‘Once in a Generation’: desafios e oportunidades da geração viciada em dinheiro barato

Faço parte de uma geração viciada em dinheiro barato, o que permitiu que nos endividássemos sem ter de lidar com altas sucessivas de preços. Isso mudou

Eu pertenço à geração dos Millenials (pessoas nascidas entre 1981-1995). Além disso, nasci em Portugal e vivi a maior parte da minha vida adulta na Europa. Até recentemente, eu e minha geração não sabíamos o que era inflação de fato. Então, faço parte de uma geração viciada em dinheiro barato.

Não conhecíamos os aumentos expressivos das taxas de juros. Neste sentido, o agora famoso QT (quantitative tightening, termo usado para se referir a uma política monetária em que um banco central reduz a quantidade de dinheiro em circulação na economia) era uma realidade desconhecida.

A maior parte da minha vida profissional foi vivida ouvindo constantemente o termo oposto: o QE (quantitative easing). Até vivenciei algo nos primeiros anos da minha carreira que o mundo pensava ser impossível, algo que nunca havíamos aprendido na universidade: taxas de juros negativas. Sim, negativas. Grosso modo, seria como se você pagasse para países como Alemanha ou Suíça para que “guardassem” seu dinheiro.

Porém, o mundo acordou para uma nova e antiga realidade. De repente, voltamos ao passado e tudo o que se fala no mundo é apenas uma coisa: inflação.

Outros tempos: taxas de juros extremamente baixas

Qualquer pessoa que tenha trabalhado no mercado financeiro desde 1980, só vivenciou um clima em que os juros estavam caindo, ou eram extremamente baixos, ou ambos.

Sendo assim, no período de 2009 a 2021, a taxa de referência do Federal Reserve (Fed) foi zero ou ultrabaixa.

Neste momento, parece improvável que as taxas voltem, pelo menos no curto ou médio prazo, aos níveis da última década.

No entanto, para os investidores, isso tem se revelado uma oportunidade. Isto é, a oportunidade de contratar taxas de retorno que não eram vistas há muito tempo, equiparáveis aos níveis históricos de retorno do mercado de renda variável.

A inflação morreu?

No pós-pandemia, aquilo que tem sido a norma nas últimas décadas mudou. A inflação retornou aos países desenvolvidos e pegou governos, bancos centrais, investidores e indivíduos de surpresa.

Reportagens de capa da Bloomberg Businessweek e The Economist proclamando a morte da inflação. Fonte: Site Bloomberg Businessweek e The Economist, edições de 20 de abril de 2019 e 10 de outubro de 2019, respectivamente.
Reportagens de capa da Bloomberg Businessweek e The Economist proclamando a morte da inflação. Fonte: Site Bloomberg Businessweek e The Economist, edições de 20 de abril de 2019 e 10 de outubro de 2019, respectivamente

Apesar das políticas monetárias altamente expansivas, a inflação parecia, nos últimos anos, ser uma miragem. Muitos previram que era o fim da inflação. Que a inflação havia morrido.

A inflação nos Estados Unidos esteve, desde o início da década de 1990, sempre abaixo de 5%. Já na década que antecedeu a pandemia, essa inflação esteve quase sempre abaixo de 2,5%.

Na zona do euro, a inflação esteve abaixo de 4% desde o início dos anos 1090. Porém, na década pré-Covid esteve sempre abaixo de 2%, inclusive com períodos deflacionários.

Ainda assim, a situação no Japão era ainda mais extrema, com vários períodos deflacionários ao longo dos últimos 25 anos.

Viciados em dinheiro barato

Junto com esse cenário de política monetária expansionista, as economias desenvolvidas foram se tornando “viciadas” em taxas de juros baixas. Por isso governos, empresas e indivíduos aproveitaram e se beneficiaram dessa onda de baixos custos de financiamento.

Apesar da dívida global ter aumentado consideravelmente (tanto em termos nominais quanto em PIB), a inflação não foi afetada porque:

  • parte dessas emissões de dívida não foram produtivas. Assim, em vez de serem alocadas a investimentos de capital, foram utilizadas para recompra de ações ou compras alavancadas de ativos que apenas mudavam de mãos;
  • os baixos custos dessa dívida permitiam que empresas, governos e indivíduos se endividassem sem serem forçados a aumentar preços, aluguéis, impostos. Isso porque o custo associado à sua dívida era baixo;
  • esse período coincidiu com dois fenômenos que são, por natureza, deflacionários. Primeiro, o aumento das cadeias produtivas globalizadas. Isso, juntamente com os avanços tecnológicos, levou a uma redução significativa dos custos de produção. Como efeito, os preços de muitos bens de consumo caíram. Segundo, o envelhecimento da população, que desacelera naturalmente o crescimento do PIB e o consumo agregado.

Do lado positivo, esses baixos custos permitiram que vários governos, empresas e indivíduos tivessem a oportunidade de refinanciar dívidas anteriores a custos muito mais baixos, o que lhes permitiu reduzir as pressões financeiras associadas ao custo da dívida.

Uma nova realidade

Desta forma, a pandemia foi um choque como nunca antes visto em diversos níveis.

Já estamos cansados de ler sobre as várias implicações extremas que esse período trouxe para nossas vidas. Mas para esta “história” de juros e preços, foi a tempestade perfeita que gerou a inflação.

A combinação de vários fenômenos teve um impacto de certa forma imprevisível. Esses fenômenos foram:

  • Falta de investimento: antecipando os impactos negativos resultantes da pandemia, empresas globais em todos os setores reduziram seus investimentos, abandonando projetos de expansão, investimentos e crescimento da produção;
  • Aumento de estoques: o fenômeno anterior levou as empresas a antecipar suas ordens de compra de bens, produtos e commodities, prevendo uma possível escassez. Esse aumento de estoques, juntamente com a falta de investimento, resultou em escassez de produtos posteriormente, refletindo-se no aumento de preços;
  • Disrupção das cadeias de logística: a Covid-19 levou ao fechamento de fronteiras, redução de voos internacionais. O resultado é que, aliado ao aumento de estoques, houve complicações nas cadeias de logística. Isso causou um aumento significativo nos custos de frete para as empresas;
  • Demanda acima do esperado: impulsionada pelo aumento da poupança gerada pela pandemia e pelas transferências governamentais (quem não manteve seu emprego recebeu, em muitos países, transferências governamentais de suporte), as pessoas se viram em casa consumindo muito mais do que o esperado. Bens de consumo, bens de luxo, tecnologia, entre outros, tiveram uma demanda muito acima das expectativas;
  • Tensões políticas internacionais: para piorar as complicações nas cadeias de logística, as tensões comerciais e políticas internacionais (principalmente entre China e EUA) se agravaram ainda mais. Restrições de produção, logística e exportação levaram à escassez desse produto essencial presente em carros, celulares, computadores.

Desta forma, esses cinco pontos foram a tempestade perfeita para trazer a inflação de volta. Foram também fenômenos que coincidiram com um período de política monetária altamente expansionista. Ou seja, uma elevada injeção de recursos monetários, feito numa escala global.

O que aconteceu depois da pandemia?

A velocidade de recuperação econômica pós-pandemia também contribuiu. O emprego voltou e as pessoas retomaram seus hábitos de consumo. Viagens, restaurantes, bares, shoppings: tudo voltou rapidamente e com força.

Assim, houve um “choque de oferta”. Ou seja, um fenômeno em que a recuperação econômica é muito forte após um choque agressivo e um período recessivo. Logo, houve uma recuperação saudável e uma inflação que indicavam uma economia resiliente após um período conturbado e sem precedentes.

Mas os investimentos ainda estão baixos, as cadeias de logística ainda estão pressionadas e os níveis de estoque agora se normalizaram.

Além disso, o presidente russo Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia. Lembrando que a Ucrânia é um dos maiores exportadores de commodities agrícolas. Por sua vez, a Rússia é um dos maiores exportadores mundiais de energia. A tempestade ficou ainda mais perfeita.

Prioridade zero: controlar inflação

A história já mostrou várias vezes o quão corrosiva a inflação pode ser. Embora uma taxa de inflação de cerca de 2% seja quase inevitável e até desejável, o trabalho e o mandato dos bancos centrais ao redor do mundo é tentar reduzir a inflação quando ela parece estar fora de controle e pode atingir níveis corrosivos.

Durante a década de 1970 nos EUA, um Fed pouco independente e altamente pressionado pela agenda política acabou reagindo tarde demais, permitindo que a inflação saísse de controle.

Naquela época, o país enfrentou um dos fenômenos mais indesejados da política econômica, a estagflação. Um período em que a inflação aumenta ao mesmo tempo em que o desemprego também aumenta. A economia está em recessão, mas os preços teimam em aumentar. Aparentemente, esse cenário está sendo evitado, já que tanto a economia quanto o mercado de trabalho estão mostrando resiliência.

Um contexto histórico

Após o fim do dólar como reserva tendo ouro como colateral em 1971 (por ordem do presidente Nixon), a moeda norte-americana passou a ser lastreado apenas na “fé” de que o Federal Reserve controlaria o fluxo do dinheiro na economia.

Essa confiança foi questionada. Isso porque a política ainda era pouco consistente de baixas taxas de juros durante um período de alta inflação. E aí o dólar perdeu mais da metade de seu valor ao longo de uma década.

William Martin e Arthur Burns (presidentes do Federal Reserve entre 1951-1971 e 1970-1978, respectivamente) falharam em seu trabalho de controle da inflação. Ambos cederam a pressões políticas que comprometeram a independência do Fed.

Martin e Burns também mantiveram as taxas de juros em níveis baixos. Se tivessem feito o contrário, poderiam ter controlado a inflação.

Paul Volcker: combate a inflação e o cenário atual

Paul Volcker (presidente do Federal Reserve de 1979-1987) foi o principal responsável por combater a inflação, restaurar o valor do dólar e a independência do Fed.

Volcker assumiu o Fed a mando do presidente Jimmy Carter (39° presidente dos Estados Unidos de 1977 a 1981), e teve a coragem de aumentar os juros de forma desconcertante, em um nível nunca visto antes.

O objetivo era tentar controlar a inflação, que era, naquele momento, o maior problema econômico e social nos Estados Unidos.

O aumento das taxas de juros era uma medida impopular e gerava receio devido ao risco de causar uma recessão.

No entanto, a inflação era um problema muito maior do que uma recessão naquele momento e precisava ser controlada. O próprio Paul Volcker enfrentou oposição política às suas medidas, inclusive dentro do próprio Federal Reserve.

Assim, as restrições ao fluxo monetário atingiram níveis nunca vistos. A taxa de juros atingiu, em seu pico, em 1979, incríveis 21%.

Obviamente, isso teve consequências econômicas complicadas, com os Estados Unidos enfrentando sua pior recessão do período pós-guerra.

Jerome Powell: o herdeiro de Volker

Mas deu resultado!

A corajosa e desafiadora missão de Paul Volcker foi cumprida e, apesar das críticas e das agonias de curto prazo (em nome da estabilidade de longo prazo), a inflação foi controlada.

Desta forma, Paul Volcker deixou a presidência do Federal Reserve em 1987 com a taxa de juros abaixo de 7%, o desemprego abaixo de 6% e… uma inflação de 4%! Ele havia cumprido seu trabalho.

Jerome Powell, presidente do Federal Reserve — Foto: Alex Brandon/AP
Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed) – Foto: Alex Brandon/AP

Jerome Powell é o atual presidente do Fed. Powell é o primeiro desde Paul Volcker a lidar com uma inflação de magnitude semelhante e a ter que usar a política monetária do banco central como ferramenta de controle da inflação.

Tanto a magnitude quanto a velocidade do aumento das taxas de juros são as maiores desde a década de 1980. O Fed aumentou sua taxa de referência em 500 pontos-base (5%) em um período de apenas 15 meses.

Os contrastes entre as inflações

Ao contrário do último aperto monetário da década de 1970, o momento atual apresenta uma diferença fundamental.

Isso porque o mercado de trabalho e a economia estão mostrando um bom grau de resiliência. O desemprego nos EUA está em um dos níveis mais baixos em várias décadas. Isso é muito importante, uma vez que o emprego é um dos maiores indicadores de recessão e resiliência econômica. Também mostra que estamos longe do temido cenário de estagflação mencionado anteriormente.

Outra diferença é a velocidade de reação do Fed e seu compromisso claro com a missão do Federal Reserve de manter a inflação em 2% (também sustentando a preservação do dólar como moeda de referência e seu valor em relação a outras moedas). Além de manter sua independência diante de pressões políticas.

O mandato tem sido claro e a prioridade tem sido o controle da inflação, tentando evitar os erros da década de 60-70.

Os riscos da recessão

Como em qualquer ciclo de aumento de juros e aperto monetário, o risco número 1 tem um nome: recessão.

Como mencionado antes, a economia tem mostrado uma resiliência maior do que o esperado, mas sabemos que historicamente o aperto monetário estatisticamente resulta em recessão (dos últimos 13, 10 acabaram em recessão).

Também sabemos que em alguns desses cenários houve atrasos significativos entre o ciclo de aumento de juros e o início dessas recessões.

Fora isso, existem riscos associados à inadimplências e a falências devido ao endividamento excessivo de empresas que enfrentam pressões de custos de dívida mais altos.

Nesse sentido, empresas e instituições com uma maior proporção de dívida de taxa variável estão em maior risco.

Assim como empresas em situações mais frágeis que podem enfrentar dificuldades para refinanciar sua dívida devido à falta de acesso aos mercados de capitais ou até mesmo aos bancos.

As oportunidades

O aumento das taxas de juros trouxe oportunidades no mercado de renda fixa que não eram vistas há muito tempo.

Os títulos do Tesouro dos Estados Unidos, considerados consensualmente como um dos investimentos mais seguros do mundo, apresentaram taxas de retorno que não eram vistas há mais de uma década.

Já os papéis de curto prazo alcançaram níveis de retorno acima de 5% (quase 3 pontos percentuais acima dos níveis de retorno há um ano).

Isso também se refletiu nos retornos dos títulos de dívida corporativa, os famosos bonds. Empresas com classificação de investimento (investment grade) oferecendo retornos acima de 5% eram uma realidade não vista há cerca de uma década.

Logo, esses retornos fizeram com que o incentivo para correr riscos no mercado de ações em comparação com a busca de retornos na renda fixa diminuísse significativamente, devido à compressão das taxas de retorno no mercado de ações em relação aos títulos de renda fixa.

Hoje, cerca de 90% das empresas do S&P 500 oferecem um retorno maior na compra de seus títulos de dívida do que pagam de dividend yield.

Conclusão

Para concluir, estamos vivendo um fenômeno geracional. Não são muitas vezes na história que ocorrem períodos de alta inflação e aperto monetário significativo.

O mundo ocidental globalizado acreditava que esse período havia acabado para sempre. No entanto, agora vemos que isso não é verdade.

Além disso, continuaremos enfrentando desafios resultantes das tensões geopolíticas globais, que têm levado países e empresas a adotarem fenômenos como a internalização ou a proximidade das cadeias produtivas e logísticas, resultando em um mundo menos globalizado e com maior foco na segurança das cadeias de produção.

Embora as taxas de juros ainda possam permanecer mais altas do que antes no futuro, o momento atual, com as taxas de juros nos níveis atuais, pode não durar para sempre. Portanto, o investidor tem uma oportunidade momentânea de adquirir títulos e ‘contratar’ uma taxa de retorno que não era vista há anos e que pode não durar muito tempo.

Como economista, tentar analisar o que o futuro nos reserva, olhando para o que a história nos ensina, é um desafio intelectual gratificante, sabendo que provavelmente falharemos na previsão.

Como diria Paul Samuelson, “economistas previram 9 das últimas 5 recessões.”

Artigo escrito em colaboração com William Castro Alves, colunista da Inteligência Financeira e sócio e estrategista-chefe da corretora digital Avenue.