Como era o Brasil antes do Plano Real? Entenda por que medidas anteriores não deram certo

Economistas e ex-ministro explicam porque medidas anteriores ao Plano Real não controlaram a hiperinflação

É comum presidentes exigirem da população uma espécie de cobrança para com a própria administração. No Brasil, na década de 1980, esse papel era das donas de casa: mães e esposas conhecidas popularmente como ‘fiscais’ do presidente José Sarney durante seu mandato entre 1986 e 1989.

O dever não oficializado era, na verdade, o de denunciar qualquer comerciante que acumulasse estoques e segurasse produtos em meio a um cenário de inflação localizada em três dígitos e de falta de alimentos nas prateleiras dos supermercados.

Esse era um dos vários retratos da vida no Brasil antes da implementação do Plano Real.

Em menos de quatro anos, várias tentativas de estabilizar a economia do país foram realizadas por diferentes ministros da Fazenda em dois mandatos presidenciais. A Inteligência Financeira entrevistou economistas, um ex-ministro e gente comum, todos viveram na época, para entender porque os planos anteriores ao real falharam.

A vida no Brasil antes do Plano Real

O Brasil viveu o que economistas chamam de ‘a década perdida’ entre 1980 e 1990.

Durante e após o fim do regime militar, em 1985, o país convivia com altos níveis de inflação e baixo crescimento: em 1980, o Índice de Preços Amplos ao Consumidor fechou o mês de janeiro em 115,70%, segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A década marcou a economia brasileira com a pior recessão até 2016, afirma Claudio Considera, coordenador de pesquisa do FGV Ibre. “Entre 1981 e 1983, o PIB caiu 7%, a pior recessão da história até aquele momento”, lembra.

A inflação de três dígitos, na prática, provocava uma corrida aos supermercados, o que por sua vez levava à falta de alimentos.

Do outro lado do balcão, comerciantes tinham o hábito de guardar dinheiro fora da conta bancária para se prepararem para o pior na economia.

Na Mooca, bairro italiano tradicional de São Paulo, o imigrante italiano Pascoal Carillo escondia notas no fundo do gaveteiro de sua padaria.

Na época, o pequeno Guilherme Carillo observava o dia a dia da padaria ao lado do avô e da mãe.

“Lembro também de como minha mãe reclamava muito de como o preço das coisas subia, justamente quando ela fazia a compra do mês”, diz.

O avô Pascoal deixaria uma lembrança do acúmulo aos neto: um amontoado de notas de cruzeiros e cruzados. Guilherme transformou as notas em um retrato que guarda no fundo da padaria Carillo.

Guilerme Carillo ao lado da coleção de notas de cruzeiros e cruzados do avô, Pascoal Carillo. Foto: Pedro Knoth/Inteligência Financeira

A colagem de notas antigas é, na verdade, um retrato do maior quebra-cabeça da histórica da economia brasileira: como espantar o fantasma da hiperinflação brasileira.

Plano Cruzado: primeiro combate contra a inflação inercial

A inflação da década de 1980 tinha um componente inercial. Ou seja, a alta de preços a partir de um patamar de hiperinflação não era remediada por medidas de política monetária tradicionais, como hoje.

A inflação inercial ocorre quando os preços são indexados à expectativa de alta desses preços de um dia para outro. Assim, era comum que empresários subissem valores a cada choque de oferta que justificasse levantar o custo de um produto por mais tempo. E quando um concorrente elevava o preço, outros eram obrigados a fazer o mesmo se quisessem manter a participação no mercado e na renda dos brasileiros.

Ao piso da academia, a inflação inercial era um bicho de sete cabeças para qualquer economista da época. Ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega lembra que as mentes mais ativas da economia brasileira debatiam “duas soluções” para a hiperinflação.

“A primeira era um congelamento de preços, salários e contratos que teria duração de um ano, durante o qual não poderia haver reajuste com base na inflação passada. Acreditava-se que esse período de um ano era suficiente para começar a mudar a cultura de indexação”, afirma o sócio da Tendências Consultoria à Inteligência Financeira.

Ao anunciar a implementação do Plano Cruzado, em 1985, o presidente da república na época, José Sarney (MDB), foi enfático ao pronunciar “a criação de uma nova moeda” para substituir o cruzeiro.

O Plano Cruzado consistia no congelamento de preços de varejo e administrados, como gasolina, passagens aéreas, além de salários e contratos.

O cruzado obteve uma vitória pírrica contra a inflação. Em março de 1986, mês em que o plano foi implementado, a medida levou a inflação média de 12 meses de 320% a 74%. No mês seguinte, ela foi a 9%.

A festa do plano, contudo, não durou muito.

Fracasso do Plano Cruzado e corrida aos bois

Em maio de 1986, a inflação voltou para a casa de dois dígitos. O Plano Cruzado via os efeitos do congelamento de preços na veia dos supermercados. A paralisação de repasses levou a um aumento de demanda que não foi acompanhado no mesmo ritmo pela oferta.

Maílson lembra que, na época, era uma brincadeira comum entre economistas dizer que “a demanda subiu de elevador, e a oferta de escada”.

“E as duas nunca vão se encontrar”, prossegue.

O outro grande problema oriundo do Plano Cruzado gerou constrangimento ao governo Sarney. O congelamento levou ao que Nóbrega chama de “desequilíbrios” a quem obedecesse a diretriz do governo. Por isso, Sarney convocou as donas de casa para serem seus olhos e ouvidos em supermercados, açougues e padarias.

“Algumas empresas tinham reajustado seus preços com autorização do governo antes do congelamento. O preço, portanto, ficou defasado. Então as empresas, se obedecessem ao congelamento, quebrariam”, afirma o ex-ministro.

Na época, os pecuaristas do agronegócio deixaram de oferecer bois ao mercado porque a paralisação de preços levou a uma defasagem na venda do animal. O governo foi obrigado a confiscar bois no pasto, o que também não deu certo.

“Então, havia deficiências que os autores dos planos de congelamento, particularmente do Plano Cruzado, não haviam previsto.”

A pá de cal que sepultou o Plano Cruzado foi a correção dos salários por um abono de 8%, o que levou a demanda a subir de forma ainda mais acelerada, afirma o ex-ministro da Fazenda.

Plano Bresser

Em abril de 1987, após o fracasso do Plano Cruzado, a inflação anual atingia mais de 700%. O ministro da Fazenda, Dilson Funaro, deixou o cargo. Coube ao sucessor, o economista Luís Carlos Bresser Pereira, enfrentar o fantasma que assombrava o Brasil.

O ministro via o congelamento de preços como “solução heróica” para controlar uma inflação de mais de 300% ao ano. Contudo, ele reconhece que o fracasso do Plano Cruzado se deu pela falta de uma política de ajuste fiscal.

Quando assumiu o ministério da Fazenda em 1987, Bresser reconhece que tomou posse “em meio a uma crise aguda”. O chefe, Sarney, não tinha mais o mesmo poder político devido ao fracasso do Plano Cruzado. “E ele já não tinha mais motivações para fazer ajuste fiscal”, escreveu o ministro em artigo publicado na Revista de Economia Contemporânea.

Assim, com a assessoria de Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do estado de São Paulo, e do economista Francisco Lafaiete de Pádua Lopes, da PUC-RJ, Bresser criou seu próprio plano de congelamento de preços. Em junho de 1987, o Plano Bresser foi implantado em sua primeira fase.

“Meu plano era, no início de 1988, fazer um novo plano, provavelmente usando a estratégia de moeda indexada que então era conhecida como ‘otenização'”, escreveu o ex-ministro. Contudo, quando viu que não teria base para realizar um ajuste fiscal dentro do governo Sarney, o ministro se demitiu em dezembro.

Quem assumiu foi Maílson da Nóbrega.

‘Desativar a bomba-relógio’

“Quando eu entrei no ministério da fazenda, aconteceu o que tinha acontecido com o ministro Bresser. Ou seja, a expectativa é que teríamos um plano de congelamento”, conta Nóbrega.

Uma das missões do ex-ministro, contudo, era “desativar a bomba-relógio” da iminência de um novo plano de congelamento.

“Eu cheguei a anunciar isso: ‘o nosso objetivo é terminar o governo com a inflação de 10% ao mês’. E foi uma doce ilusão.”

Quando a inflação atingiu o patamar de 20% ao mês em agosto de 1988, uma reunião de emergência foi marcada no Palácio do Planalto entre o presidente José Sarney, o chefe da casa civil, Ronaldo Costa Couto, e o ministro do Planejamento, João Batista Abreu.

A percepção da sala, diz Nóbrega, era de que “a inflação sairá do controle”. A resposta: o Plano Verão.

Depois da reunião, Maílson da Nóbrega ligou para Dilson Funaro. Na época, o ex-ministro da Fazenda já estava internado para tratar de um câncer linfático em estágio avançado.

“Eu o telefonei para desejar o melhor e para antecipar a ele que nós estávamos pensando em fazer um programa de congelamento. Era uma forma de animar, digamos assim, o ministro Funaro, né?”, conta Nobrega.

“E aí falei isso para o presidente Sarney. Ele gostou muito do meu gesto e disse: ‘Por que você não faz o mesmo com os outros ministros?'”

Maílson marcou um jantar na casa de Mario Henrique Simonsen, depois das dez horas da noite.

“E começamos a conversar sobre ideias de como fazer o plano de congelamento. Daqui a pouco chegou alguém da residência e falou ‘está cheio de repórter lá em baixo’. Alguém vazou que eu estava conversando com Simonsen. Aí ficou difícil de negar que a gente tivesse trabalhando em um programa de congelamento.”

Por que o Plano Collor não deu certo?

Ao assumir a presidência após as eleições de 1989, Fernando Collor de Mello também prometeu acabar com a hiperinflação do Brasil. O caçador de Marajás incumbiu a tarefa a Zélia Cardoso de Mello, primeira e única mulher a assumir o ministério da Fazenda.

A ministra Zélia Cardoso de Mello durante entrevista coletiva para explicar o lançamento do plano econômico, em 1990. Foto: Protásio Nene/Estadão Conteúdo – 16/3/1990

Todo brasileiro se lembra bem do primeiro efeito do Plano Collor. Em março de 1990, o governo federal confiscou a caderneta de poupança de milhões de rentistas. Os valores retidos seriam liberados em 18 meses, segundo o governo.

Na época, Marcos Mendes era estudante de economia. Atualmente professor do Insper, o economista afirma que o principal problema do Plano Collor foi um “erro de diagnóstico”.

“Tinha-se a ideia de que, se o governo congelasse a poupança, as pessoas iriam consumir menos porque não teriam à sua disponibilidade os recursos corrigidos pela taxa Selic diariamente no overnight como antes”, explica Mendes.

O confisco da poupança também era uma escapatória paliativa para um problema recorrente que o Brasil enfrentava: a dívida pública. Ao reter o dinheiro da caderneta, o governo Collor não precisava corrigir o valor pela Selic, ou seja, paralisou o pagamento de juros. Assim, o governo “diminuiu a necessidade de rolar a dívida”.

Mas a medida foi um “band-aid” contra a inflação e a dívida, conforme Mendes. Segundo dados do Ipea, a dívida total do governo brasileiro em 12 meses caiu de 42% para 34% do PIB entre janeiro e setembro de 1991. Mas voltou a subir para 38% em dezembro daquele ano.

“Era um erro de diagnóstico porque o problema central era fiscal. O governo tinha que equilibrar as contas fiscais e fez pouco em relação a isso também no Plano Collor”, diz Mendes.

O Plano Real teve sucesso por que aprendeu com os fracassos?

Há debates se uma das grandes vantagens do Plano Real foi ter aprendido com os erros dos antecessores.

“O (Plano) Real se beneficiou das experiências dos planos fracassados. Se você olhar a medida provisória do Plano Real, ela tem grande parte dos textos das medidas provisórias dos planos de congelamento”, afirma o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega.

Para ele, o plano criado pela equipe de economistas montada por Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda do ex-presidente Itamar Franco, tirou proveito das experiências que não deram certo para mudar o jogo contra a inflação.

Já Cláudio Considera, ex-secretário da Fazenda na área de Acompanhamento Econômico durante o mandato de Pedro Malan, afirma que o único aprendizado do Plano Real com as medidas de congelamento foi a indexação da moeda.

“Acho que a única coisa que se aprendeu foi a ideia da Unidade Real de Valor (URV). Fora isso, foi um plano de estabilização sem congelamento, completamente diferente do que vimos até então”, diz Considera.

Marcos Mendes, do Insper, cita que o Plano Real acertou no diagnóstico de uma “transição gradual” da URV. Para ele, é correto afirmar que o plano da equipe de FHC aprendeu com os fracassos anteriores, mas foi além.

“Houve a preocupação de fazer um ajuste fiscal prévio, junto com um maior fortalecimento do balanço de pagamento e a possibilidade de uso de valorização do câmbio como uma forma de segurar a inflação durante alguns anos. Esses fatores compuseram um quadro que permitiu o sucesso do Plano Real. Então, aprendeu com os anteriores? Aprendeu. Mas foi além disso.”