entre os povos. Mas também deve ser lido como o ápice da estratégia do governo catari em transformar a própria imagem, abrir novos negócios e se fazer notar no xadrez da geopolítica mundial — e o esporte cumpre papel crucial neste processo.
Até meados da década de 1990, o pequeno país do Golfo Pérsico, praticamente metade do tamanho de Sergipe e com população de 2,7 milhões, não tinha muita relevância no cenário internacional. Mesmo com a riqueza proveniente das reservas de petróleo e gás, as atenções do mundo sempre recaíam sobre os vizinhos Arábia Saudita e Irã e as relações conflituosas da região. Hoje, o Catar é capaz de se equilibrar melhor entre os dois países inimigos e se posicionar mais enfaticamente em questões como o reconhecimento do estado palestino.
Terceiro maior exportador de gás do mundo, o país compartilha as reservas com o Irã, do outro lado do golfo, e precisa manter uma boa relação com o único vizinho com o qual tem fronteira por terra por questões econômicas.
“Cerca de 61% das exportações do Catar são de gás. Isso permite uma política externa mais independente. O Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), liderado pelos sauditas, tem o foco no petróleo. O Catar é um ponto fora da curva e agora aproveita a oportunidade da invasão russa à Ucrânia para oferecer seu gás para a Europa”, explica Andrew Traumann, professor do Unicuritiba e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Oriente Médio (GEPOM).
Reconhecimento pela bola
As mudanças começaram a acontecer sob o comando do pai do atual emir do país, o xeque Hamad bin Khalifa Al Thani, que deu um golpe em 1995. De olho no futuro e numa economia menos dependente de combustíveis fósseis finitos, países da região começaram a buscar alternativas econômicas e uma nova imagem.
O primeiro grande investimento do Catar nesse sentido foi a criação da Al Jazeera, a principal TV de língua árabe da região, com certa independência para tratar dos assuntos do Oriente Médio. Relação com países europeus, investimentos no exterior, filiais de universidades europeias em Doha e a criação de uma academia esportiva para formação de futuros ídolos fazem parte do combo da reformulação da imagem do país.
Embora o debate em torno do uso do futebol pelo governo catari tenha ganho corpo na última década, o esporte serviu de veículo de reconhecimento internacional para o país antes mesmo de se tornar independente da Coroa Britânica, em 1971. No ano anterior, o Catar conseguiu uma permissão especial da Fifa para participar da Copa do Golfo.
“O esporte ajuda a consolidar as identidades nacionais. As pessoas identificam que eles são um país a partir da participação na Copa do Golfo. Naquela época ainda existia uma inflexão do reino britânico para que houvesse uma federação só. Queriam juntar o Bahrein e o Catar, mas eles já tinham uma identidade definida, e o futebol ajudou a consolidar essa separação”, afirma o historiador do esporte Luis Henrique Rolim, que trabalhou como pesquisador do Museu Olímpico de Doha, na década passada.
Ao longo dos anos, o futebol foi desempenhando diferentes papéis, mas dobrou de peso na última década através do “sportswashing” (um processo de limpeza da imagem de um país pelo esporte). Em 2010, o Catar venceu a disputa para sediar a Copa do Mundo. No ano seguinte, o PSG foi adquirido por um fundo de investimentos, e a Qatar Foundation e a Qatar Airways se tornaram patrocinadoras de grandes clubes, como o Barcelona e o Bayern de Munique.
A ascensão ao poder de Tamin bin Hamad Al Thani, em 2013, após o pai abdicar do trono, fortaleceu o processo por ser um amante dos esportes. De 2004 até agora, o país sediou 24 eventos esportivos regionais e internacionais, incluindo o Mundial, e sem contar provas de automobilismo como MotoGP e Fórmula 1. A estratégia de se colocar como um grande player no jogo comercial mundial deu certo.
“É um movimento natural para que esses países sejam mais conhecidos e se tornem uma marca internacional dissociada das guerras e conflitos no Oriente Médio. O Catar ganhou musculatura com isso. Mas é mais uma questão de imagem do que uma revolução interna”, analisa Tanguy Baghdadi, mestre em relações internacionais.
Por Renan Damasceno e Tatiana Furtado
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