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Como o juro alto pós-pandemia mudou o jogo de forças na economia brasileira
Empresas citadas na reportagem:
Os juros e a inflação em queda, e a expectativa de que esse cenário se estenda em 2024, estão animando empresas no Brasil.
A economia brasileira deve emergir de volta à normalidade, porém, com um jogo de forças corporativo bastante modificado em relação ao período pré-Covid.
Isso porque grandes players dos setores bancário, varejo, saúde e logística ainda devem levar algum tempo para curar as feridas deixadas pela pandemia e pelo maior sobe e desce de juros no país em ao menos duas décadas.
Isso, claro, para não citar um dos indicadores mais dolorosos desse rastro de destruição: os negócios que foram parar na Justiça.
Segundo a Serasa Experian nos primeiros nove meses de 2023, 966 empresas pediram recuperação judicial no país, entre elas marcas conhecidas como Americanas, M.Officer, 123milhas e Grupo Petrópolis.
Tempestade perfeita
O vai e vem da politica monetária no espaço de 37 meses até agosto 2022, primeiro para prevenir uma recessão e depois para conter a escalada inflacionária, expôs fragilidades de grandes corporações.
Em pouco tempo, várias delas tiveram que sair de uma agenda de crescimento ambicioso para outra de contingência e recuperação, que ainda está em marcha.
Natura (NTCO3) e GPA (PCAR3), por exemplo, antes engajadas num ciclo de aquisições, agora estão se desfazendo de ativos considerados não essenciais para reduzir dívidas e voltarem a ganhar competitividade em seus setores.
Embora o juro e a pandemia sozinhos não expliquem totalmente esse movimento, foram catalisadores de escolhas estratégicas que depois se mostraram equivocadas.
Várias dessas histórias tiveram em comum planos estratégicos baseados na premissa de que o Brasil finalmente entrara num ciclo de crescimento econômico sustentado, com juros e inflação baixos.
Bastaram não mais do que 18 meses para juros e inflação voltarem para a casa dos dois dígitos.
Isso pressionou as empresas simultaneamente nas duas pontas: as dívidas ficaram mais caras e as receitas caíram devido ao peso da inflação sobre o poder de consumo das famílias.
“Foi uma tempestade perfeita”, disse em 2022 o então presidente-executivo do Bradesco, Octávio de Lazari Junior, comentando os efeitos desse cenário para a queda nos lucros do banco.
Bancos
O setor bancário, aliás, foi um dos que mais mostraram os resultados distintos das estratégias implementadas pelos players no período.
Com um histórico de forte atuação no crédito ao consumo, Bradesco (BBDC4) e Santander Brasil (SANB11) viram no juro historicamente baixo de 2020 uma oportunidade de acelerar suas carteiras de empréstimos.
Diante da repentina reversão do quadro, ambos colheram aumentos sustentados dos níveis de inadimplência, além das prejuízos na tesouraria, que só foram estancados recentemente.
Como consequência, seus níveis de rentabilidade sobre o patrimônio (ROE), uma medida de como bancos remuneram o capital de seus acionistas, caiu para cerca de metade do nível histórico, mas foi mantido pelos rivais Itaú Unibanco (ITUB4) e Banco do Brasil (BBAS3).
Para alguns analistas, essa diferença pode levar vários anos para ser revertida.
“Embora alguns dos infortúnios do Bradesco sejam cíclicos, vemos algumas mudanças mais permanentes para pior e acreditamos que a recuperação do ROE não será apenas lenta, mas provavelmente levará a uma lacuna estrutural maior no futuro”, escreveu a equipe do BTG Pactual liderada por Eduardo Rosman.
Esse quadro levou os bancos a decisões profundas.
O Bradesco anunciou uma surpreendente troca no comando, com a substituição de Octávio de Lazari Junior por Marcelo Noronha.
O Santander, liderado por Mario Leão, avisou no fim de outubro que o banco estava abandonando o crédito ao consumo como seu principal motor de crescimento.
“A gente tem que fazer de forma diferente, porque precisa”, disse Leão na divulgação de resultados do terceiro trimestre.
Enquanto isso, o Nubank, que fez sua estreia em bolsa no fim de 2021, seguiu galgando posições no ranking.
Desde então, passou de prejuízo para ser mais lucrativo do que Santander e Bradesco e tornou-se a quarta maior instituição financeira do país em setembro, com 82 milhões de clientes, segundo dados do Banco Central.
Comércio eletrônico
O comércio eletrônico foi também um dos segmento em que o cenário competitivo teve mudanças mais dramáticas.
De carona na explosão do e-commerce durante a pandemia, gigantes do setor embarcaram numa onda de aquisições de rivais menores, tentando se posicionar como grandes portais de compras de praticamente qualquer produto ou serviço.
No espaço de 18 meses a partir do começo de 2020, só o Magazine Luiza (MGLU3) anunciou 21 aquisições de startups.
Enquanto isso, pelo menos 15 empresas ligadas a comércio eletrônico fizeram suas estreias na B3, com ofertas iniciais de ações (IPOs).
Pegas com níveis elevados de estoques e alto endividamento quando a economia começou a piorar, a maioria dessas empresas têm perdido competitividade trimestre a trimestre, espaço ocupado pelo Mercado Livre (MELI34).
Com uma estrutura operacional mais leve, investimentos maciços em logística e nenhum dispêndio com aquisições relevantes, o Mercado Livre ampliou suas vantagens em relação aos concorrentes.
“Preferimos investir no nosso negócio, sem distrações”, disse à Inteligência Financeira o presidente do Mercado Livre no Brasil, Fernando Yunes.
Como consequência, a participação de mercado da companhia praticamente dobrou desde 2021, enquanto a fatia de Americanas, também envolvida num escândalo de fraude contábil, caiu à metade.
Juro alto pode ser bom?
Segundo especialistas em gestão de recursos, apesar dos inevitáveis estragos deixados pelo caminho, juro mais alto pode ser um boa notícia para a economia como um todo.
É como se o custo de capital mais alto agisse para decantar a economia, tirando do caminho negócios ineficientes e estimulando os inovadores e que mais contribuam para a melhora do conjunto.
“Taxas de juro mais altas têm uma má reputação, mas a longo prazo podem (…) ajudar os investidores a alocar capital de forma mais eficiente”, escreveu Lisa Shalett, diretora de Investimentos do Morgan Stanley Wealth Management.
Nesse aspecto, um dado recente da Mckinsey pode indicar a magnitude que os negócios inovadores estão tendo no Brasil e na América Latina.
Segundo o levantamento, 26% das receitas de empresas geradas na região em 2023 vieram de empresas criadas nos últimos cinco anos. No ano passado, esse percentual tinha sido de 16%.
Startups
Esse dado remete inevitavelmente às startups, segmento que sintetizou o forte aumento dos investimentos em inovação.
Em uma década, na esteira de uma oferta generosa de capital global, além de inovação tecnológica e regulatória, investimentos em startups no país cresceram mais de 60 vezes, segundo dados da plataforma de análise Distrito, despejando R$ 52 bilhões no país só em 2021.
Uma massa significativa de investimentos fluiu para negócios vencedores. Só o grupo de comércio eletrônico Mercado Livre investiu cerca de R$ 50 bilhões no país desde 2020.
A era de dinheiro farto e barato, entretanto, também criou exageros.
Negócios que, em condições normais dificilmente passariam por uma análise de viabilidade criteriosa, receberam centenas de milhões de reais, na primeira grande onda brasileira de captação de investimento de capital de risco, o chamado venture capital.
Com bancos centrais passando a subir juros para conter o maior surto de inflação em quatro décadas, os investidores fecharam a torneira e passaram a cobrar das startups viabilidade econômica em vez de crescimento.
Furo da bolha
Assim, o volume de investimentos encolheu para R$ 4 bilhões nos primeiros oito meses deste ano, segundo a Abvcap, a Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital.
Com os empreendedores ajustando o foco para preservação do caixa, o resultado foi invariavelmente cortar na carne, reduzindo operações em geral deficitárias ou sem condições de se manterem competitivas.
Em alguns casos, os sócios desistiram do negócio.
O Favo, supermercado online cuja proposta era entregar as compras de consumidores na casa de vizinhos cadastrados na plataforma, encerrou suas operações no Brasil em junho de 2022, menos de um ano após ter recebido um aporte de R$ 141 milhões do fundo de capital de risco Tiger Global.
A unidade no país da fintech alemã N26 abandonou o Brasil no mês passado.
Segundo Pedro Melzer, sócio-fundador da Igah Ventures, porém, o elevado nível de ineficiência nas economias de Brasil e América Latina ainda coloca a região como um destino atrativo para startups nos próximos anos.
O problema, segundo Rodrigo Borges, sócio-fundador da Domo Venture Capital, é que as startups são parte de uma cadeia mais ampla de investimentos, incluindo os de private equity, que investem em empresas maiores, em preparação para levá-las ao mercado em ofertas de ações (IPOs).
Com o solavanco dos últimos anos, essa engrenagem ficou prejudicada e deve levar algum tempo para se recuperar, acrescentou Borges, em evento do BTG Pactual.
O resultado foi a ocupação de fatias de mercado maiores por empresas que já lideravam seus segmentos.
Foi o caso do próprio iFood, após a saída das rivais Glovo e Uber Eats.
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