Renegociação de dívidas volta à cena com alta da inflação
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Dados do Banco Central mostram que o endividamento das famílias está na máxima histórica de 49,7% da renda
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Neste cenário, você deve avaliar se é o caso de refinanciar contratos ou pedir alongamento de prazos e redução no valor das prestações
Empresas citadas na reportagem:
O Santander anunciou na noite de ontem uma ampla campanha de renegociação de dívidas. Além do aperto típico do começo de ano, quando despesas como IPVA, IPTU e compra de material escolar costumam pesar no bolso dos brasileiros, o banco começou a perceber que a inflação e os desdobramentos da pandemia estão afetando a capacidade de pagamento de seus clientes.
Outras instituições financeiras também fizeram programas desse tipo. Alguns são mais abrangente, e outros, mais direcionados aos clientes que já estão em dificuldades. Dados do Banco Central mostram que o endividamento das famílias está na máxima histórica de 49,7% da renda e, com a previsão de que a economia crescerá somente 0,28% neste ano (projeção da pesquisa Focus), o mercado de trabalho não deve ter grande melhora.
“Um conjunto de indicadores mostra que tem menos liquidez na economia. A gente começa a perceber mais dificuldade dos clientes de ficar em dia com seus contratos”, afirma, em entrevista ao Valor, Vanessa Lobato, vice-presidente executiva que assumiu recentemente a área de varejo do Santander.
Sem abrir números, Lobato diz ainda não ver uma piora na inadimplência, que contrariou as expectativas e até caiu durante a pandemia. O objetivo do banco, segundo a executiva, é mostrar ao cliente que ele terá apoio se precisar. Batizada de “Desendivida”, a campanha do Santander é voltada a pessoas físicas e jurídicas, em atraso ou não. A divulgação envolve mídia tradicional, redes sociais e os canais do banco. As peças serão estreladas pelos ex-BBB Dhomini, Max Porto e Rodrigo Caubói, que não souberam administrar bem o dinheiro que ganharam no reality show.
Os clientes do Santander poderão acessar a renegociação por meio do internet banking, do aplicativo e também da rede física. No próximo sábado, dia 22, haverá uma espécie de mutirão nas agências para aqueles que preferirem o atendimento presencial. O objetivo, segundo Lobato, é que a conversa seja individualizada.
Refinanciamento de contratos, alongamento de prazos e redução no valor das prestações são algumas possibilidades. Pular uma ou duas mensalidades também será uma opção. Mas, diferentemente do que ocorreu nas negociações feitas durante a pandemia, desta vez não há compromisso do banco de manter as taxas dos contratos originais. Os juros poderão ser revistos e os termos finais serão decididos caso a caso, mas, em um momento de alta da Selic, não estão descartadas revisões de taxas para cima. De acordo com a executiva, a intenção é dar um alívio momentâneo ou fazer com que as prestações voltem a caber no orçamento.
“Janeiro é sempre mais pesado nas contas e a gente vem de dois anos de pandemia, não estamos em um boom econômico e ainda tem o tema da inflação elevada. Tudo isso, combinado com um endividamento maior das famílias brasileiras, pressiona a renda final”, afirma Lobato.
Como o Santander está no período de silêncio antes da divulgação dos resultados do quarto trimestre, ela não dá detalhes sobre a inadimplência nem sobre o volume que a instituição espera renegociar. No entanto, diz que tem notado uma liquidez menor dos clientes. O banco fechou o terceiro trimestre de 2021 com inadimplência (atrasos acima de 90 dias) de 2,4%, vindo de 2,2% em junho e 2,1% no fim de março. A inadimplência de curto prazo (15 a 90 dias) foi de 3,4%, vindo de 3,3% e 3,6%, respectivamente.
O segmento de pessoa jurídica também será contemplado pela campanha. A executiva lembra que pequenas e médias empresas (PMEs) foram as mais impactadas pela pandemia, especialmente em alguns setores. “As pequenas empresas são mais afetadas, até mesmo pela inflação, porque muitas vezes não conseguem repassar tudo para o consumidor. Então, elas estão estão remando para conquistar seu espaço”, afirma.
Mesmo sendo possível aderir à renegociação pelos canais digitais, Lobato diz que a agência física ainda tem um papel muito importante – por isso a decisão de abrir os pontos de atendimento no sábado. “O valor da loja é muito claro para a gente, ela tem muita relevância para uma grande parte da população. Talvez a loja sozinha não faça mais sentido, mas a força do banco na relação com o cliente está na combinação de canais”, afirma.
Em 12 meses até setembro, o Santander teve uma redução líquida de 139 agências, mas a vice-presidente explica que o banco tem aberto unidades no interior. “Abrimos 120 agências em 2021 e vamos abrir outras 120 em 2022. O Brasil ainda tem muitas áreas com baixa bancarização.”
Campanhas de renegociação de dívida sempre foram feitas pelas instituições financeiras em momentos mais delicados. No entanto, com os aprendizados trazidos pela pandemia e novas tecnologias, essas operações se tornaram mais sofisticadas e passaram a antecipar melhor as tendências de comportamento.
Desde o início da crise trazida pelo coronavírus, os bancos brasileiros renegociaram 18,7 milhões de contratos, que totalizam R$ 1,1 trilhão em saldo devedor, segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Em novembro do ano passado, um mutirão realizado em parceria com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), o Banco Central e o Procon repactuou 1,7 milhão de operações. Já o Feirão Limpa Nome, da Serasa, teve de ser prorrogado em função da grande procura. Finalizado em 20 de dezembro, resultou na renegociação de quase 4 milhões de contratos, com mais de R$ 10 bilhões concedidos em descontos de multas e juros.
Nos últimos meses do ano passado, outros grandes bancos adotaram a estratégia de promover campanhas de renegociação de dívida. A Caixa lançou o programa “Você no Azul”. A iniciativa terminou em 30 de dezembro e ainda não há um balanço definitivo, mas em um dado parcial o banco disse que atingiu um recorde de 400 mil contratos, relativos a mais de 300 mil clientes, com R$ 3 bilhões em dívidas liquidadas.
O Banco do Brasil (BB) também realizou um mutirão de renegociação de dívidas em dezembro, em que foi possível abordar a situação financeira de mais de 285 mil clientes. “É importante destacar que o BB sempre está disponível para encontrar uma solução para os clientes com dívidas em atraso”, afirma o banco em nota.
O Itaú, que criou uma diretoria de crédito e cobrança na pandemia, diz que trabalha com condições especiais de renegociação via canais digitais, incluindo ofertas e descontos personalizados para pessoas físicas com dívidas no banco ou relacionadas aos cartões de parceiros. Há ainda um canal de atendimento pelo WhatsApp, exclusivamente criado para clientes que desejam renegociar dívidas e antecipar parcelas de empréstimos.
Alexandre Borin, diretor de recuperação do varejo, enfatiza que não se trata de um canal de cobrança. O objetivo é oferecer opções sob medida para cada cliente, de maneira remota. “Queremos facilitar o acesso às melhores ofertas para a reorganização financeira de nossos clientes, criando uma agenda viável de pagamentos para cada caso. Para tanto, analisamos e entendemos a situação do cliente e buscamos as soluções customizadas mais adequadas. A ideia é incentivar a renegociação inclusive entre os adimplentes, antes de sua situação financeira se tornar crítica e gerar restrições que dificultem o acesso a novos créditos.”
Mesmo as instituições financeiras que não lançaram campanhas estão agindo proativamente. No Bradesco, por enquanto não há planos de criação de um programa amplo, com publicidade, mas o banco tem usado ferramentas de dados para oferecer soluções aos clientes quando detecta sinais de alerta. Segundo fonte próxima à instituição, dependendo da inflação e da evolução dos indicadores de emprego e da covid-19, a situação pode ficar mais crítica a partir da segunda metade do ano. Procurado, o banco disse apenas que “está sempre aberto à renegociação com seus clientes e realiza análise caso a caso com o objetivo de encontrar a alternativa mais adequada para que o cliente continue adimplente”.
Flávio Calife, economista-chefe da Boa Vista, lembra que a inadimplência caiu na pandemia, com as postergações oferecidas pelos bancos e o auxílio emergencial, mas voltou a subir de maneira gradual na segunda metade de 2021 – e o cenário para este ano não é dos mais animadores. “O auxílio diminuiu e tem um público bem menor, temos um aumento no no endividamento das famílias e a inflação compromete ainda mais a renda disponível, então o cenário não é muito favorável.” Ele aponta que, nesse contexto, o emprego se torna uma das variáveis mais importantes, e que atualmente a tendência é de melhora bem lenta, mas é difícil prever o que vai acontecer ao longo do ano.
O número de registros de inadimplentes subiu 4,1% na comparação mensal dos dados dessazonalizados entre os meses de outubro e novembro, de acordo com informações da Boa Vista. Enquanto isso, o indicador de recuperação de crédito recuou 2,9%. “A tendência de elevação na taxa de inadimplência das famílias com recursos livres pode seguir com seu ritmo de aumento gradual nas próximas aferições”, diz a companhia. Diferentemente dos dados do BC, que medem a inadimplência no sistema financeiro, o indicador da Boa Vista é elaborado a partir da quantidade de novos registros de dívidas vencidas e não pagas informados pelas empresas credoras.
Matheus Moura, gerente da Serasa Experian, lembra que todo começo de ano é difícil e o ideal seria o cliente usar o 13º salário para pagar IPTU, IPVA, escola dos filhos e outros gastos típicos dessa época. “Este ano especificamente tem dois fatores que estão preocupando bastante: a inflação e a pandemia. Mesmo que estejamos em um estágio diferente, com indícios que a ômicron seja mais leve, há um medo do que vem por aí, se teremos novos lockdowns, se as pessoas vão perder suas fontes de renda. Então 2022 sem dúvida está mais desafiador”, afirma.
Moura diz que o primeiro passo para quem está endividado é fazer um diagnóstico dos débitos, depois avaliar sua renda para saber quanto cabe no orçamento. Na sequência, deve procurar renegociar suas dívidas, já que, logo que paga a primeira parcela do novo acordo, seu nome deixa de ficar negativado e, assim, ele inclusive tem acesso a crédito. “Sempre vemos no começo do ano um movimento maior no mercado de crédito, de pessoas que precisam de dinheiro para compor a renda e arcar com os gastos desse período.”
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