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Aumento de preços e achatamento de salários geram instabilidade social pelo mundo todo
Em maio deste ano, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi surpreendido no programa de televisão matinal “Good Morning Britain”, para o qual concedia entrevista, pelo depoimento de sua conterrânea Elsie. A viúva de 77 anos contou à apresentadora Susanna Reid que a disparada do custo de vida no país a obrigava a fazer uma única refeição por dia e levantar-se cedo para tomar um ônibus. Qualquer um, não importava a rota. A ideia era aproveitar o passe gratuito de idosa para manter-se em local aquecido durante os dias frios sem que isso onerasse sua conta de gás.
Se as projeções de mercado estiverem corretas, em outubro próximo, quando estão previstos novos reajustes, as faturas terão subido 65% em 12 meses. Anualizada, a inflação no Reino Unido bateu os 9,2% em junho – o índice mais elevado em quatro décadas -, quando a meta para o ano era de 2%. A energia foi seu principal vilão.
Menos de dois meses após o drama de Elsie, o estudante de enfermagem Jake Smart, da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, foi parar nas primeiras páginas dos jornais. Ele e colegas têm dormido no carro, no campus, para evitar os deslocamentos para casa, por não terem meios de reabastecer.
Preços de combustíveis e tudo mais em alta, discussão sobre pacotes de auxílio, greves por causa da perda de poder aquisitivo – a crise do custo de vida, que o brasileiro enfrenta no dia a dia há meses, mas ganhou importância adicional em Brasília por causa do calendário eleitoral, é um problema em todo o planeta.
No Reino Unido, o peso no bolso do consumidor e a crise econômica que se anuncia a partir dele reforçaram o desejo do partido conservador de finalmente livrar-se de Johnson. A economia deve determinar a escolha do seu sucessor (a ser oficializado em setembro) e o cacife político que o partido terá para enfrentar as urnas em maio de 2024.
Os integrantes da legenda sabem que as turbulências mal começaram. Na atual campanha para a substituição de Johnson, os pré-candidatos se atrapalham para explicar como pretendem cumprir a promessa de diminuir impostos sem gerar uma sinuca fiscal.
A alta dos preços já é o principal temor da população. Mais de 90% se queixam do custo de vida. Quase metade dos britânicos admite ter cortado a lista de compras de alimentos, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas (ONS, na sigla em inglês), com base em entrevistas realizadas entre 22 de junho e 3 de julho. Uma em cada seis pessoas se reconhece em “sérias dificuldades financeiras” no país, mais do que no auge da pandemia do coronavírus. Os dados são da instituição de caridade ABDRN Financial Fairness.
Recentemente, os tabloides locais noticiavam que a Sociedade Real para a Prevenção de Crueldade contra os Animais (RSPCA, na sigla em inglês) alertava para um risco inesperado da alta do custo de vida. Pessoas que criam cobras e lagartos estariam abandonando seus pets por falta de recursos para mantê-los. Muitos precisam de eletricidade para dar aos animais as condições necessárias de desenvolvimento. E as contas de luz subiram pouco mais de 95% até abril deste ano em comparação com 2021. Não por acaso, as chamadas para resgate desses “répteis domésticos” cresceram nos últimos meses.
O medo do avanço da inflação é tal que o Reino Unido inventou a figura do “czar do custo de vida”. Cofundador da Just Eat, o empresário David Buttress foi incumbido de encontrar formas de mitigar a alta dos preços na economia. Não se trata de cargo formal. Ele não tem status de ministro, orçamento ou sequer poder de mudar leis. Mas em seis meses tem que apresentar um diagnóstico da situação e sugerir saídas criativas. Em entrevista recente, disse que tentará engajar o setor privado nessa batalha.
Consultores como Buttress não são uma novidade no país. Durante a pandemia, a estrategista financeira Kate Bingham foi alçada a “czarina das vacinas”. Montou a bem-sucedida estratégia de aquisição de imunizantes do Reino Unido. Historicamente, contudo, caberia ao Tesouro e ao Banco da Inglaterra, o BC britânico, se encarregar de conter a tendência de alta de preços na economia a partir do manejo da política monetária.
O Reino Unido ainda enfrenta um agravante inflacionário. Três anos depois da pandemia, os efeitos do Brexit começam a ser calculados na ponta do lápis. Fora do mercado comum europeu, um dos mais dinâmicos do mundo, e com a escassez de mão de obra, esta ilha sofre pressões adicionais sobre os preços. Isso explica os índices acima da média da zona do euro e perspectivas de crescimento econômico aquém das dos outros países do G7. A libra esterlina continua em queda, e a carestia, que tem obrigado supermercados a optar por marcas mais econômicas, afeta até os itens não propriamente de primeira necessidade.
“Desde março de 2021 parei de enviar nossos vinhos para a Inglaterra. Ficou muito mais caro para os meus clientes, dadas as taxas e custo adicional de transporte. Sem falar na demora e na burocracia”, disse Alain Lefèvre, produtor de tintos na região francesa da Borgonha. Calcula-se que o Brexit tenha acrescido um custo adicional equivalente a pelo menos R$ 10, em média, por garrafa de vinho vendida ao mercado britânico.
Como em outras partes do mundo, as demandas salariais tornaram-se também fonte de pressão inflacionária na economia britânica. Em junho, uma greve do sistema ferroviário, a maior em mais de 30 anos, marcou uma semana de caos no país. Os funcionários queriam reposição de salários, que vêm perdendo não é de hoje para a inflação, e melhores condições de trabalho. A paralisação afetou a rotina de centenas de milhares de trabalhadores e causou prejuízos econômicos na casa das centenas de milhões de libras num país que já tem os transportes públicos entre os mais caros do mundo e onde boa parte da população trabalha por conta própria (só recebe quando consegue chegar no trabalho).
A pressão se replica por outras categorias. Motoristas bloquearam estradas na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte em protesto contra os preços da gasolina na bomba no início do mês. Sem uma solução de curto prazo para a guerra na Ucrânia, ainda não há perspectiva de mudança nesse cenário.
Diante da pressão popular, autoridades britânicas anunciaram a abertura de investigação para avaliar a discrepância entre os preços cobrados do consumidor, que consideram exagerados, e a realidade das cotações internacionais do barril do petróleo.
Em outra ponta, o governo ampliou o auxílio concedido à população. Na última semana, anunciou um desconto geral na conta de energia. A medida enfrenta críticas por beneficiar ricos e pobres, sem diferenciá-los.
O fim das restrições pandêmicas mais duras trouxe de volta às ruas insatisfeitos do mundo todo, e não apenas na Inglaterra. E a inflação é o que une esses movimentos. Dados da consultoria Deloitte indicam que 75% da população global teme a alta do custo de vida. Os preços altos e o achatamento de salários devem alimentar novas ondas de instabilidade social. O tema foi incluído na agenda dos organismos internacionais entre os grandes fatores de risco a serem enfrentados pelos países.
No Zimbábue, uma greve de médicos e enfermeiros por melhores salários parou a rede pública hospitalar por quase uma semana em junho. No Chile, no final de março, a população foi às ruas pedir mais subsídios para alimentos. No Iraque, a alta dos preços do óleo de cozinha e da farinha desencadeou protestos pelo sul do país. Na Tunísia, foram o leite e os ovos os vilões da inflação que levaram o povo às ruas. No Irã, os protestos tiveram início em maio, quando, ao suspender subsídios, o governo causou aumento de até 300% nos preços de vários tipos de produtos à base de farinha. Protestos violentos foram registrados no Equador, Peru e na Argentina, assim como manifestações pelo Paquistão e Sri Lanka.
Em entrevista recente, o ex-primeiro-ministro britânico trabalhista Gordon Brown, que conduziu o país durante a crise financeira internacional de 2008, afirmou que “a inflação era um problema global que exigia uma solução global”.
De acordo com o relatório “Chief Economists Outlook”, do Fórum Econômico Mundial, em vez de entrar numa fase de recuperação pós-pandêmica, as economias amargam os efeitos da guerra na Ucrânia e novos surtos de covid-19, que tem afetado grandes centros industriais. “Para além do impacto imediato humanitário do conflito e das consequências sanitárias da pandemia, isso significa revisão das projeções de crescimento e pressões inflacionários exacerbadas causadas pelas perturbações no mercado de commodities e das cadeias de suprimento de alimentos”, diz o documento.
O problema é que havia entre os economistas ouvidos pelo relatório no início do ano uma espécie de consenso de que as economias maiores voltariam a crescer nos níveis pré-pandêmicos. Eles também apostavam numa alta de preços temporária no cenário global, no aumento dos salários no médio prazo e na reversão da chamada fragmentação do comércio exterior no médio e longo prazos. Seis meses depois, a maioria dos entrevistados espera um “crescimento mais fraco” para Estados Unidos, China, América Latina, sul da Ásia, África Subsaariana, Oriente Médio e norte da África, expansão “muito fraca” para a Europa. Dois terços deles esperam queda real na média dos salários no curto prazo.
Diante disso, a insegurança alimentar volta ao topo da lista de preocupações e ameaça à economia global. Em 2020, segundo o relatório, 36 países importaram mais de 50% do trigo que consomem da Rússia ou da Ucrânia. Em março deste ano, o índice de preço de alimentos do Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas teve a sua maior alta desde a sua introdução em 1990.
“Para os próximos três anos, os economistas esperam mais insegurança alimentar na América Latina e no sul da Ásia e um ambiente altamente inseguro na África subsaariana, no Oriente Médio e no norte da África”, afirma o documento. Relatório da ONU citado pelo estudo do fórum afirma que a combinação da alta dos preços de alimentos e energia e seu impacto sobre orçamentos públicos já apertados em muitos países “pode levar a desabastecimento e desencadear conflitos armados secundários”.
Em junho, a seguradora Allianz pedia que as empresas se preparassem para enfrentar as tensões sociais provocadas pela escalada de preços. “O potencial desestabilizador de cadeias fornecedoras perturbadas e do aumento do custo de vida em função da inflação devem fomentar a instabilidade social em muitos países globalmente”, disse na mesma nota em que lembrava os prejuízos bilionários causados por protestos anteriores na França, China, Estados Unidos e África do Sul e que destacava “o poder das mídias sociais, em combinação com a polarização política”, como combustível para os protestos. A Verisk Maplecroft, empresa de avaliação de risco, prevê que 75 países devem registrar um aumento no número de protestos até o final do ano.
Em entrevista ao Valor, um economista do Fundo Monetário Internacional (FMI) afirmou que o problema tende a se agravar com a reação dos diferentes países às pressões inflacionárias. Alguns começam a proibir a exportação de certos gêneros alimentícios. É o caso da Argentina e da Índia.
O movimento não chega a ser novidade. Muitas nações suspenderam a venda a terceiros mercados de medicamentos e equipamentos de saúde no auge da pandemia do coronavírus para garantir o abastecimento dos seus respectivos mercados domésticos – a Índia sobretudo. Segundo o economista, se iniciativas dessa natureza virarem tendência, podem acabar por agravar as pressões inflacionárias globais e provocar desabastecimento.
A verdade é que os índices de preços tornaram-se prioridade da agenda política das nações. Governantes e postulantes a altos cargos sabem que, para agradar ao eleitorado, terão de enfrentar a alta do custo de vida. Isso tem impactos de curto e longo prazos. E a preocupação é que medidas adotadas com foco político possam ter efeitos duradouros com implicações domésticas e até externas.
No Brasil, a redução do ICMS sobre combustíveis e o pacote de auxílios podem gerar algum alívio temporário, mas acabar agravando o problema, ao estimular um aumento de consumo que pode contribuir para ainda mais inflação, diz a economista Tatiana Nogueira, da XP. O mercado, diz, tem se antecipado aos riscos de maiores gastos e até ruptura de regras fiscais à frente e já começa a elevar as expectativas de inflação para os anos de 2023 e 2024. “Aí reside o maior risco para os anos seguintes e não das medidas de desoneração, que jogam a inflação para baixo nesses próximos dois meses.”
A diretora do programa de estudos brasileiros da Universidade de Oxford, Andreza Aruska de Souza Santos, acrescenta: “A questão social é tão importante quanto a fiscal, mas esse programa não é um programa social, mas eleitoral, não tem um desenho de política pública comprometida com o orçamento nem com os recebedores, que logo se verão sem o benefício”.
O economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, diz que o foco na reeleição por trás do pacote brasileiro ainda tira o poder da política monetária de conter a inflação. “Os gastos com desoneração fiscal e concessão de benefícios como o Auxílio Brasil incluídos neste pacote deixam para o próximo presidente, seja ele quem for, uma bomba-relógio. E não trazem uma solução de médio e longo prazos para o problema”, diz. A inflação brasileira tem um componente que não se encontra em muitos países do mundo, acrescenta. Com uma economia ainda altamente indexada, na qual 27% do IPCA são preços administrados, é difícil calibrar os juros, e poder calibrar os juros locais vai ser especialmente necessário à medida que os países desenvolvidos também elevam suas taxas.
Por ora, além do início do ciclo de aperto monetário, os países têm apelado para medidas emergenciais como forma de conter a escalada dos preços. Estados Unidos e países da Europa têm concedido subsídios à população para tentar minimizar o impacto da alta dos combustíveis. Na Hungria, alguns postos de gasolina impuseram limites para a quantidade de combustível que pode ser adquirida pelos motoristas. O Egito, por sua vez, criou um perigoso teto para os preços do pão, que não é subsidiado. O México também fixou limites para preços de alimentos.
Na Turquia, onde a taxa de inflação oficial se aproxima de 80% ao ano, especialistas discutem a credibilidade dos indicadores, o mais alto desde a crise de 1998 que alçou Tayyip Erdogan ao poder. De acordo com o grupo Enag de economistas independentes, o percentual teria ficado em 175% em junho deste ano em comparação com mesmo período de 2021. No país, que já trocou três vezes o presidente do Banco Central, o governo vai na contramão do resto do mundo e, em vez de subir os juros básicos da economia, segue cortando a taxa.
Enquanto cada país busca a seu modo conter a escalada inflacionária, o mundo tenta entender o que está acontecendo. Para o economista do FMI, o mundo foi surpreendido por uma sucessão de choques inesperados: a pandemia e, em seguida, a guerra russa na Ucrânia. Mas elas se somam a um cenário que já vinha mudando desde a crise financeira internacional de 2008.
O planeta estaria passando por um período de transição, uma espécie de rearranjo da economia global que deve continuar criando pressões inflacionárias. As sanções impostas à Rússia, segundo ele, já não são temporárias. Na verdade, inauguraram uma nova era em que americanos e europeus falam em “friend-shore”, um conceito que, após o “offshore” e “onshore”, seria a modalidade de comércio entre países “amigos”, que garantiria certa estabilidade a despeito da alta de preços que venha a provocar. “Você deixa de importar da China, por exemplo, mas se dispõe a pagar o preço”, diz.
A transição energética também deverá impor custos às economias. Novas fontes de energia renováveis podem ser mais caras. Pelo menos enquanto não são popularizadas. “O imposto sobre carbono tem como resultado o aumento dos preços de combustíveis”, lembra o economista.
Talvez o cidadão comum ainda não tenha a dimensão do que está por vir. Mas certamente já entendeu que a vida mudou. Para o professor Pablo Contreras, da EAE Business School de Barcelona, especialista em consumo, a onda de inflação criou novas incertezas mundo afora. “Quando isso acontece, as pessoas tentam proteger o que têm, pois não sabem se terão lá na frente”, diz. O consumidor está mais preocupado com o futuro e, por esta razão, mais cauteloso ao fazer as suas compras.
Na Espanha, onde o índice de preços bateu os 10,2% anuais em junho, um quarto da população diz que não consegue cobrir as despesas do mês com a sua renda. Como no resto do mundo, segundo ele, têm buscado produtos mais básicos, menos sofisticados. “Não compram novidades. Esse é um mau momento para lançamentos. As pessoas estão comprando 30% menos carnes e peixes. Cresceram as vendas das chamadas marcas brancas, ou produtos sem marcas. Só na Espanha, o aumento foi de 43%”, diz Contreras.
As férias no hemisfério Norte, as primeiras sem restrições desde o início da pandemia, ainda estão de pé. Mas estão sendo encurtadas. Um fenômeno interessante, segundo o professor, é que, apesar disso, o orçamento de gastos para as férias cresceu. Este ano, está em € 610 por pessoa entre os espanhóis, contra € 566 do ano passado. Pouco mais de 89% das pessoas pretendem viajar neste ano, contra 69% em 2021.
“Mas a mensagem disso tudo não é que a vida melhorou. Existe uma sensação geral de que essas férias são a merecida recompensa pelo tempo perdido durante a pandemia. E mais: que devem ser bem aproveitadas pela certeza de que um novo período de crise está vindo pela frente. Sabem que tudo vai ser mais complicado nos próximos meses. As expectativas para o futuro pioraram e devem cair ainda mais após o período de férias, quando todos voltarem à realidade”, afirma Contreras.
Para o especialista, a inflação não é novidade para as pessoas, que tendem a adaptar-se. O que complica o cenário de expectativas é o novo patamar de preços. “Com inflação baixa, preço não é fator que se tenha de vigiar. Isso cria um impacto psicológico importante. As compras passam a ser mais tensas e desagradáveis porque é preciso estar vigilante o tempo todo”, diz.
Editado para corrigir o nome da economista Tatiana Nogueira, da XP
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