Próximo governo não terá ‘lua de mel’, diz Carlos Kawall

Economista vê risco político e ambiental com Bolsonaro e diz que Lula desperta dúvida na economia

Na reta final de uma campanha eleitoral marcada por uma surpreendente tranquilidade no mercado financeiro, o investidor começa a mostrar mais claramente onde vê diferenças – e preocupações – entre os dois candidatos. Para o ex-secretário do Tesouro Nacional Carlos Kawall, hoje à frente da gestora Oriz Partners, o consenso é de que nem Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nem Jair Bolsonaro (PL) representam risco de ruptura do ponto de vista fiscal. Mas há incertezas em relação às duas gestões, para as quais o vencedor deverá oferecer respostas rápidas, sob o risco de ver uma reação negativa por parte dos ativos financeiros.

“Se pegar os últimos governantes eleitos em pleitos polarizados, o que se vê é que não existe mais lua de mel. Talvez ela exista até a posse, mas ela é muito curta. E assim pode haver uma perda de popularidade muito rápida”, afirma.

Em relação ao governo Lula, a principal dúvida tem a ver com qual será o mix de política econômica, especialmente na gestão de companhias estatais e também sobre o controle de gastos públicos. E isso torna ainda mais urgente que, em uma eventual vitória, os nomes da equipe econômica sejam anunciados.

“Não vejo por que não ter o ministro da Economia escolhido na semana que vem e os demais integrantes da equipe”, afirma. “E a partir daí o mercado começa a fazer a leitura para a trajetória do gasto e ter, sim, repercussões na curva de juros.”

No caso de uma reeleição, o risco vem, principalmente, do campo político e da agenda ambiental, que, segundo ele, pode travar a expansão do agronegócio caso não seja readequada. “A gente precisa baixar a temperatura do confronto”, afirma. “A economia está em boa situação. Temos um problema de imagem internacional, que vai perdurar se houver essa reeleição.”

A seguir, os principais trechos da entrevista

Valor: A bolsa e o dólar começaram a reagir a pesquisas eleitorais que mostraram algum crescimento do presidente Jair Bolsonaro, depois de meses expressando tranquilidade com a perspectiva de vitória do ex-presidente Lula. O mercado mudou de opinião?

Carlos Kawall: Eu não acho que o mercado tenha mudado de ideia. Tem uma visão de que não virá um governo com uma ruptura na política econômica. E o grande termômetro disso é o dólar, que não teve nenhum grande solavanco desde a semana passada. Mas, ainda assim, numa vitória do Bolsonaro, acho que o mercado tenderia a melhorar. É uma leitura do mix de política econômica. E na bolsa, importa muito a questão da Petrobras. Tem muito receio de que haja ingerência na política de preços. A gente sabe que não foi um mar de tranquilidade o que aconteceu na gestão da Petrobras no atual governo. Mas, mesmo assim, a empresa praticou preços alinhados ao mercado internacional. E fica a hipótese de que, em um segundo mandato do Bolsonaro, pode até haver a privatização da Petrobras, até pela nova composição do Congresso. Ou, ao menos, a continuidade de uma política que já é conhecida. A Petrobras este ano foi a maior pagadora de dividendos do mundo. Embora tenha havido muito ruído, a empresa está com balanço mais vigoroso, endividamento baixíssimo. É uma percepção de onde se tem mais a ganhar ou a perder com cada candidato. Acho que nunca houve a ideia de que eles são iguais. Na reta final, tem algumas diferenças que vão ser precificadas. Mas não é a mesma coisa do que aconteceu em 2002. Não tem dólar disparando para R$ 6,00.

Valor: Há visões diferentes entre o investidor estrangeiro e o local?

Kawall: O que eu tenho de informação é de que existe uma visão favorável do investidor estrangeiro com relação a Brasil. E acho que tem aí questões de fundamentos macroeconômicos, a situação das contas externas, o fato do Brasil ser produtor de commodities e se beneficiar da alta de preços, a questão do redirecionamento dos fluxos globais por causa da guerra na Ucrânia e da nova orientação da China. Eu diria que América Latina e Brasil estão mais no radar do investidor global do que já estiveram em outros momentos. A gente ganhou expressão. E a leitura é de que essa alternância política, se houver, não trará um desconhecido. Então, há uma certa boa vontade [com um governo Lula], mas sujeita ainda à confirmação de política econômica e equipe. E principalmente ao tratamento que será dado ao teto de gastos no pós-eleição. Tem uma percepção de que o teto de gastos não funciona como funcionou até a pandemia, e até 2021, quando a gente teve PECs, precatórios para a expansão de gastos. Há um entendimento de que antes do fim do ano, qualquer que seja o resultado eleitoral, haverá uma PEC para viabilizar o auxílio de R$ 600, acho que é consenso entre candidatos. Mas acho que tem uma distância muito grande entre ter a possibilidade de excepcionalizar o Auxílio Brasil por meio da PEC e a ideia de se fazer um ‘waiver’ (descumprimento) de R$ 100, R$ 150, R$ 200 bilhões. Mas não há boa vontade com a ideia de, em um contexto em que a economia cresce, o desemprego é baixo, a inflação está caindo mas ainda é alta, e o hiato do produto é baixo, você partir para um programa de expansão fiscal que seria a, meu ver, um grave erro de política econômica. O que aconteceu no Reino Unido, um erro colossal de avaliação, nos serve de exemplo. Não é uma economia em crise profunda, de desastre social. A gente pode até entender que o discurso eleitoral leve os candidatos a se expressarem dessa maneira. Quem é oposição deve tender o discurso para esse lado, mas isso não corresponde à realidade.

Valor: O que o mercado tem no preço é uma situação em que haverá algum arcabouço fiscal, ainda que seja um substituto para o teto de gastos?

Kawall: Isso não é muito claro para mim. Vai depender de qual seria a nova regra. É o ditado, não há nada que seja tão ruim que não possa ser piorado. Meu temor é destruir a regra existente, colocando algo que não tenha força suficiente. Se for para adotar uma regra de gastos que funcione mais ou menos como a meta de inflação, que se você não cumprir, você escreve uma carta para justificar, eu prefiro que fique como está. O teto pode ter furos, mas ainda é eficiente. Se for nesse caminho, eu diria que é melhor fazer um ‘waiver’ para o Auxílio Brasil. Pelo que a gente ouve dizer, há dentro da oposição a defesa da revogação pura e simples do teto. Se isso ocorrer, a gente voltaria a ter uma restrição fiscal fraca. Só a Lei de Responsabilidade Fiscal, que é uma meta de superávit primário, não mais corresponde à realidade do país porque ela não disciplina o gasto, que é elevadíssimo. É possível substituir o teto por algo melhor, que seja articulado entre qual é a meta de primário, qual a restrição de gasto, qual é o objetivo para queda da relação dívida/PIB. O que o Tesouro propôs é uma regra que faz sentido. Mas quem disse que vamos, no debate político, eleger algo que seja melhor? Qual é a calibragem? Então, o risco de definirmos algo pior do que a gente tem é relevante. Se for para fazer ‘waiver’ todo ano, aí não adianta ter regra. Mas isso não quer dizer que a mudança da regra seja necessariamente para melhor.

Valor: A curva de juros reflete esses riscos todos, que parecem estar presentes em qualquer que seja o próximo governo?

Kawall: A curva de juros tem respondido muito ao que tem acontecido lá fora, à política monetária americana. Mas imediatamente após a eleição, acho que a reação vai depender muito do discurso do presidente eleito. Se for a oposição, tem que indicar a equipe econômica para fazer a transição. E tem que ter a equipe formalmente escolhida para ter acesso aos dados. Não vejo porque não ter o ministro da Economia escolhido na semana que vem e demais integrantes da equipe. E a partir daí o mercado começa a fazer a leitura para a trajetória do gasto e ter, sim, repercussões na curva de juros. Em um primeiro momento, a eleição do Congresso foi vista como um limitante a uma agenda mais heterodoxa. E eu acho que esse é um fato relevante. Havia análises no período mais recente de que, dadas as demandas de aumento de gastos que vinham se avolumando – aumento de salário mínimo, do funcionalismo, do Auxílio – haveria necessidade de aumento de imposto. Hoje, eu acho que essa probabilidade é menor. Uma expansão fiscal até ao ponto de ter que aumentar impostos, que seria muito ruim para o crescimento no médio prazo, poderia fazer com que essa curva de juros tivesse um comportamento muito negativo. Mas acho difícil que já em 2023 tenhamos um debate no Congresso sobre uma nova regra de gastos. Acho que isso é mais para frente. Em 2023, acho que a discussão será sobre o waiver e que tamanho ele terá. E isso pode ter impacto na curva de juros. E há ainda um cenário que preocupa a todos que é ter uma eleição muito dividida e haver alguma contestação da eleição. Isso aumentaria o estresse.

Valor: Além da equipe econômica, quais são as informações mais urgentes que o mercado espera ter de um eventual governo Lula?

Kawall: Como a questão fiscal está no epicentro da incerteza, acredito que isso vá se afunilar na questão do Orçamento de 2023, que não contempla esse aumento de gastos sociais. Acredito que vá contemplar, mas para isso precisa mudar a LDO, excepcionalizar o teto, e ver como isso vai tramitar no Congresso. E depois a sinalização em relação ao futuro da política fiscal e da própria regra. O Lula tem dito que não quer o teto. Mas ele não quer porque quer ter graus de liberdade adicionais ou simplesmente vai propor sua abolição? E qual seria esse grau de liberdade? Depois, existe dentro do PT o anseio de fazer alguma revisão das reformas, como a trabalhista, o que também será objeto de observação do mercado. Nesse terreno é que eu acho que o grau de liberdade que o futuro governo teria se estreitou por causa da nova composição do Congresso. No fundo, é o que todo mundo tem usado como parâmetro. Vai ser um Lula mais conciliador, se colocando como um presidente eleito por uma frente mais ampla, buscando consensos além do que preconiza seu próprio partido? Ou vai se colocar como alguém que luta ideologicamente pelo programa de seu próprio partido? O mercado hoje está precificando a primeira opção. Se for a segunda, ele vai cair muito. Um dado interesse é que, se pegar os últimos governantes eleitos em pleitos polarizados, o que se vê é que não existe mais lua de mel. Talvez ela exista até a posse, mas ela é muito curta. E assim pode haver uma perda de popularidade muito rápida. Ainda mais com esse Congresso, em que as condições de governabilidade não serão tão fáceis.

Valor: E como o novo governo deverá lidar com essa situação em que o Congresso tem o controle do Orçamento?

Kawall: Eu diria que, se isso mudar, talvez seja até na direção de ser maior ainda, e não de diminuir. Então a dependência que o Congresso tem do Executivo, que já foi grande, hoje é bem menor. O governo federal ainda tem grande poder de atração sobre os partidos. Ser situação é algo que ainda vale. Mas o parlamentar tem uma independência em relação ao Executivo pensando em recursos. É um contexto político novo, desafiador, em uma economia que, eu insisto, não está em crise. Houvesse uma situação de desemprego elevadíssimo, quase convulsão social, seria natural o governo buscar uma margem de manobra maior do Orçamento. Mas não é o caso. Então, fazer política fiscal expansionista em 2023 em um contexto de juro real elevado é cometer um erro que o Brasil já cometeu, e que acabamos de ver ser cometido também de maneira quase caricata pelo Reino Unido. Do lado econômico, ser prudente na área fiscal, aproveitando que a gente está terminando o ano com uma dívida/PIB semelhante ao que tínhamos em 2019 [ao redor de 76%], antes da pandemia. E fazer aquilo que eu acredito que seja consenso, que é deixar a economia trilhar seu curso, deixar o Banco Central cortar os juros. Se a política fiscal for expansionista, talvez ele não possa cortar o juro tão cedo. Talvez ele tenha que subir os juros.

Valor: Se houver reeleição, o que o governo precisa fazer no curto prazo para manter esse ambiente mais positivo que pode se observar no mercado financeiro, como o senhor espera?

Kawall: A gente precisa baixar a temperatura no campo político. Estamos em um processo de acirramento de ânimos muito grande, vimos o episódio quixotesco do fim de semana [a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson], que não contribui para o Brasil, nem para sua imagem no exterior. A gente precisa baixar a temperatura do confronto. A economia está em boa situação. Temos um problema de imagem internacional, que vai perdurar se houver essa reeleição. Temos que buscar outro posicionamento na agenda ambiental. Disso, a meu ver, depende muito da expansão do agronegócio, que pode enfrentar barreiras se isso não ocorrer. Além disso, acredito que com a reeleição, abre-se a possibilidade de continuar com a agenda de reformas. Abre-se a possibilidade de privatização da Petrobras, e tem sempre a discussão da reforma tributária. Acho que seria uma candidata natural na agenda das grandes reformas.

Valor: Passada a eleição e superada essa incerteza sobre o próximo governo, é possível esperar o ingresso de recursos externos, como alguns analistas preveem?

Kawall: Para quem está em um país desenvolvido, existem fatores que o empurram para investir fora, e tem fatores que os puxam para investir nos seus próprios países. São os “push and pull factors”. Nos últimos 20 anos, sempre houve fatores que empurravam os investidores a colocar o dinheiro em emergente, que era o cenário de juro baixo no mundo. Isso tem limite, porque se você investe num local que tem fundamentos ruins, vai ter depreciação da moeda, queda do preço dos ativos. Mas sempre tivemos essa primeira condição preenchida. E hoje não temos mais. Estamos com o juro dos Treasuries em 4%, títulos ‘high grade’ [de baixo risco] americanos pagando 5%, 6% ao ano. Toda essa euforia de achar que o Brasil é a bola vez, tem que se medir num contexto em que não se tem mais tanta pressão para investir no exterior. Então, a gente depende cada vez mais de ter fatores de atração: crescimento, queda da inflação, perspectiva de queda de juros, o que abriria oportunidade nesse mercado, commodities. Agora, se você destrói os fatores que temos de atração, não vai ter nada empurrando o capital para cá, porque o juro lá fora está alto. Este ano, o câmbio aqui se valoriza e a bolsa está subindo. Isso é bom para o estrangeiro, mas tudo vai depender de se manter os fundamentos econômicos amigáveis. Estamos vendo também números bons de investimento direto, o Brasil avançou muito na agenda de concessões, commodities, energia…a gente tem uma agenda que, se bem organizada e bem tocada, nos garantirá um período bastante favorável. Mas já foi assim em outros momentos em que o mundo estava louco para investir em mercados mais atraentes, e a gente desperdiçou. Então, isso nunca está garantido.

Por Lucinda Pinto

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