“Planejador financeiro deve ser olhado como um médico da família”, diz Osvaldo Cervi, da Planejar

Executivo fala sobre a evolução do mercado, atuação do profissional e mostra os próximos desafios

Profissional que pode ser classificado como o ‘médico da saúde financeira’, o planejador financeiro pode analisar investimentos, questões sucessórias, seguros, aposentadoria e assuntos fiscais. Essa visão holística vem atraindo a atenção do mercado. Apenas em 2022, o aumento do número de profissionais certificados no Brasil foi de 16,9% em relação ao ano anterior.

O avanço alçou o país à posição do terceiro que mais cresceu nominalmente no ranking global da certificação CFP (certificação internacional que prepara o profissional para o exercício da atividade), perdendo apenas para China e Estados Unidos. É o terceiro ano consecutivo no qual o crescimento está na casa de dois dígitos.

Mas o número desses profissionais no país ainda é muito baixo ante o seu potencial: são 8,6 mil para uma população de cerca de 220 milhões de habitantes. Para efeito de comparação, em países com economia avançada, como os Estados Unidos, existem 100 mil planejadores.

É o que aponta Osvaldo Cervi, vice-presidente da Associação de Planejamento Financeiro (Planejar), responsável por aplicar a prova e manter a certificação CFP no Brasil. O executivo tem 38 anos de experiência no mercado financeiro brasileiro, especialmente nos segmentos de varejo e atacado bancário. Foi diretor do private banking do Banco do Brasil e presidente da Alelo.

Cervi fala sobre o que está por trás da evolução do mercado, tira as dúvidas sobre a atuação do profissional e mostra os desafios para o futuro. Acompanhe abaixo a entrevista:

O número de pessoas interessadas em se certificarem como planejadores financeiros vem crescendo. A que se deve esse interesse?

Há um crescimento importante do endividamento famílias brasileiras, que começou no primeiro governo Lula e atinge níveis preocupantes. Atualmente, quase 70% das famílias estão endividadas. Isso reduz o consumo e leva a classe média a uma frustração cada vez maior, pois percebe que comprometeu sua renda mais do que devia. Como resultado, há um enorme interesse sobre como se organizar financeiramente.

O crescimento da concorrência no mercado financeiro também ajuda a estimular esse interesse por profissionais certificados. Não apenas grandes bancos de investimento, mas corretoras que usam mais tecnologia e têm negócios com modelos digitais começam a ver valor neste serviço.

Os bancos estão tornando seus funcionários do private banking e os que trabalham com clientes de alta renda em planejadores financeiros. Por quê?

Para atender um cliente mais exigente, mas também preencher uma lacuna na formação do profissional brasileiro. É um desafio selecionar profissionais, e a certificação não apenas qualifica, mas ajuda na identificação desses profissionais.

A certificação exige no mínimo 100 horas de estudo. Isso demanda, além de conhecimento profundo sobre o tema, características valiosas para qualquer profissional, como compromisso, organização e disciplina. Quanto mais empresas entendem esse valor, mais incentivam seus profissionais a se certificarem.

Antes relegado a clientes do private banking, atualmente já é possível encontrar planejadores financeiros certificados nas unidades de alta renda dos bancos e em seguradoras, corretoras, escritórios de consultores e assessores de investimentos, plataformas digitais e também entre corretores de seguros.

Caminhamos para um mercado evoluído como os Estados Unidos?

Todo desenvolvimento de produto ou serviço de qualidade se inicia em um grupo seleto. São pessoas que pagam pela inovação. Mas, com o passar do tempo, é possível obter escala. Com o serviço de planejamento financeiro isso não é diferente. No varejo bancário muitos profissionais começam a aspirar a certificação, que era algo limitado ao private banking.

A Planejar está no Brasil desde 2000 e o número de profissionais certificados cresceu mais somente a partir de 2018 porque o mercado demorou para entender o valor da certificação. Os bancos focaram nas certificações obrigatórias pela regulação, como CEA e CPAs. A certificação CFP não é regulatória, mas, sim, uma distinção, um diferencial.

A economia brasileira acompanha com atraso a americana. A cada três americanos, um tem assessoria financeira, e temos convicção de que isso vai acontecer aqui também. Um passo importante foi a sensibilização do governo federal para que o MEC considere a educação financeira uma disciplina transversal nas escolas.

Vemos movimentos de plataformas que reúnem esses profissionais. Qual o papel delas para democratizar o serviço?

Atualmente, o valor do serviço é de R$ 700 por mês, em média. Mas é necessário encarar o profissional como um professor de piano: ele vai te ensinar, mas se você se dedicar, depois de um ano estará qualificado para cuidar de suas próprias finanças. É como ter um tutor.

Contudo, em 10 anos acreditamos que a classe média e baixa poderá ter acesso a esse tipo de serviço também. Uma orientação básica, realizada online, poderá custar R$ 40. Será possível interagir com o avatar do planejador, que dará soluções. Mas, quando falarmos sobre alocar investimentos e contratar seguros complexos, o serviço custará mais.

Existem plataformas de planejadores financeiros, como a N2 e a Super Rico, que buscam democratizar essa consultoria. A tecnologia vem permitindo criar plataformas que conectam profissionais a clientes.

Como fica o conflito de interesse do planejador brasileiro, visto que a maioria ainda atua dentro dos bancos?

O sistema de vender produtos está entrando em colapso. As plataformas foram importantes para a democratização dos investimentos. Contudo, o profissional não pode trabalhar otimizando seus próprios rendimentos, e não o dos clientes. Esse processo de refinamento está acontecendo porque o investidor consulta e busca informação. Se sai prejudicado, denuncia e viraliza. As instituições financeiras sabem que isso pode ser muito prejudicial para a sua reputação.

A ponta mais desafiadora disso será os influencers. Esses profissionais têm o hábito de tratar com simplicidade coisas que não são triviais. Temos historicamente cerca de 90 casos de indícios pirâmides financeiras no país. No ano passado, o número subiu para 175. Se uma instituição financeira lesa o cliente, a CVM pede reparação. Mas se um influencer lesa o cliente, isso complica. Por isso, há um esforço da CVM em regulamentar a atuação desses profissionais.

Em 20 anos, esperamos que metade dos planejadores financeiros no Brasil atuem fora das instituições financeiras, como profissionais independentes. Nos Estados Unidos, 2/3 são profissionais independentes. Não achamos que isso acontecerá no Brasil porque não temos economia consolidada. Além disso, o brasileiro tem medo de sair de um grande banco.

Qual é o trabalho do planejador financeiro?

A primeira coisa que o planejador faz, que está na essência de uma boa organização financeira, é dar ao cliente clareza de quanto ele ganha e gasta. Ao mesmo tempo, ele avalia como pode melhorar sua renda e gastar melhor o seu dinheiro.

As pessoas se surpreendem com o que gastam. No mínimo, costumam consumir 150% do que pretendem. Isso deixa claro que não têm controle sobre despesas, e ninguém parar para pensar como pode melhorá-las.

Podemos olhar o planejador como um clínico geral, um médico de família. Procuramos especialistas de saúde, mas dificilmente buscamos isso em relação às finanças. Após entender o histórico e vida financeira do cliente, o planejador irá sugerir a solução mais adequada.

Ele não é um corretor, mas coloca o cliente em contato com uma corretora que presta bons serviços. Seu interesse é fazer o melhor para o cliente. Nos Estados Unidos cada planejador tem uma carteira de clientes, que tem valor, e atua como um pequeno banco. Quando ele ganha a confiança do cliente, irá fidelizá-lo. Até que irá se aposentar e venderá a carteira para outro profissional no qual confia.

Tive mil clientes, mas 60 se mantiveram comigo e desejam que cuide da finanças dos filhos também. O boca a boca é muito importante para esse profissional.

Qual é a principal dúvida sobre a atuação do planejador?

Começamos há três anos uma pesquisa anual para testar o nível de conhecimento do brasileiro sobre esse serviço. O resultado foi que 80% diz realizar um planejamento financeiro. Mas, quando perguntamos por quem são assessorados, apontam familiares e amigos. Então, eles não fazem um planejamento financeiro, de fato.

Os brasileiros tomam decisões financeiras conversando com um pai, irmão ou tio. Acreditam que são pessoas experientes mas, na verdade, eles também têm conhecimento raso sobre o assunto.

Todo mundo, do dia para a noite, resolveu falar sobre como lidar com dinheiro na internet sem ter a qualificação adequada para isso. É a mesma coisa que um amigo indicar um remédio para você melhorar. Você vai submeter a sua saúde a ele? Não preciso dizer que é algo contraindicado.

Na prova de certificação para planejadores financeiros, apenas 15% dos candidatos são aprovados. Esse rigor deve aumentar diante do alto interesse?

Estamos qualificando a prova. Se cresce o interesse, passou a ser um baita negócio preparar as pessoas para o exame. Isso tende a criar um processo de decorar questões.

A prova está em constante evolução para manter o seu rigor. A forma que encontramos para isso é ampliar substancialmente o banco de questões. No ano passado oferecemos três exames, com 420 perguntas novas.