Crises do petróleo e gás põem em xeque vida moderna e ordem mundial
Os mercados começaram o ano com um perfil que há muito não se via. Nas bolsas, enquanto as empresas-símbolo do mundo digital tiveram quedas consideráveis, os nomes mais tradicionais da antiga economia do petróleo trouxeram retornos elevados, depois de uma década andando de lado. A responsabilidade por essa reversão cabe principalmente às tropas de Vladimir Putin, que, ao pôr os pés em território ucraniano, bagunçaram as cadeias de suprimento do trigo, de fertilizantes e do petróleo e gás.
O fenômeno aponta, no entanto, para transformações que vão além dos bombardeios em Mariupol e da eventual interrupção do fornecimento de gás na Europa. Ao colocar em xeque as fontes de energia que movimentam a máquina industrial alemã e o consumo do dia a dia no continente, a guerra na Ucrânia atua como um fósforo atirado em um barril de pólvora, qual seja: a das bases da economia, do modo de vida moderno e da ordem mundial.
“O fundamento material da nossa civilização está sendo embaralhado. Não é impossível que apareça uma nova ordem mundial, mais adiante. Mas, por enquanto, estamos em um mundo desordenado. É difícil vislumbrar o que poderá ser essa nova ordem”, afirma a economista política inglesa Helen Thompson, professora da Universidade de Cambridge.
Thompson é autora dos livros “Oil and the Western Economic Crisis” (O petróleo e a crise econômica ocidental), de 2017, e do recente “Disorder: Hard Times in the 21st Century” (Desordem: tempos difíceis no século XXI). Este último foi lançado em 24 de fevereiro, ao mesmo tempo que os primeiros tanques russos atravessavam a fronteira da Ucrânia. “Essa coincidência foi um tanto perturbadora”, comenta. “Enquanto escrevia o livro, sabia que era preciso frisar o problema da Ucrânia. Mas não a ponto de prever que haveria uma guerra tão rapidamente!”
Antes mesmo da invasão, a cientista política já colocava a energia, petróleo em particular, no coração das causas da desordem mundial, caracterizada pelo retorno de fraturas geopolíticas, a ascensão de extremismos e uma série de conflitos militares sem resolução clara. Uma das razões para a preeminência da questão energética é que as pressões da opinião pública e de investidores para acelerar a transição sustentável vinham provocando um achatamento do valor de mercado e da capacidade de financiamento de empresas do setor de petróleo e gás.
No entanto, a demanda global por combustíveis fósseis continuou a crescer, a despeito dos investimentos em energia renovável. Depois das quarentenas de 2020, que deixaram os estoques de petróleo no máximo e derrubaram momentaneamente seu preço, a rápida recuperação do ano passado provocou o efeito inverso. Só na China, o consumo de gás subiu 20% em 2021. A cotação do gás natural acompanhou o renascimento da demanda, mais que triplicando entre junho e dezembro.
Foi diante desse pano de fundo que, nos primeiros meses deste ano, o setor de melhor desempenho nas bolsas do planeta foi o de energia. A alta chegou a bater em quase 40% no índice S&P 500 de janeiro a abril, enquanto o índice geral apresentava queda de 6%. São empresas que sofreram com o início da pandemia, dois anos atrás, e começaram a se recuperar no ano passado. A Saudi Aramco, em particular, chegou a desbancar a Apple como empresa mais valiosa do mundo em abril.
O valor do petróleo explica boa parte do desempenho: em abril de 2021, estava na casa dos US$ 60 por barril (WTI) e, um ano mais tarde, chegou a bater em US$ 124, ou seja: o dobro. Desde então, o barril oscilou sempre acima dos US$ 100 e, segundo analistas, só não continuou a subir por causa dos lockdowns impostos pelo governo chinês em regiões industriais importantes, como Xangai.
Ao longo da última década, o setor de energia tradicional vinha perdendo o viço nos mercados, por duas razões principais. A primeira é a previsão de que o capital fixado em ativos ligados à extração de petróleo, gás e carvão, os chamados “ativos marrons”, em breve seriam rejeitados pelos investidores. No começo do ano passado, os economistas Eric Jondeau (Universidade de Lausanne), Benoît Mojon (Banco de Compensações Internacionais) e Cyril Monnet (Universidade de Berna) chegaram a prever que os ativos marrons seriam os “novos subprimes”, fonte de um possível “crash”.
A segunda razão, segundo análise da Agência Internacional de Energia, foi a expansão da oferta, sobretudo em petróleo e gás, com o desenvolvimento de métodos como o fraturamento hidráulico (“fracking”) e a exploração de óleo em águas profundas. O crescimento acelerado das fontes alternativas também contribuiu, com destaque para a solar e a eólica, cujos preços de produção despencaram. Com isso, o peso do setor de energia no índice S&P 500 caiu de 15%, em 2008, para apenas 4% atualmente. Na década de 1980, o conjunto de empresas formado por Shell, ExxonMobil, BP, Total e congêneres correspondia a 25% do índice de ações americanas.
Por coincidência, as empresas de tecnologia, estrelas dos mercados no último decênio, patinaram nos últimos meses. O setor como um todo perdeu 11% no índice S&P entre janeiro e abril. Em março, a imprensa americana repercutiu a afirmação do investidor Nick Giakoumakis, fundador do fundo Neirg de gestão de fortunas, de que o acrônimo Fang (Facebook [hoje Meta], Amazon, Netflix, Google [hoje Alphabet]) “vai passar a designar combustíveis [Fuel], Agricultura, recursos Naturais e ouro [Gold]”.
Ou seja: o mercado avalia que os ativos concretos, materiais, serão investimentos mais rentáveis nos próximos anos. A alta dos combustíveis também tende a elevar o preço de commodities, que dependem de energia para serem obtidas ou distribuídas. Associado às rupturas em cadeias de fornecimento, o processo tem resultado em altas do trigo e de metais como cobre, alumínio e níquel, cruciais para a indústria de alta tecnologia.
“Há uma redescoberta da materialidade. Houve muita empolgação, compreensível mas fantasiosa, em torno da era da tecnologia. Havia razões para isso: as empresas do setor ganharam muita influência sobre os rumos do mundo nas últimas décadas”, comenta Thompson. “Mas no ano passado as questões materiais irromperam na superfície das preocupações políticas e geopolíticas. Não é só a energia. Houve rupturas de cadeias em vários setores. Muitas empresas tiveram dificuldade de acessar coisas físicas.”
Com a guerra, o centro das atenções se voltou para a Europa e o gás. Em 2021, o continente importou 155 bilhões de metros cúbicos de gás russo, segundo a Comissão Europeia. A Alemanha, sua principal potência industrial, recebe cerca de 55% do gás e 35% do petróleo que consome da Rússia. O temor de um corte do fornecimento, como retaliação pela ajuda à Ucrânia, foi alimentado em abril pelo anúncio de que a estatal Gazprom deixaria de enviar o combustível para a Polônia e a Bulgária. Esses países haviam recusado a exigência de pagar em rublos.
Em 11 de maio, a GTSOU, operadora do sistema de transporte de gás da Ucrânia, anunciou que um dos ramos dos gasodutos que levam gás russo à Europa havia sido fechado, acusando as forças de ocupação de desviar o produto. Pelo ramo Sokhranovka passa cerca de 8% do gás importado pelos europeus. Os russos negaram qualquer interferência no fluxo do gasoduto. Em maio, porém, Putin declarou que pretende passar a cobrar mais caro pelo gás enviado aos europeus.
Para o economista italiano Giacomo Luciani, professor do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, em Genebra, a cessação completa da importação de gás russo pela Alemanha é extremamente improvável. Se o país do chanceler Olaf Scholz depende da energia importada, o de Putin também não pode prescindir das receitas de exportação, sobretudo em momento de esforço de guerra.
Alguma redução no acesso ao gás russo, no entanto, é esperada. O governo alemão consultou suas principais empresas industriais sobre as consequências de haver cortes e racionamentos. Ouviu como resposta que haveria cortes de produção. A Basf, um dos principais conglomerados químicos do mundo, alertou para consequências sistêmicas sobre a economia alemã como um todo.
“Talvez estejam exagerando em alguns pontos, porque é interesse deles. Mas de fato não temos certeza do que pode acontecer”, diz Thompson. “A indústria alemã se acostumou com o gás barato, que se tornou parte da sua competitividade. Mudar para a importação marítima de gás significa transformar a competitividade da Alemanha, um movimento gigantesco para a maior economia da UE.”
Para Luciani, a economia alemã tem capacidade de absorver as eventuais perdas, inclusive a paralisação de setores intensivos em energia. “As circunstâncias são excepcionais. Podemos tolerar a redução temporária da produção industrial. Será preciso compensar os trabalhadores cujas horas serão reduzidas, mas ninguém vai passar fome por isso”, pondera. “Vivemos em sociedades opulentas e há circunstâncias em que é preciso abrir mão de certos consumos. As pesquisas de opinião sugerem que a população está ciente disso, diante da agressão russa.”
Em março, menos de duas semanas após a invasão da Ucrânia, a Comissão Europeia lançou um primeiro documento, o “REPowerEU”, esboçando o projeto de substituição da energia russa “muito antes de 2030”. Naquele momento, a estimativa era de que já neste ano seria possível renunciar a dois terços do volume de gás recebido do país de Putin. Para chegar a esse número, seria preciso aumentar a importação de outras fontes em 63,5 bilhões de metros cúbicos e reduzir o consumo em 38 bilhões. Outras medidas incluem expandir a produção de biometano, incentivar a instalação de painéis solares em telhados e facilitar o recurso das indústrias à energia eólica e solar.
Dois meses mais tarde, em 18 de maio, o custo desse ambicioso projeto foi revelado: até € 300 bilhões, para chegar a 2027 sem depender do gás vindo do Leste, que, segundo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, custa aos países da UE € 100 bilhões por ano. Descontando investimentos já planejados, o acréscimo do plano é de € 210 bilhões, incluindo € 12 bilhões para infraestrutura de importação de óleo e gás. O restante é destinado majoritariamente para a aceleração de metas nas energias sustentáveis. A UE pretende também investir no emprego do hidrogênio. No mesmo dia, a Comissão Europeia anunciou programas de curto prazo para reduzir o consumo em 5% no continente.
Mas os resultados vão demorar a aparecer. A própria UE estima que só em 2025 haverá infraestrutura logística para receber combustível suficiente de outras fontes. Os principais candidatos a substitutos se mostraram céticos quanto à capacidade de atender à nova demanda. A Noruega, maior produtora europeia, informou ainda em março que já exporta o máximo possível para o resto do continente. A aproximação recente dos EUA com a Venezuela também não deve trazer frutos rapidamente, segundo Luciani, em razão do descalabro da infraestrutura no país sul-americano.
Países próximos, como a Líbia, a Argélia e o Catar, têm sua produção comprometida com outros compradores, sobretudo na Ásia. O vice-chanceler alemão, Robert Habeck, também ministro da Economia e da Transição Energética, esteve no Catar e ouviu que o emirado poderia enviar até 15% de sua produção para os europeus, mas só daqui a três anos, apesar da promessa de investimentos capazes de dobrar a capacidade total de produção. A Argélia, terceiro maior exportador de gás para a Europa, negociou em abril um aumento de remessas para a Itália e em maio se dispôs a fazer o mesmo pela Alemanha. Mas o acréscimo corresponde a menos de 5% do que o continente recebe da Rússia.
Luciani traça a genealogia da dependência europeia do gás russo, cujo momento decisivo foi a decisão de abrir o mercado de energia do continente à competição, em meados da década de 1990. A partir daquele momento, segundo o economista, os países abandonaram a política de segurança estratégica no setor e deixaram de diversificar seus fornecedores, porque só o gás mais barato conseguia mercado.
“A Gazprom foi muito agressiva para conquistar o mercado europeu, a ponto de sofrer um processo por comportamento monopolístico”, recorda. Esse caso foi encerrado em 2018, sem multas, graças a um acordo entre a empresa russa e a Comissão Europeia, em que a estatal se comprometia a obedecer a uma série de diretrizes de competição. “Mesmo assim, na última década, a Gazprom ofereceu o gás a preços extremamente competitivos, para derrubar a potencial concorrência do gás natural líquido americano.”
Para o resto do ano e provavelmente também o próximo, Luciani espera que a turbulência do mercado de energia prossiga e tenha efeitos mais amplos. Uma recessão, afirma, é certa na Europa e nos EUA. “Todos estão muito preocupados com essa recessão, que não será tão profunda quanto a da covid, mas é inevitável quando as estruturas da oferta de energia são redesenhadas. Isto implica investir mais, para desenvolver novas fontes, enquanto as fontes habituais já não estão disponíveis como antes. Se não queremos importar da Rússia, vamos atravessar um ajuste das estruturas produtivas, o que é uma forma de recessão”, afirma.
A perspectiva de mais um período recessivo expressa a profunda conexão entre a guerra, a crise energética e o estilo de vida, conforme o alerta de Thompson. O vínculo foi posto em palavras pelo primeiro-ministro da Itália, Mario Draghi, em abril. Em uma coletiva de imprensa, perguntou retoricamente se a população prefere manter o ar-condicionado ligado sem limitações ou a paz na Europa. Draghi falava no contexto das sanções à Rússia que a UE discutia naquele momento, cuja consequência seria o encarecimento do gás e da eletricidade.
“Draghi está certo. Nós desperdiçamos muita energia. É possível cortar o consumo em até 15% na Europa. O efeito sobre o preço da energia seria imediato”, afirma Luciani. “Basta educar os consumidores. É um desconforto, mas não uma tragédia. E a indústria também tem espaço para reduzir o consumo. Já fizeram antes e podem fazer mais. Tudo que é preciso é um sinal-preço claro e forte.”
Ainda assim, a pergunta de Draghi, que ecoa a tradicional dicotomia entre produzir canhões ou manteiga (isto é, beneficiar a população civil ou fortalecer a capacidade militar), expressa o quanto uma crise energética pode afetar o equilíbrio social e político das sociedades contemporâneas. Para Thompson, o que se passa na Europa reflete, em boa medida, as tendências do mercado de energia que fomentam a desordem do mundo atual.
“Por ora, os italianos estão respondendo que preferem a paz. Mas uma coisa é pedir às pessoas que reduzam o ar-condicionado. Outra é exigir que renunciem a dirigir”, alerta. “Há espaço para a política de reduzir o consumo, pelo menos em condição de guerra, mas ninguém sabe qual é o limite. Se as contas de luz estão subindo e a energia se tornar um pesadelo, quando vão começar a aparecer as tensões políticas?”
Além do impacto nas contas de luz e transporte, um choque energético pode afetar o preço dos alimentos e outros produtos básicos. “Não podemos esquecer que a Primavera Árabe de 2011 tem essa origem: o petróleo estava caro e os alimentos ficaram proibitivos. Hoje, fora da Europa, já estão ocorrendo sublevações. Veja Tunísia, Peru e, em certa medida, Sri Lanka. Há enorme potencial para instabilidade política”, diz Thompson.
No coração da Europa, o risco político da energia cara ficou dolorosamente claro com o movimento dos “coletes amarelos” na França, em 2018. O movimento foi uma reação ao projeto do presidente Emmanuel Macron de instaurar uma taxa ecológica sobre o óleo diesel, com o pretexto de descarbonizar a economia francesa. Os protestos de motoristas tomaram conta das principais cidades da França e enfraqueceram o governo de Macron.
“Esse episódio deixou os políticos de olhos bem abertos para a questão da energia e as dificuldades da transição energética”, comenta Thompson. “Qualquer coisa que se parecesse com um custo maior para as pessoas comuns teria de ser evitado. Surgiu um grande ceticismo sobre a viabilidade política da sustentabilidade. Em parte, isso explica a estratégia de apresentar a transição energética como um projeto de crescimento, que vai criar empregos, dar mais segurança energética e fortalecer a indústria.”
A perspectiva de uma grande crise energética logo evocou lembranças de um trauma semelhante: os dois choques do petróleo, em 1973 e 1979. Foram momentos decisivos na história da economia e da geopolítica, mas também das sociedades. Quando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) decidiu cortar a oferta do combustível, em 1973, os preços quadruplicaram. O Ocidente viveu um período prolongado de estagnação produtiva e inflação alta. Entre as consequências estão a liberalização financeira, a derrocada do Estado-providência e uma corrida pela eficiência energética.
“A situação atual pode ser até mais radical que os anos 70”, diz Thompson, argumentando que o alto consumo per capita de energia era um fenômeno apenas ocidental há meio século, mas hoje está espalhado pela Ásia e muitos países em desenvolvimento. “Hoje, a Ásia consome tanta energia per capita quanto a Europa, senão mais. Temos também o imperativo de buscar outras fontes de energia, algo que não existia naquele tempo, quando a questão era encontrar eficiência com as fontes existentes.”
Na leitura de Thompson, o Ocidente viveu um período atípico entre os anos 1980 e meados da década de 2000, com a energia a preços baixos e suas implicações geopolíticas quase esquecidas. Até então, assegurar o fornecimento de combustíveis era a principal preocupação dos governos europeus, que tinham perdido suas colônias produtoras do Oriente Médio, e também dos americanos, que tinham perdido a condição de exportador líquido de petróleo e passaram a importar. Essa situação atípica levou ao esquecimento das implicações geopolíticas da energia.
Em resumo, o que volta a ser evidente é que a relação global entre política e energia é uma marca da modernidade. Desde que as máquinas a vapor começaram a operar na Inglaterra do século XVIII, a vida moderna e a organização das sociedades foram profundamente transformadas, a tal ponto que, junto com o avanço da tecnologia, a energia, seu uso e o acesso a ela se tornaram um elemento central da compreensão do mundo e da política.
“A energia exerce influências às vezes subterrâneas sobre a sociedade moderna, porque ela impacta tudo que fazemos e qualquer coisa que queiramos fazer”, afirma o antropólogo Dominic Boyer, professor da Universidade Rice, no Texas, e autor de “Energopolitics: Wind and Power in the Anthropocene” (Energopolítica: vento e energia no antropoceno, 2019). “O petróleo penetrou em todas as dimensões da vida cotidiana. Está nas roupas que vestimos, nos alimentos que comemos, no combustível dos nossos veículos. É o que permite que aviões voem. São tantas coisas que é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim da cultura do petróleo.”
No livro “Carbon Democracy: political power in the age of oil” (A democracia do carbono: poder político na era do petróleo, de 2011), o cientista político Timothy Mitchell associa o desenvolvimento dos movimentos sindicais nos séculos XIX e a social-democracia do pós-guerra à economia sustentada pelo carvão, mercadoria fortemente intensiva em trabalho. Os sindicatos mais fortes do período eram justamente aqueles ligados à produção e distribuição da energia: os próprios carvoeiros, retratados por Émile Zola em “Germinal” (1894), e os ferroviários, já que o carvão era distribuído por locomotivas.
A partir da década de 1960, o petróleo suplantou o carvão como principal fonte de energia. Como é uma mercadoria mais fácil de transportar por navio e mais intensiva em capital, atingiu em cheio o mundo da social-democracia, argumenta Mitchell. Os sindicatos de mineradores começaram a perder importância, culminando nos grandes confrontos trabalhadores e a política de Margaret Thatcher em 1984. Thatcher venceu, abrindo as portas para sua política de liberalização.
Boyer acrescenta que a economia do petróleo realizou uma transformação do mundo e das sociedades semelhante à que tinha ocorrido com a chegada do carvão e do vapor. No século XVIII, o símbolo da transformação foi a máquina de James Watt e Matthew Boulton – este último chegou a afirmar que o produto que tinha para vender era o que todos os homens querem: “power” (que significa tanto poder quanto energia). No século XX, essa posição simbólica cabe ao motor à explosão.
“O que realmente leva o petróleo a superar o carvão é seu uso em carros e caminhões, sobretudo os leves, que funcionam melhor com derivados do petróleo”, diz Boyer, citando o empresário Henry Ford e a popularização do automóvel familiar como ponto nodal. “Os efeitos-cascata são enormes, porque o carro pessoal exige a construção de boas estradas, criando novas conexões entre lugares e novos tipos de assentamento. O resultado é a expansão dos subúrbios, fenômeno fortemente associado ao pós-guerra.”
O antropólogo cita também a ascensão dos plásticos, derivados do petróleo e desenvolvidos na Segunda Guerra Mundial. Disseminados por todo o planeta nas décadas seguintes, os plásticos se tornaram a matéria-prima de embalagens, brinquedos, utensílios domésticos, roupas. “Este é um dos elementos mais visíveis da cultura do petróleo, não é só a energia. E é justamente essa cultura que está sendo posta em questão”, afirma.
Para Boyer, a guerra no Leste Europeu tem o potencial de precipitar não só a adoção de energias sustentáveis, mas também a passagem da cultura do petróleo (ou “petrocultura”) para uma “eletrocultura”, em que as novas fontes energéticas permitirão gerar eletricidade de maneira mais descentralizada, recorrendo a infraestruturas menos grandiosas do que as do mundo do petróleo. Para Boyer, a transição implicaria uma nova mudança na relação com o espaço e transformaria as prioridades nas relações internacionais.
Thompson e Luciani também acreditam que a melhora de desempenho das ações petrolíferas e o aumento de investimentos em combustíveis fósseis devem ser temporários. Embora, no primeiro momento, recursos possam ser desviados das inversões em renováveis, o efeito mais duradouro da atual crise energética será a aceleração da busca por outras fontes. Luciani aponta para a decisão de Emmanuel Macron, na França, de retomar os investimentos em energia nuclear, prevendo construir de 6 a 14 usinas até 2035.
“A transição energética sempre se desenrolou diante desse pano de fundo: a relação dúbia com os combustíveis fósseis e as variações na oferta do petróleo. Mas agora essas questões deixaram de ser um problema de fundo e estão na superfície da política e da geopolítica”, diz Thompson. “A questão, hoje, é definir os cronogramas, entender como é possível avançar e como administrar os problemas dos combustíveis fósseis enquanto é feita a transição.”
O diagnóstico compartilhado pelos analistas, porém, é que não há caminho viável nem para a relação com a Rússia, nem para a transição energética sem a redução voluntária e controlada do consumo de energia nos países desenvolvidos. “O esperado pico de demanda do petróleo não aconteceu. Ao contrário, ela continua subindo mais rápido que a oferta. Assim, é difícil pensar concretamente em desinvestimento”, adverte Luciani. “Se não houver controle sobre o consumo e a demanda continuar a subir, não adianta impor limites à produção de combustíveis fósseis, porque isso só vai aumentar os preços, beneficiando as petrolíferas!”
Outro problema é que nem sempre se leva em conta que também haverá uma geopolítica das novas fontes de energia, observa Thompson. “A energia verde não vai livrar a humanidade do extrativismo. E o que queremos extrair da terra e do mar não é distribuído igualmente. Foi assim com o carvão e com o petróleo: a era dos combustíveis fósseis trouxe consigo uma geopolítica centrada nos recursos naturais e sua distribuição geográfica.”
A transição energética, por sua vez, requer metais e os minerais conhecidos como “terras raras”. “Até agora, a China está em posição forte no acesso a esses minerais. Tem uma oferta doméstica abundante e agiu rápido para controlar cadeias de suprimento em outros países”, aponta. Em 2020, Donald Trump declarou emergência nacional pela dependência da China no fornecimento de 35 “minerais críticos”, como lantânio, cério e neodímio, usados na fabricação de baterias e painéis solares, além de processos químicos necessários à indústria.
Metais usados nas baterias de carros elétricos, como cobalto, lítio e níquel, também atravessam uma escassez de oferta e rupturas de fornecimento. A urgência de obter essas commodities também se reflete nas cotações. Desde o início de 2021, houve alta de 100% do níquel e 150% do cobalto. Já o valor do lítio quase decuplicou em um ano e meio. A Bloomberg calcula que os preços dos metais subiram 280%, em média, nos últimos 18 meses.
“Hoje, a maior parte dos países está envolvida na transição energética, algo que, por si só, já embaralha tudo. Até termos uma noção mais clara de para onde vai a transição, será difícil pensar em como o mundo pode ser um lugar ordeiro novamente”, explica Thompson. “A transição pode levar muito tempo para se consolidar, o que significa que a mudança climática vai avançar e se intensificar. E isso é fonte de bastante desordem.”
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