‘Situação fiscal do Brasil não dá espaço para reduções relevantes na arrecadação’, diz Bernard Appy

Em entrevista à IF, Appy fala sobre como racionalizar a tributação sobre a produção e a comercialização de bens e serviços

A proposta de uma reforma tributária no Brasil não terá espaço para erros no ano que vem. Por isso, a nova política fiscal deve ser praticamente perfeita. As afirmações são do economista e presidente do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), Bernard Appy. Segundo ele, não há condições para que o país faça reduções relevantes na arrecadação de impostos. Em entrevista à Inteligência Financeira, Appy falou dos desafios de uma reforma tributária profunda, mas necessária.

A entrevista foi concedida antes da indicação de Appy para assumir a secretaria especial do Ministério da Fazenda. Nesta terça-feira (13), o futuro ministro Fernando Haddad nomeou Appy como secretário especial da Fazenda.

Appy entende os desafios fiscais do Brasil. Ele já ocupou cargos importantes no Ministério da Fazenda nos governos do petista Luiz Inácio Lula da Silva. O economista foi secretário de Política Econômica e de Reformas Econômico-Fiscais de 2003 a 2008. Ele é o mentor de uma das propostas de reforma tributária no Congresso, a PEC 45/2019, cujas principais ideias foram aproveitadas na redação da PEC 110/2019, a mais avançada na tramitação. Ambas propõe simplificar e racionalizar a tributação sobre a produção e a comercialização de bens e serviços.

O economista considera “exagerada” a proposta de campanha de Lula de isentar quem ganha até R$ 5 mil de pagar o Imposto de Renda da Pessoa Física. Para ele, algumas propostas feitas durante a campanha, como revisão da tabela do IRPF e a desoneração de combustíveis, devem ser igualadas com “medidas de aumento de arrecadação”.

Como medidas de aumento de arrecadação, Appy citou a revisão de benefícios fiscais, que são diversos no Brasil, e a correção de “distorções na tributação que incide sobre parte das pessoas de alta renda”.

Appy disse à IF que vai trabalhar para aprovar a reforma tributária. “Eu, obviamente, pretendo contribuir na discussão da reforma tributária”. Além de comentar sobre o possível papel no governo, ele elencou alguns dos principais objetivos da reforma tributária. Para o economista, a partir da mudança fiscal, o Brasil deve se aproximar de um modelo de tributação internacional mais avançado.

A reforma dos impostos que incidem sobre o consumo dos brasileiros, destaca Appy, tem o maior impacto sobre o crescimento potencial do PIB nos próximos anos. Se o novo governo empenhar o seu capital político em 2023 para aprovar a reforma, o Brasil pode crescer aproximadamente 20% nos próximos 15 anos, “com uma boa reforma de tributação do consumo”, diz Appy.

Confira a entrevista.

Quais seriam os principais objetivos de uma reforma tributária? Alguns especialistas defendem que não se deve aumentar a carga tributária e sim tornar a cobrança de imposto mais eficiente.

Na verdade, quando discutimos a reforma tributária, é preciso entender que existem quatro categorias principais de impostos. O tributo sobre o consumo; o sobre a renda; o que incide sobre a folha salarial, normalmente vinculados ao financiamento da Seguridade Social; e o tributo sobre patrimônio.

O escopo da reforma tributária alcança todas essas categorias, com objetivos diferentes. Para a reforma da tributação do consumo, o objetivo é sobretudo aumentar o potencial de crescimento da economia brasileira. Há estudos que indicam que uma boa reforma da tributação do consumo poderia elevar o PIB potencial do Brasil em até 20 pontos percentuais em 15 anos. Já a reforma da tributação da renda tem como propósito corrigir distorções. No Brasil, uma parcela relevante de pessoas de alta renda pagam pouco IR.

A reforma tributária da folha de salários visa combater a informalidade. Para as pessoas de baixa renda a alta tributação estimula a informalidade, simples assim. Para as pessoas de renda mais alta, impostos elevados estimulam aquilo que chamamos de ‘pejotização’, em que pessoa deixa de ser um empregado e passa a ser sócio da empresa, com um regime fiscal como o simples ou o lucro presumido.

Tem finalmente a discussão da reforma da tributação do patrimônio. Há ajustes a serem feitos. Por exemplo, o ITR (Imposto Territorial Rural) arrecada muito pouco. Há melhoras a serem feitas na cobrança de IPTU (Imposto sobre Propriedade Predial ou Territorial Urbana). Não são distorções tão grandes quanto nas outras categorias de tributos.

Há duas propostas que reformulam o sistema tributário sobre o consumo de bens e serviços no Congresso. A PEC 45/2019, cujo texto inclui propostas de Appy, parada na Câmara dos Deputados, e a PEC 110/2019, criada durante a pandemia mas que não avançou no Senado. A ideia da PEC 45/2019 é substituir impostos como o IPI, PIS/COFINS, ICMS e ISS por um único imposto de valor adicional, chamado IVA, ou, como está previsto na legislação, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços).

E o que é o IVA?

O IVA é um imposto que cobre todas as etapas da cadeia de produção e comercialização. Ele incide sobre as vendas e pode ser recuperado nas compras da empresa que faz parte de qualquer etapa da cadeia produtiva”, diz Appy. “Então você paga essa diferença entre a arrecadação sobre vendas e crédito nas compras. Um IVA bem desenhado desonera completamente exportações e investimentos, e tributa importações de forma semelhante às que já incidem sobre a produção nacional.

E por que nosso sistema é disfuncional?

Ele é disfuncional porque os tributos que temos hoje: PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, formam uma base totalmente fragmentada. O ISS, por exemplo, tributa serviços enquanto o ICMS tributa mercadorias. O IPI só tributa produtos industriais. Já o PIS/COFINS também tributa mercadorias e serviços, mas só se for na pessoa jurídica. Se eu tiver a mesma atividade feita por uma pessoa física, não há tributação, o que é um erro. Toda atividade econômica, caso seja idêntica, tem que ser tributada da mesma forma. Além disso, em termos de regra homogênea, temos diversas brechas na forma de exceções. A quantidade de benefícios fiscais, de regimes especiais, é absolutamente monumental no Brasil.

Em terceiro lugar, o atual regime fiscal estimula a guerra fiscal entre entes da federação. No caso do ICMS e do ISS, a tributação predominante é feita no estado de origem do serviço ou mercadoria. Mas, em casos de excesso, é cobrado no município de origem. E, ao invés de ter um sistema de crédito amplo, tem-se uma série de problemas que fazem com que imposto pago ao longo da cadeia não seja recuperado, porque temos tributos que chamamos de cumulativos. Então, no fundo, você está onerando a cadeia, a exportação e investimentos, sob dois grandes efeitos negativos: distorção do preço relativo ao consumo e perda de transparência sobre a quantia de impostos cobrados de fato.

Qual sua visão sobre a proposta de taxar lucros e dividendos?

No caso da tributação da renda, o Brasil de fato tem um sistema diferente do resto do mundo. A maioria dos países tributa a lucro, uma parte da empresa, e depois tributa de novo, na distribuição para a pessoa física. Por várias formas e modelos diferentes. O Brasil tributa só na empresa com uma alíquota mais alta, e não tributa na distribuição. O modelo brasileiro tem vantagens e desvantagens. Uma vantagem é que ele é mais simples, e outra é desestimular aquilo que chamamos de “distribuição disfarçada de lucros”.

Para se aproximar do padrão internacional, o Brasil precisa taxar dividendos sem mexer na tributação da empresa, que precisa ser reduzida para se ajustar ao padrão internacional. O ideal é fazer isso de forma progressiva na pessoa física. E eu acho que esse é um modelo interessante. A gente deveria explorar mais essa possibilidade no Brasil. Acho que corrigiria esses problemas distributivos que temos hoje. Volto a dizer: o objetivo principal da reforma do IR no Brasil é corrigir distorções que fazem com que alguma parte das pessoas de alta renda no Brasil seja pouco tributada.

No caso das grandes empresas é um pouco mais complicado, porque às vezes não sabemos exatamente quem está arcando com aquele imposto. Na teoria econômica, quando você mexe na alíquota de arrecadação sobre empresas, ela pode ser repassada para três grupos: aos acionistas da empresa, aos consumidores, com reflexo no aumento do preço, e aos empregados.

Estudos recentes nos Estados Unidos mostram que alterações feitas no imposto de renda da empresa transferem o custo mais ou menos na proporção de 33% para estes três grupos. Um terço afeta o preço, um terço afeta a renda dos trabalhadores e o restante afeta a renda líquida dos acionistas. É o que a gente chama de incidência econômica. Não necessariamente mexer na tributação na empresa significa de fato tributar os acionistas, talvez a incidência não caia tanto sobre ele, e sim sobre os empregados. Esse é o desafio.

Uma das propostas do novo governo é a reformulação da tabela do IRPF para desonerar quem ganha até R$ 5 mil. Como compensar a perda de arrecadação?

Eu acho exagerado esse valor de R$ 5 mil, mas ele já está prometido politicamente. Então precisa ver como é que será implementado. Em política tributária, você sempre discute ‘bondades e maldades’. Principalmente se seu objetivo é manter a carga tributária, então tem aí uma uma série de exemplos de medidas a serem tomadas. Rever benefícios fiscais que existem hoje podem entrar na conta para ajudar a financiar um eventual reajuste da IRPF.

A situação fiscal do Brasil hoje não dá espaços para fazer reduções relevantes de arrecadação. Estamos em um patamar muito delicado e o governo não pode errar a mão na condução da política fiscal. Eu diria que medidas de redução de receita deveriam ser compensadas por medidas de aumento de arrecadação. No fundo, o trabalho é identificar diferentes alternativas para que haja uma definição política sobre quais alternativas são viáveis e quais são menos viáveis.

O senhor contribuiu bastante para a elaboração da PEC45. A preferência, na reforma tributária, é que essa seja a proposta aprovada pelo Congresso?

Essa será uma definição política. Temos a PEC45, que está na Câmara dos Deputados, apresentada em abril de 2019. Quando a PEC110 começou a tramitar no Senado criou-se uma comissão mista para analisar as matérias no início de 2020. A pandemia paralisou a comissão mista e, quando os trabalhos foram retomados, o presidente da Câmara era outro.

O deputado Aguinaldo Ribeiro, que era o relator na comissão mista, chegou a apresentar o relatório, o que é bastante bom porque deu base para a discussão. Mas a mudança na presidência da Câmara e a derrota do grupo político que apoiava a PEC45 nesta eleição da Casa fizeram com que o novo presidente da Câmara sentasse em cima da PEC.

A partir de 2021, a proposta que avançou foi a PEC110. Ela também acabou não sendo votada. Acho que as duas propostas estão muito mais próximas do que eram no início, pelo menos em termos de texto. A decisão de se adotar a PEC45 ou a PEC110, ou ainda uma nova proposta enviada pelo governo, é política.

O que eu posso dizer é que esse assunto da reforma tributária já amadureceu bastante. Já se sabe onde estão as resistências, as possíveis concessões que precisam ser feitas para mitigar atritos. Havendo interesse do governo de alocar capital político para a aprovação da reforma tributária, a chance de passar é bastante grande.