Brasileira de 32 anos será chefe global na Stellantis, fusão das marcas Fiat, Chrysler, Peugeot e Citroën

Pernambucana da primeira turma de trainees em Goiana (PE) assume comando do sistema de produção da montadora
Pontos-chave
  • Pernambucana Juliana Coelho é a nova chefe mundial do chamado modo de produção Stellantis

Quando criança, Juliana Coelho gostava de números. Por isso, decidiu estudar engenharia. Escolheu especialização em química por saber que as chances de um engenheiro deslanchar na carreira em Pernambuco se limitavam ao polo petroquímico. Mas quando ela chegou ao fim do penúltimo ano da faculdade, em 2010, surgiu um fato novo, que, posteriormente, diversificaria a atividade econômicada região e mudaria completamente a trajetória profissional imaginada pela jovem pernambucana. Em dezembro daquele ano, a Fiat anunciou a construção de uma fábrica no Estado.

Hoje, aos 32 anos, a engenheira está em viagem pela Europa para conhecer algumas das 92 fábricas que compõem a Stellantis, empresa que nasceu da fusão entre as marcas dos grupos Fiat, Chrysler, Peugeot e Citroën e que este mês completou um ano. Coelho acaba de assumir um dos mais importantes cargos da área de manufatura da nova super montadora. A pernambucana é a nova chefe mundial do chamado modo de produção Stellantis, que extrairá o melhor dos métodos que cada uma dessas marcas desenvolveu para fabricar veículos ao longo de histórias centenárias.

A executiva está em Paris e acabara de sair da aula de francês, idioma que aproveita para aprender durante a viagem, quando concedeu uma entrevista on-line ao Valor. A capital francesa poderá ser uma das alternativas de novo endereço da engenheira que nasceu em Olinda. Ela ainda estuda a melhor localização de moradia para ela e o marido, preparador físico e também pernambucano, com quem está casada há dois anos e meio.

A Europa tende a ser ponto estratégico tanto para os deslocamentos entre as linhas de montagem espalhadas pelos continentes como para a proximidade com a direção mundial da companhia, que nesse momento trabalha intensamente para afinar as sinergias entre as marcas.

Mas a questão da moradia não parece preocupá-la num momento em que a pandemia nos deixou lições sobre, como ela cita, o trabalho no “nowhere office” (escritório em lugar nenhum).

Já faz nove anos que a engenheira formada pela Universidade Católica dePernambuco, com pós-graduação em Petróleo e Gás, passou na seleção de trainees da fábrica que a Fiat começava a construir em Goiana, a 64 quilômetros de Recife e um pouco menos de Olinda. Mas sua carreira deu uma guinada nos últimos três anos, período em que a Fiat também passou por uma grande transformação na fusão com as outras montadoras. Em 2018, a Fiat anunciou a aquisição da Chrysler. Os italianos já tinham decidido investir numa nova fábrica em Goiana depois que o governo federal prorrogou incentivos fiscais no Nordeste. Com a fusão das marcas, o local foi escolhido para receber uma moderna fábrica da linha Jeep. Mais tarde, do casamento com os franceses surgiu a Stellantis.

Atenta ao sonho que a neta começou a acalentar desde que se soube que uma montadora iria para Pernambuco, dona Miriam, avó materna da recém-formada, ficava de olho nas notícias, fartamente divulgadas na imprensa local, sobre contratações. “Parece que já chamaram uma turma. Será que você não está na lista?” Sim, estava. Sua neta e mais 39 engenheiros recém-formados eram a primeira turma de trainees da primeira fábrica de veículos de Pernambuco.

Mas quando eles foram contratados faltava a fábrica. O imenso terreno, onde até então havia um canavial, não passava, naquele momento, de um canteiro de obras. A turma foi, então, enviada para a Itália e Sérvia, para aprender nas fábricas de lá. O sonho da jovem que sempre gostou de carros começava a se tornar realidade. Seu interesse por automóveis surgiu quando criança. Um tio tinha uma locadora e oferecia a frota para os parentes passearem. Na família Coelho não há outros engenheiros. O pai de Juliana, já falecido, trabalhou em administração. A mãe é fisioterapeuta. Um dos dois irmãos – ambos mais jovens do que ela – faz mestrado em administração em Portugal e o outro, nutricionista, também vive em Olinda.

Depois da temporada de treinamento nas fábricas europeias, e com a construção em Goiana já concluída, Coelho começou em seu primeiro emprego. A formação em química a direcionou para a área de pintura dos carros. Era curiosa, tinha vontade de aprender, mas também de ensinar. Esse dom acabou por envolvê-la na área de contratação de pessoal. Tornou-se uma líder de área e, mais tarde, supervisora.

A engenheira começou a perceber que ela e tantas outras pessoas de seu Estado que se candidatavam às vagas da nova fábrica tinham em comum o fato de aqueles serem seus primeiros empregos. E também tanto quanto ela nenhum deles sabia como era produzir carros. Mas notava que todos poderiam aprender rapidamente.“ As oportunidades surgem não só para quem tem bagagem, mas para quem está disposto a aprender”, destaca.

Os que bateram à porta da Fiat em Pernambuco vinham de ofícios muito diferentes do trabalho oferecido ali. Eram marisqueiros, pescadores, cortadores de cana. E, entre eles, alguns até com habilidades que, curiosamente, podem ser úteis numa montadora. Coelho cita o exemplo dos que já haviam trabalhado como artesãos. “Assim como no artesanato, o controle de vedações de uma carroceria também requer habilidade com as mãos”, diz.

Com o passar do tempo, a fábrica de Goiana precisou ser expandida. Paralelamente, Coelho construía uma carreira ascendente na companhia. Da pintura seguiu para a linha de montagem, onde assumiu cargo de gerente quatro anos depois de ter começado na empresa. Com o processo de expansão da fábrica, ela continuou envolvida também na gestão de pessoas, processo de contratação e, como ela repete, “aprendendo e passando adiante” conhecimento adquirido.

Em março de 2018, a Fiat Chrysler anunciou que a fábrica de Goiana passaria a funcionar 24 horas por dia, com três turnos. A novidade foi celebrada com festa, com a presença do então presidente Michel Temer, que levou para a empresa notícia ainda melhor: a prorrogação, por cinco anos, do regime especial de tributação para fábricas do setor automotivo instaladas no Nordeste. O benefício já havia sido prorrogado em 2009.

Desde então, a polêmica que sempre existiu em torno dos incentivos fiscais para montadoras nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste intensificou-se. Empresas com fábricas fora dessas regiões reforçaram o lobby junto a políticos, com queixas de que perderiam na concorrência com as que desfrutam de redução de impostos. Do lado oposto, os que estão instalados nessas regiões sempre contra-argumentaram a necessidade de incentivos para compensar o gasto com a logística que envolve o transporte de peças do Sul e Sudeste até as fábricas de lá e, no caminho inverso, dos carros prontos para esses mercados.

Coelho defende formas de garantir desenvolvimento para essas regiões. Ela diz que outros países estimulam, por meio de incentivos, regiões onde a indústria não está tão presente. “A descentralização é fundamental. É preciso acabar com o mapa que se resume a três ou quatro Estados. Veja o que era aquela fábrica (em Goiana) e o que ainda vai ser; é preciso investir não só onde já existe desenvolvimento”, afirma.

O novo desafio profissional tem tomado mais tempo, o que ela acha natural. “No trabalho, costumo dar o meu melhor”, diz. Mas, em geral, a executiva consegue equilibrar vida profissional e pessoal. “Aos domingos, passo na casa da minha avó, fico com meu marido e toda a família, vou à igreja…”

A primeira experiência longe de casa, da avó, da mãe, do irmão e de Olinda foi em novembro de 2018. Coelho foi transferida para Betim (MG), para assumir o cargo de engenheira chefe da manufatura da Fiat Chrysler em toda a América Latina. Ela e o esposo seguiram para Belo Horizonte, onde moraram até julho de 2020. A posição a ajudou a ter visão melhor não só da área de manufatura como da estrutura da empresa.

Uma nova promoção, no entanto, a levou de volta para a terra natal. Ela foi escalada para dirigir toda a fábrica, que, àquela altura já tinha praticamente o mesmo tamanho de hoje, com 13,5 mil funcionários e 16 fornecedores dentro do parque industrial. Foi a primeira mulher a assumir esse cargo na companhia.

Mas quando ela entrou na fábrica em Goaiana não havia ninguém. Foi no começo da pandemia. Um período em que praticamente todas as montadoras haviam dispensado os empregados. Eles só voltaram depois que as empresas organizaram as fábricas, com distanciamento e medidas preventivas para evitar a disseminação da covid-19.

A nova chefe da fábrica obviamente já sabia que não encontraria trabalhadores ali. Mas depois de sete anos de trabalho em linhas de montagem a sensação do vazio era perturbadora. A pandemia também deixou, porém, boas lições. “Aprendemos a nos conectar com as pessoas, a ouví-las num momento de muita responsabilidade. É nos momentos difíceis que enxergamos as qualidades das pessoas”, destaca.

Há pouco mais de dois meses, a pernambucana foi chamada para uma série de entrevistas dentro da companhia. Os questionamentos sugeriam que ela passava por uma sigilosa seleção. “Imaginei que tudo aquilo era para uma nova oportunidade de trabalho na empresa, mas não tinha clareza do que era”, destaca. As entrevistas não a deixaram, porém, ansiosa. “Sou muito tranquila”. É, de fato, o que aparenta ser. Tudo veio à tona quando, em dezembro, ela foi convidada para assumir o comando do novo sistema de produção da Stellantis. Ela não sabe quem e nem quantos candidatos estavam na disputa.

O novo trabalho é um grande desafio. Cada uma das marcas da montadora desenvolveu, ao longo de décadas, seus próprios meios de produzir veículos. A partir do que cada um oferece de melhor será construído um modelo próprio da Stellantis. A brasileira vai comandar esse processo, que envolve, também, as sinergias que a direção mundial da companhia tem perseguido desde o primeiro dia da criação da empresa. No novo cargo, Coelho diz que estará sempre muito próxima das fábricas do grupo em todo o mundo. “Teremos que criar metodologias a partir da aplicação dos melhores métodos adotados até hoje pelos dois grupos”, destaca.

As reuniões globais da Stellantis costumam ser conduzidas em inglês, um idioma que a brasileira domina. Mas em conversas com Carlos Tavares, presidente mundial da companhia, ela certamente terá sempre a chance de praticar sua língua nativa. Tavares nasceu em Portugal.

Numa conversa, a jovem executiva parece já esperar a pergunta sobre preconceito. Fazer parte da valorização da diversidade de gênero numa indústria que historicamente é ambiente essencialmente masculino é algo que a encanta. Garante nunca ter sentido preconceito. Acredita, por outro lado, que é preciso estimular as mulheres a trabalhar em setores onde, às vezes, elas mesmas julgam que não se adaptarão. “É fantástica essa oportunidade; o diverso, o retrato das ociedade, já aparece nas nossas reuniões”.

A executiva se interessa, também, por acompanhar estudos e pesquisas que apontam tendências mundiais na mobilidade. Ela reconhece que muita coisa mudou desde os tempos em que comprar um carro era uma das conquistas mais importantes na vida de um jovem. Mesmo assim, acredita que o interesse pelos carros persiste e vai continuar. Nessa viagem à França, por exemplo, as transformações da mobilidade e a oferta de meios de transporte, especialmente em Paris, chamaram sua atenção. Mas, nem por isso, para sua alegria, o automóvel perdeu protagonismo. “Em Paris, você pega um carro se quiser e mesmo assim a cidade continua cheia de carros”, destaca.

Para ela, “a pluralidade da mobilidade”, por outro lado, ganha importância. É o caso, por exemplo, do uso compartilhado dos veículos, como um serviço. “As pessoas vão continuar gostando dos carros, mesmo não sendo proprietárias deles”. O que importa nesse contexto, diz, é que a indústria continue a perseguir as metas ambientais. “O desafio do carbono zero é fundamental”. A Stellantis anunciou o plano de investir mais de € 30 bilhões até 2025 em projetos de eletrificação e tecnologia. No dia 1º de março, Tavares anunciará um novo plano estratégico da companhia para os próximos anos, que envolverá sustentabilidade.

O retorno da nova executiva global da Stellantis ao Brasil está marcado para apróxima segunda-feira. Desta vez, provavelmente, por pouco tempo. A nova função certamente exigirá muitas viagens continentais. Mas Olinda e Goiana continuarão lá, como testemunhas de que a indústria automobilística não deve se surpreender quando encontrar talentos escondidos em terras onde há até alguns anos ninguém sabia como fabricar um carro.

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