Teto da dívida dos EUA: governo americano pode dar calote?

Em meio a rumores sobre a ideia de a maior economia do mundo dar um calote em seus credores, cabem esclarecimentos. Entenda a questão
Pontos-chave:
  • Em janeiro, os Estados Unidos atingiram o seu limite máximo de endividamento, que atualmente é de US$ 31,4 trilhões
  • Em fevereiro, a agência que produz análises orçamentárias para o Congresso projetou que o Tesouro americano ficaria sem fundos entre julho e setembro de 2023
  • No dia 9 de maio, houve uma reunião entre o presidente Biden e os líderes da Câmara e do Senado, que terminou sem uma solução
  • O clima de aversão a risco e incerteza catalisou a demanda por ativos considerados seguros

Nos últimos dias, vieram à tona manchetes e discussões sobre um tema que, por mais que não seja novidade, pode pegar alguns investidores de surpresa e gerar preocupação: a ampliação do teto de endividamento (debt ceiling, na expressão em inglês) americano.

Em meio a muitos rumores e algumas informações desencontradas, cabe aqui alguns esclarecimentos para o melhor entendimento da situação.

O que é ‘teto da dívida dos EUA’ ou ‘debt ceiling’?

A expressão ‘teto de dívida’ ou ‘debt ceiling‘ nada mais é do que uma restrição de quanto o governo federal dos EUA pode tomar emprestado, seja para pagar suas contas ou para investir em projetos futuros.

O Congresso dos EUA é a instância que aprova ou define o orçamento. Já o Tesouro é o orgão que executa o orçamento, fazendo os pagamentos de contas e/ou emissão de dívida nacional. A dívida nacional corresponde ao montante de dinheiro que o governo federal já tomou emprestado para cobrir despesas pendentes em exercícios fiscais anteriores.

Um pouco de história

A importante ideia de orçamento e controle de gastos nos EUA não é nova. O tema da responsabilidade fiscal já existia desde 1788, com a figura do Congresso tendo que aprovar emissões de dívida do Tesouro americano.

No entanto, em 1917 por meio do Second Liberty Act, os EUA deram liberdade para o Tesouro americano emitir dívidas sem que fosse necessária a aprovação do Congresso, mas até um determinado teto (debt ceiling) para essa dívida.

Já em 1941, acontece a primeira elevação de teto de gastos, naquele momento, para até US$ 65 bilhões. Como disse, não é algo novo e, ainda que não haja um número exato, entende-se que o os EUA já elevaram o seu teto de dívida pelo menos 90 vezes ao longo do século 20.

A partir de 1995, contudo, começam a acontecer embates mais frequentes relacionados à ampliação do teto da dívida. Durante o governo Bill Clinton, em 1995, os congressistas republicanos, representados pelo então presidente da Câmara Newt Gingrich, se recusaram a aumentar o teto da dívida, forçando uma negociação com o governo Clinton, para que cortasse cortes. O presidente Bill Clinton se recusou a fazer os cortes e isso levou à paralisação do governo. Até que, posteriormente, se chegou a um acordo com modestos cortes de gastos e alguns aumentos de impostos.

Evolução nos EUA do teto de dívida

De lá para cá, tivemos impasses semelhantes nos EUA em 2011, 2013, 2015 e 2019. Em alguns episódios, com suspensão temporária de serviços do governo, até que se chegasse a um novo acordo. Existe certa normalidade nas discussões sobre o teto de endividamento na medida em que o país cresce e que os valores nominais mudam ao longo dos anos em função da inflação.

O que é diferente agora?

Em fevereiro de 2023, o Congressional Budget Office (agência independente do governo dos EUA que produz análises econômicas para apoiar o processo orçamentário do Congresso) projetou que o Tesouro americano ficaria sem fundos entre julho e setembro de 2023, a menos que o teto da dívida fosse aumentado. Em janeiro deste ano os Estados Unidos atingiram o seu limite de endividamento de US$ 31,4 trilhões.

Dado que o Tesouro americano não pode ultrapassar o teto de endividamento, ele se limita a fazer novas emissões de dívidas e tem tomado medidas extraordinárias, usando a chamada Treasury General Account, que permite ao Tesouro pagar as despesas do governo até que se resolva essa situação.

O problema é que os recursos dessa conta estão se exaurindo.

No dia primeiro de maio, a secretária do Tesouro, Janet Yellen, informou ao Congresso que o governo poderia ficar sem dinheiro para honrar seus compromissos caso não se chegue a um acordo sobre o assunto.

Segundo Yellen, não aumentar o teto da dívida teria “consequências econômicas catastróficas”, provavelmente resultando em uma crise financeira.

Temos visto certa tolerância do mercado com o fato, baseado na crença de que, no limite, essa questão será resolvida.

A racionalidade política é diferente

No entanto, a racionalidade política é diferente e muito menos previsível que a racionalidade econômica. Logo, considerando a maior polarização do clima político atual e o fato de que os EUA passarão por uma eleição no ano que vem, temos visto uma maior dificuldade para resolver tal questão. O balanço de poder nos EUA está dividido, com os democratas tendo maioria no Senado, mas não na Câmara.

Os republicanos exigem contrapartidas orçamentárias para aprovar um novo aumento de limite de gastos. Já o presidente Biden e seu partido democrata sustentam a posição de uma elevação sem contrapartidas.

No dia 9 de maio, houve uma reunião entre o presidente Biden e os líderes da Câmara e do Senado. Em seu discurso, o presidente Biden foi enfático em dizer que o ‘default’ (calote) não é uma opção. No entanto, o líder republicano e da maioria no Congresso afirmou que não houve avanço nas negociações.

No limite, o presidente Biden poderia fazer uso da 14ª Emenda Constitucional, que basicamente diz que a dívida pública americana é “sagrada”. Logo, não pode ser questionada. Obviamente, que seria uma decisão unilateral que provavelmente geraria inúmeras contestações judiciais e uma maior polarização política.

Controle fiscal

A questão maior que se coloca aqui é a necessidade de controles fiscais que tornem tal dívida administrável. Esse é o cerne do embate atual. Ou seja, assegurar que, ainda que se aumente o teto, haja a manutenção do controle e responsabilidade fiscal.

O importante nesta discussão é atentar que o endividamento americano como proporção do PIB veio aumentando ao longo de anos, e que o embate sobre o controle de gastos é pertinente.

O que pode acontecer caso na se chegue a um acordo?

Caso não se chegue a um acordo sobre o teto de dívida, o governo federal não poderá aumentar mais sua dívida. Sendo assim, o Tesouro pode usar medidas extraordinárias autorizadas pelo Congresso para administrar as finanças do governo federal. Essas medidas podem incluir a paralisação de serviços prestados pelo governo, bem como interromper o pagamento de juros da dívida.

Se o Departamento do Tesouro não for capaz de realizar novas emissões para “rolar” sua dívida, os EUA podem deixar de pagar seus empréstimos e sua classificação de crédito tenderia a ser rebaixada.

Isso aconteceu em 2011, quando os republicanos no Congresso exigiram reduções do déficit para aprovar um aumento no teto da dívida e o impasse fez com que os EUA perdessem seu triplo A com a Standard & Poor’s, rebaixando a classificação dos títulos de dívida americano – uma classificação mantida por mais de 70 anos.

E o mercado?

É sempre muito difícil estimar movimentos de curto prazo do mercado. Na bolsa americana, tomando como proxy o ano de 2011, vimos que o ruído acerca da questão do endividamento nos EUA gerou certo estresse no mercado no curto prazo – tal qual temos visto atualmente com a recente apreciação do CDS (Credit Default Swap, derivativo de crédito que oferece ao comprador proteção contra inadimplência e outros riscos). O índice S&P500 chegou a ter uma queda de 17% durante o período, ainda que recuperando as perdas ao longo do ano.

Já no caso dos Treasuries, os títulos do Tesouro americano, vimos as taxas cedendo. Ainda que possa parecer contraditório, o clima de aversão a risco e incerteza catalisou a demanda pelos títulos de dívida americanos, gerando a queda nos rendimentos e refletindo um movimento de busca por ativos considerados seguros.

Conclusão

A questão do limite de endividamento americano não é algo novo e tem sido presente nos últimos anos nas esferas econômica, política e de mercado.

Trata-se essencialmente de um problema político e não econômico, à medida que não houve redução de demanda por títulos de dívida do Governo americano e sim um impasse frente ao limite da capacidade do Governo em expandir seu endividamento.

Não há como prever um desfecho, mas considerando os efeitos e olhando o histórico, acredito ser razoável supor que haverá uma solução para tal impasse sem que cheguemos a consequências mais catastróficas. No limite, existe a possibilidade do presidente Biden usar a 14ª Emenda Constitucional.

Ainda assim, até que cheguemos a um desfecho penso que a volatilidade e incerteza tendem a seguir impactando os mercados. E, portanto, impactando você, investidor.