A ativista do Greenpeace que virou porta-voz da energia solar no Brasil
O almoço marcado para uma quarta-feira de janeiro no restaurante Supra, no Itaim, perto do escritório de sua consultoria, quase foi desmarcado. Como de costume, Bárbara Rubim acordou cedo, às seis da manhã. Enquanto se arrumava para um café da manhã com um cliente, notou que Panda, um dos coelhos cuidados por ela, estava brigando com Lumi, cachorra recém-adotada. Ao tentar apartar, levou uma mordida do coelho no dedo médio esquerdo. Pensou em desmarcar o encontro com o cliente, mas enrolou gaze e band-aid e foi à reunião. Saiu do hotel rumo ao hospital, onde tomou anestesia para três pontos suturados pela médica. Chegou ao restaurante ainda 15 minutos antes do horário programado para a entrevista.
“A pauta não pode cair nem na vida, nem no Congresso”, diz ela, que agora pensa em mudar para um apartamento maior para que a disputa territorial entre coelho e cachorro não crie mais acidentes.
Porta-voz da energia solar e uma das principais lideranças jovens do setor de infraestrutura, aos 33 anos, Rubim tem transformado a maneira de comunicação com o governo, parlamentares e consumidores. É vice-presidente do conselho da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica, a Absolar.
Mas eletricidade não foi paixão à primeira vista. Diretor de empreiteira, seu pai vivia viajando pelo Brasil para executar projetos de pontes. A família acompanhava a mudança recorrente entre estados. Como era difícil conservar amigos com os constantes deslocamentos, livros passaram a substituir amizades. Leu a coleção de Harry Potter e os policiais de Jonathan Kellerman, psicólogo americano escritor de vários livros de suspense. Também escrevia – desde os oito anos mantém um diário.
Quando seu pai se divorciou da mãe, a vida mudou. Em vez de abundância, restrições. Seu irmão foi estudar no colégio militar. A avó paterna, Rosa Maria, propôs se encarregar de cuidar da neta por causa da falta de condição financeira da ex-nora. Pensionista do marido, ela poderia lhe dar um futuro melhor. Aos dez anos, Rubim mudou-se de Florianópolis para Belo Horizonte.
Aos 15 anos, um dia andava com sua avó pela rua da Bahia, centro de Belo Horizonte, quando uma exposição do Greenpeace sobre mudanças climáticas atraiu a atenção. Rubim foi conversar com o pessoal que organizava o evento e gostou do que ouviu. Pegou o contato de uma das coordenadoras e enviou um e-mail querendo se tornar voluntária. Recebeu a resposta de que o Greenpeace normalmente só trabalhava com pessoas acima de 16 anos, mas que eles iriam se reunir e avaliar o pedido. Foi aceita. Logo se tornou uma das “peacemakers”, cuja função é argumentar com policiais para que a ação se desenrole no máximo de tempo possível. “Era a pessoa da lábia”, diz, pouco antes de sugerir um rosé para o almoço.
Pouco tempo depois, prestou vestibular para direito e ingressou na PUC-MG com a ambição de fazer mestrado, tornar-se professora e trabalhar com direitos humanos em uma vertente ambiental. Tornou-se monitora e à noite garçonete. Do café veio o gosto pela precisão, pela comida e o sonho da aposentadoria: tornar-se dona de um pequeno restaurante.
A primeira experiência profissional que abriu seu horizonte foi um estágio no gabinete de um juiz federal que tinha paciência para ensinar e era perfeccionista. Quando o acompanhava nas audiências para trabalhar em minutas de decisão, Alexandre Ferreira se sentava com ela e estimulava o senso crítico. Selecionava um caso e lhe perguntava se era procedente ou improcedente, escutava e então pedia para ela fazer uma sentença alegando por que defendera suas posições.
Cursava direito, estagiava em várias funções do Judiciário e mantinha o voluntariado no Greenpeace. Em 2011, surgiu uma oportunidade: recebeu um convite para embarcar no Rainbow Warrior por dois meses, participando de uma viagem pela costa norte do Brasil, com várias paradas na região amazônica. A viagem de barco exigiu que ela tivesse de tomar a decisão de se desligar do trabalho de assessora jurídica no gabinete de um deputado estadual. Sua avó pensou que ela fosse louca. Na visão dela, era trocar a segurança de um emprego com boa remuneração por uma festa com hippies fumantes de maconha.
A rigidez da educação a fez achar que tinha de ser a neta perfeita. Não ia a festas, sentava na primeira fileira e seguia os caminhos traçados pela avó, mas decidiu que a viagem seria sua emancipação. Viajou pelo Amazonas, do encontro do rio Negro com o Solimões até Macapá. “Foi uma experiência transformadora. Dormi embarcada, conheci comunidades ribeirinhas. Vi que muitos estavam perto de grandes hidrelétricas, mas não tinham luz.”
Voltou da viagem sem emprego. Com 20 e poucos anos, assumiu a gerência de um restaurante italiano em Belo Horizonte. A pior coisa que podia acontecer era uma mesa fazer um pedido e os pratos solicitados não chegarem juntos. Se isso acontecia, pedia desculpas, levava o prato à cozinha, dava uma bronca e jogava-o no lixo. A precisão era essencial sempre. Descansava da rotina andando pela cozinha em que se preparavam as massas. Estava feliz no restaurante italiano, mas soube que o Greenpeace estava à procura de uma pessoa para ser a responsável por uma campanha de mobilidade urbana a ser lançada. Candidatou-se.
Foi escolhida e se mudou para São Paulo. Frustrou-se em pouco tempo. Alterar a realidade exigiria expor os lobbies do setor de transporte, com destaque às empresas de ônibus. Mas a ideia era ousada demais.
Soube que o Greenpeace preparava uma campanha de energia solar e se voluntariou novamente. Visitou parques eólicos no Rio Grande do Sul e painéis fotovoltaicos no interior paulista. Fez um pleito para mudar de área e trabalhar com fontes renováveis. O responsável pela área tinha tirado um período sabático e ela o substituiu no fim de 2013. Acompanhava a pauta de planejamento do setor elétrico e do Congresso. “Sempre gostei de quebra-cabeças, montava sem ter a imagem da caixa. E regulação sempre me atraiu.”
A energia solar engatinhava. Em 2012, foi publicada uma resolução que permitia a instalação de painéis fotovoltaicos em residências e indústrias, transformando a energia gerada em crédito a ser abatido nas contas de luz. Nos dois primeiros anos, cerca de 300 MW foram instalados. O idealismo por muitos anos levou-a ao pragmatismo. Com cinco anos de funcionária no Greenpeace e sete anos de voluntariado, percebeu que não se encaixava mais.
Decidiu ir para a iniciativa privada. Mudou-se para Uberlândia para trabalhar com energia solar e transição energética porque gostou da proposta que recebeu. “Sou movida por pessoas, e não livros, como minha avó diz.” Mas não se adaptou ao interior de Minas Gerais, achou a cidade machista e pequena demais. “Gosto do caos.” Pensou em uma frase dita pelo seu pai quando era criança: às vezes na vida é preciso escolher entre ser rabo de baleia ou cabeça de sardinha. Em vez de seguir, resolveu empreender, mesmo em um negócio pequeno.
Uma oportunidade surgiu ao acaso. Recebeu uma proposta da Raízen, que estava analisando investimentos em geração distribuída solar e procurava um consultor. Ela disse que fazia o trabalho, apesar de não saber nem como cobrar. Fez uma proposta que representaria seis meses de salário, suficiente para mudar para São Paulo e respirar novos ares. O valor era tão abaixo do mercado que, anos depois, soube que quase descartaram-na por acharem que os serviços seriam fracos. Com o primeiro cliente, veio a necessidade de criar o nome da empresa. Quis uma palavra estrangeira porque achava que haveria muitos investidores do exterior no setor. Bright (claridade em inglês) aliava luz às primeiras letras do seu nome e sobrenome.
Com a consultoria de regulação, em pouco tempo ingressou no quadro da Absolar. Fundada em 2013, a entidade tinha cerca de 50 associados e 4 funcionários em uma pequena sala (hoje são mais de 800 associados e 30 colaboradores). Assumiu uma das vice-presidências em 2018.
A energia solar começava a ganhar espaço, chegando a mais de 2 GW de capacidade instalada. O avanço fez o governo dar início à discussão da atualização da legislação sobre o setor que fora estabelecida em 2012, procurando debater mudanças. A ideia era reduzir o desconto dado na conexão à rede, ou seja, diminuir subsídios, o que, segundo argumento do setor, implicaria redução de investimentos para a fonte solar, que dava os primeiros passos em sua inserção na matriz. Depois de uma consulta pública aberta pela agência reguladora, foram feitas algumas alterações nas metodologias. Uma das alternativas era taxar o segmento em 28%.
O setor se articulou para criar um projeto de lei com regras básicas para a geração distribuída solar, com o objetivo de levar a discussão ao Congresso. Em 29 de setembro de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro escreveu uma mensagem em suas redes sociais dizendo que o governo pretendia instalar usinas solares em órgãos públicos. Começou uma discussão em vários grupos de WhatsApp de empresários do setor solar, avaliando que era importante aproveitar a mensagem do presidente para criar uma hashtag que pudesse ser usada em redes sociais para defender menos tributação sobre o setor.
O passado no Greenpeace ensinou Rubim que a mensagem tinha de ser simples e impactante. Em um churrasco da família, ausentou-se da mesa por alguns minutos para buscar caneta e papel. Escreveu em letras garrafais uma mensagem curta, tirou uma foto segurando a folha sulfite amarela, enviou-a pelo WhatsApp e postou em sua rede social. Em minutos, #taxarosolnao ganhou milhares de adeptos e visualizações, alcançando parlamentares e reguladores. A mobilização chegou ao Palácio do Planalto.
Em 8 de janeiro de 2020, Bolsonaro tuitou dizendo que não taxaria o sol e que os presidentes da Câmara e do Senado eram contrários à ideia da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em férias nas Filipinas, Rubim viu seu celular não parar de tocar. Teve de deixar as praias de lado e atender às ligações de jornalistas e empresários. O discurso do presidente coincidiu com o início da pandemia, o que levou a discussão regulatória a ficar paralisada.
Em vez de ser decidida pela agência reguladora, o assunto foi para o Congresso e para o Ministério de Minas e Energia. Foram dias e noites para costurar o novo marco regulatório do setor, que seria aprovado no início de 2022, com redução gradual de subsídios a partir de janeiro de 2023.
De 2019 a 2022, o setor solar foi o protagonista da expansão de fontes no setor elétrico. Em 2019, o setor solar tinha 4,6 GW de capacidade instalada. Em 2022, chegou a 24 GW (duas vezes a potência da hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo). No total, hoje é a terceira fonte de eletricidade do país, com 25 GW, sendo que de geração distribuída são mais de 1,5 milhão de instalações fotovoltaicas em residências e indústrias e 16,4 GW de potência instalada – cerca de 10% de toda a capacidade atual do país.
O crescimento, no entanto, vem com críticas de vários especialistas, por causa dos subsídios que permitem que a geração distribuída solar esteja acessível aos consumidores com maior renda per capita. A corrida para o desconto integral de conexão se esgotou em 7 de janeiro. O diretor de regulação da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee), Ricardo Brandão, destaca que de novembro a 7 de janeiro, 31 associadas da entidade receberam 32 GW de capacidade de pedidos de conexão de micro e minigeração distribuída solar, em razão do benefício. Para ter uma ideia da grandeza, a EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas) prevê que em 2032 o setor poderia chegar a 37 GW de potência instalada. Segundo estimativas da Abradee, os consumidores vão bancar R$ 270,7 bilhões em subsídios dessa leva final de projetos até 2045, período em que perdura a isenção completa pelo uso do fio.
“O que a gente vê é uma vantagem para o consumidor que tem painel solar e não paga os custos de distribuição, de transmissão, de perdas elétricas e de encargos setoriais. E a gente entende que essa conta não é sustentável. O TCU também entendeu que não é sustentável, como é regressivo, e socialmente injusto”, afirma Brandão.
Para o ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana, apesar de existir um órgão planejador do Estado para o setor elétrico, a segurança do sistema ficou a reboque dos subsídios, que estimulam a expansão desordenada de todas as fontes. “Suponha que o Sul do Brasil tenha, em 2025, 25 GW de [geração distribuída]. Se, inesperadamente, toda a região ficar sem sol por duas horas entre 11h e 15h, não há, hoje, uma forma planejada para resolver o problema”, diz.
O sucesso da criação da hashtag abriu os olhos de Rubim para a importância das redes sociais. Hoje são mais de 40 mil seguidores. Em um domingo de manhã de dezembro, quando fez um aulão online sobre os desafios do setor elétrico em 2023, 2.400 pessoas assistiram ao vivo à sua apresentação. Quando se discutem projetos relevantes no Congresso, ela comanda lives em seus canais comentando sobre o processo legislativo, os votos dos deputados e o trâmite das propostas. “É uma forma de os seguidores marcarem parlamentares e fazer a pauta ficar na ordem do dia. Em algumas vezes, deputados pedem para a gente parar de marcar por conta da enxurrada de mensagens que as pessoas enviam.”
Quando viaja a Brasília, faz vídeos mostrando da chegada dos processos no Congresso às salas em que as comissões se reúnem, explicando como funciona a votação dos projetos. Nas reuniões com ministros, mostra aos seguidores a fachada dos ministérios, a portaria. A ideia agora é apresentar ao novo governo um plano para que o país alcance 5 milhões de instalações fotovoltaicas em quatro anos, o triplo do montante atual, e levar a energia solar a milhares de residências de baixa renda, em um programa batizado de “Sol para Todos”.
Discutir megawatts é assunto árido e técnico, com efeito direto sobre o bolso de todos os brasileiros. Usar as redes sociais é novidade em um segmento acostumado a conversas restritas por quatro paredes. “Tudo é muito mistificado, eu busco mostrar como funciona o poder. Minha geração é da rede social, nasci com ela. O setor fala muito que defende o consumidor, mas não fala com ele e nem ouve. O porta-voz precisa falar o mais próximo das pessoas”, diz Rubim, que nasceu em 1989.
Ela brinca que o celular é mais poderoso que a caneta e mantém sempre um de reserva, caso o aparelho principal quebre ou seja furtado. E ainda se garante com uma terceira redundância: o backup do seu iPad. Só ela tem as senhas de sua rede social e faz questão de dedicar cerca de uma hora diária para responder pessoalmente aos seus seguidores.
Rubim dorme quatro horas por dia e vive a ansiedade de quem acorda conectada. “Se eu paro um dia, recebo um monte de mensagem perguntando se estou bem. Acordo postando e falando do meu dia a dia e também do setor”, afirma ela, que chega a publicar 30 stories por dia, do passeio matutino com o cachorro às pautas regulatórias de energia elétrica. A cada 15 dias vai passar um fim de semana em Campos do Jordão, na casa adquirida no ano passado. Aí a rotina de trabalho cai para 12 a 15 horas diárias. Além das tarefas na associação que reúne empresários do setor solar, ela se divide entre o comando de suas duas empresas: a Bright Strategies, sua consultoria, e a Lumi, que faz o processo de inteligência e auditoria de gestão de parques solares.
O calor do verão paulistano fez com que ela dispensasse o terninho cor creme. A fotógrafa Silvia Constanti pergunta a razão de uma das suas oito tatuagens, na qual se destacam coordenadas geográficas. Era o endereço do apartamento em Florianópolis em que ela, a mãe e o irmão Thiago moraram alguns anos durante a infância. Naquela quarta-feira da entrevista, seu irmão completaria 37 anos. Morreu nos primeiros dias de janeiro de 2015, em um acidente de trânsito próximo à serra de Xanxerê, em Santa Catarina, no retorno de um show da banda Los Hermanos em Curitiba. Dias depois, ele prestaria concurso de assistente social em Florianópolis.
A notícia do acidente foi recebida de um amigo, surpreendido pelo nome e sobrenome da vítima. Ela ligou dezenas de vezes para a Polícia Rodoviária Federal para checar a informação, que não mudou. Não conseguia acreditar. Thiago e Arnaldo, amigo que também prestaria concurso, tinham dormido a noite anterior em um hotel para não pegarem a estrada de madrugada. Não bebiam. Ela conta com os olhos marejados que nunca se esquecerá das horas em que teve de ir à funerária para reconhecer o corpo e escolher o caixão em que o irmão foi enterrado. Sem dinheiro, o corpo foi para uma vala comum. Dias depois, foi atrás do boletim de ocorrência para entender o acidente. Entrou em contato com Anna, irmã de Arnaldo, que também não compreendia. Meses depois do contato, Anna enviou uma mensagem para Rubim. Tinha sonhado que os dois tinham desviado na estrada para não atropelar um cachorro. “Não sei se vocês acreditam em espiritismo, mas me deu um certo alívio”, diz, enxugando as lágrimas.
Pensará no irmão em julho, quando irá tirar duas semanas de férias para viajar à Itália com a avó paterna, Rosa Maria, para verem juntas um show de Andrea Bocelli em Lajetico, na Toscana, a comuna natal do tenor. As músicas de Bocelli fizeram parte de sua vida, sempre tocadas à exaustão pela mãe de seu pai. Há mais de dez anos, foram juntas a um show em Belo Horizonte. A avó achou que assistiria ao show da primeira fileira, mas terminaram em uma distante arquibancada do estádio Mineirão. Voltaram de ônibus. Brincando, a avó disse que mesmo se tivesse binóculo não teria conseguido ver bem o concerto. Anos depois, assistiram a um show em Brasília, dessa vez na primeira fileira.
No natal de 2022, Rubim deu à avó um envelope. “Você está me dando um papel de presente?”, ela questionou. “É, vó, é um cartão.” A neta pediu para que abrisse, à espera do sorriso da avó ao dar com os ingressos de primeira fila para ver o tenor no teatro do silêncio, na cidade em que Bocelli nasceu.
Rubim olha o relógio discretamente. São três da tarde. Ela pede licença, porque tem reunião marcada para a tarde. A vida continua.
Por Roberto Rockmann
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