Boom do streaming no Brasil deve movimentar mais de R$ 1 bilhão em 2022
O crescimento do mercado brasileiro de streaming de vídeo está dando novo gás ao setor audiovisual, que enfrenta a descontinuidade das políticas públicas federais voltadas para a atividade. A recente chegada de diversas plataformas multinacionais acirrou a concorrência pelo consumidor, e os serviços já constataram a importância de ter filmes e séries locais.
Embora os principais serviços de streaming não revelem seus números, executivos do setor dizem que o apetite é alto, com investimentos de mais de R$ 100 milhões anuais por plataforma. Netflix, Amazon Prime Video, Disney e Globoplay disputam as primeiras posições desse mercado.
Diante da desativação de alguns mecanismos de apoio à cultura, os produtores independentes estão voltando as suas forças para atender à nova demanda das plataformas de streaming. “O momento é muito positivo e de valores astronômicos”, constata Sabrina Nudeliman, CEO da produtora Elo Company. “O mercado está comprador e superaquecido”, garante Renata Brandão, CEO da Conspiração, uma das maiores produtoras do país.
Por anos o Fundo Setorial do Audiovisual, constituído por tributos recolhidos do próprio setor, impulsionou produções pelo país, mas a liberação de suas verbas desacelerou no atual governo. O investimento estatal vem sendo substituído pelo modelo de negócio de perfil industrial, próprio dos grandes estúdios de cinema hollywoodianos. Projeta-se que o boom do streaming no Brasil deve movimentar mais de R$ 1 bilhão no setor já em 2022.
“Vivemos uma mudança de paradigmas, sem dúvida”, analisa a experiente produtora Mariza Leão, de filmes como “Meu Nome Não É Johnny” e “Guerra de Canudos”.
Se o mercado de streaming já vinha em ascensão, o período de confinamento social lhe deu um empurrão extra. Segundo uma pesquisa da Kantar Ibope Media, em 2020, 58% dos brasileiros assistiram a mais streaming de vídeo pago e 68% a gratuito. “Não há dúvida de que a pandemia acelerou tremendamente nossa indústria em todo o mundo”, afirma Luis Duran, gerente-geral da HBO Max na América Latina. “Foi um big bang tanto do lado da oferta quanto da demanda.”
O Globoplay relata uma expansão de consumo de 196% no ano passado. Mesmo após a reabertura dos cinemas, o crescimento continua. De janeiro a setembro, a plataforma registrou uma expansão de 78% em relação ao mesmo período do ano anterior. Os novos hábitos do consumidor, portanto, vieram para ficar. “O ritmo de 2021 é menor que o de 2020, mas não estagnou”, diz Erick Brêtas, diretor de produtos e serviços digitais da Globo.
Há bastante espaço para crescer. Diferentemente do que ocorre no mercado de TV paga, o consumidor de streaming não se limita, necessariamente, a adquirir apenas um serviço. Um relatório da empresa de pesquisas Ampere Analysis apontou que, no ano passado, cada residência brasileira possuía 1,7 serviço de streaming. Com a oferta de novos serviços este ano, o número já é maior.
“A maioria das famílias da América Latina ainda não está consumindo streaming, então há muito trabalho a ser feito”, analisa Duran, da HBO Max. “Queremos expandir a sua penetração para muito além dos 40 milhões de lares que hoje desfrutam deste tipo de entretenimento no continente.”
A Netflix, pioneira e líder do segmento nos principais mercados do mundo, planeja pesados aportes no Brasil. É o que garante Francisco Ramos, vice-presidente de conteúdo para América Latina. “O ano de 2022 será o mais forte em termos de conteúdo local no país”, afirma. “Em 12 meses, nosso compromisso com a produção nacional vai nos colocar em um novo patamar de ambição”, promete.
Para conquistar os brasileiros, o executivo afirma que foi essencial perceber a necessidade de produzir obras integradas à cultura local. “Embora esperássemos que isso fosse um diferencial, não imaginávamos que seria tão importante para o nosso crescimento”, constata.
Essa tem sido a tônica das principais plataformas: mais do que apenas licenciar conteúdos para ampliar seus catálogos, o principal filão do negócio é produzir filmes e séries originais, com atores e histórias locais. Para fisgar o espectador, a Netflix aposta em filmes como “Amor sem Medida”, comédia romântica com Leandro Hassum, e “7 Prisioneiros”, que acaba de estrear. Estrelada por Rodrigo Santoro, a trama conta a história de um jovem do interior que busca trabalho na capital paulista e torna-se vítima de um sistema análogo à escravidão.
A plataforma também lançará séries como “Maldivas” e “A Sogra que Te Pariu”, além das próximas temporadas de “Cidade Invisível”, “Bom Dia, Verônica” e “Sintonia”. Outras apostas são reality shows como “É o Amor: Família Camargo”, que acompanhará a intimidade da família do cantor sertanejo Zezé Di Camargo.
O serviço da Paramount prepara documentários baseados nas trajetórias do jogador Adriano, o Imperador, e do lutador Anderson Silva.
A HBO Max está produzindo mais de 100 obras na América Latina, para serem exibidas até o fim de 2022. Entre os destaques para o Brasil estão uma série sobre o trágico assassinato da atriz Daniella Perez, outra sobre a cantora Ivete Sangalo, um programa de culinária com a cantora Sandy e um concurso de música, sob os cuidados de Pabllo Vittar e Luísa Sonza.
O Globoplay tem se concentrado em dramaturgia nacional e em desenvolver franquias de longo prazo, com mais de 30 produtos previstos para o ano que vem. A plataforma está lançando “Verdades Secretas 2”, primeira novela brasileira para o streaming. Para 2022, planeja as estreias de séries como “Rota 66”, “Emasculados de Altamira” e “Rio Connection”, além das próximas temporadas de “Arcanjo Renegado”, “Desalma” e “Sob Pressão”.
Essa reviravolta no modelo de negócio do setor produzirá impactos de rumos ainda indefinidos. Em seus anos mais pujantes, o Fundo Setorial do Audiovisual manteve investimentos na casa de R$ 1 bilhão. O valor adicionado pelo segmento – ou seja, após deduzido o custo dos insumos adquiridos de terceiros – passou de R$ 8,7 bilhões em 2007, um ano após a criação do fundo, para R$ 26,7 bilhões em 2018, de acordo com a pesquisa Panorama do Setor Audiovisual Brasileiro, produzida pela Ancine. Isso colocou o audiovisual na quinta posição em geração de renda entre as atividades da economia brasileira, atrás apenas das indústrias de tecnologia da informação, telecomunicações, fabricação de veículos e de produtos de papel e celulose.
O estudo também identificou que, em 2019, cerca de 40% dos empregados do audiovisual estavam situados fora da região Sudeste, com destaque para Nordeste (13%) e Sul (11%). A concentração de empregos no Sudeste vinha decaindo gradativamente desde 2011, alcançando 60% em 2019. No atual momento de míngua na liberação de recursos públicos, produtoras pequenas e médias, de diversas regiões, passam dificuldades para manter suas atividades.
O aumento da produção para serviços de streaming pode levar a maior concentração no eixo Rio-São Paulo, onde a maioria das grandes produtoras está. A região tem maior oferta de mão de obra especializada e proximidade das grandes plataformas, mercado consumidor e centros de distribuição. “As plataformas funcionam como um estúdio, com controle total, e é natural que busquem segurança na entrega, além de empresas já consolidadas”, avalia Bruno Wainer, diretor da distribuidora Downtown Filmes.
O número de produtoras com expertise e capacidade operacional para desenvolver projetos para as plataformas não deve ser amplo. “Acredito que serão no máximo dez, e pretendemos estar entre elas”, calcula Sabrina Nudeliman, da Elo Company.
A Conspiração, que tem filmes e séries em produção para diversas plataformas, almeja conquistar uma fatia grande desse mercado: “Estamos trabalhando para atingir 25% de market share com as nossas obras”, afirma Renata Brandão.
Outra mudança substancial é que no novo modelo as produtoras estão perdendo a propriedade dos filmes e séries por elas produzidos e passando a operar como empresas contratadas. Os serviços de streaming pagam alto pelo direito de explorar as produções originais encomendadas nos formatos, territórios e períodos que julgarem mais oportunos, de forma perpétua. O pagamento por um filme pode chegar a cerca de R$ 15 milhões.
“A propriedade é fundamental para as plataformas”, explica Brêtas, da Globo. “Todo o jogo atual do mercado é de controle sobre a propriedade intelectual: basta notar, por exemplo, as aquisições da MGM pela Amazon ou a atuação da Disney, que comprou Marvel, Fox, Pixar e Lucasfilm, grandes usinas de conteúdo”, diz.
O perfil dos projetos também se modifica. O fundo setorial ofertava ao setor linhas de investimentos para gêneros, formatos e conteúdos diversos, projetos experimentais ou com resultado de bilheteria, que alimentavam salas de cinemas autorais e comerciais, canais de TV paga, abertos, públicos e educativos. O mecanismo também casava recursos para o lançamento de editais com órgãos estaduais e municipais de todo país. Esse amplo escopo de atuação proporcionou um ciclo de desenvolvimento contínuo, a eclosão de produtores independentes e diversidade de conteúdo.
Nesse atual cenário efervescente e ainda embrionário, as plataformas disputam público e fidelização. “Como o foco das plataformas está na ampliação de sua base de assinantes, o único critério de escolha para se produzir um projeto é o seu mérito e capacidade de sucesso”, avalia Bruno Wainer.
A transição nos eixos de produção poderá gerar gargalos na formação de mão de obra e de novos talentos, diz Brêtas. “Nesse contexto mais industrial, como poderá surgir o novo Kleber Mendonça Filho [diretor de “O Som ao Redor” e “Aquarius”], o novo Sérgio Machado [de “Cidade Baixa”], os cineastas que topam se arriscar?”, questiona a cineasta e ex-presidente da Spcine Laís Bodanzky. “Corremos o risco de ficarmos repetindo os padrões atribuídos pelos algoritmos aos filmes e séries de sucesso”, alerta Andrea Barata Ribeiro, sócia da O2 Filmes.
Procuradas, Ancine e Secretaria Especial de Cultura não se manifestaram.
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