Gustavo Franco: o homem que viu FHC pedir demissão três vezes na mesma reunião

Economista relembra momentos tensos e decisivos na implementação do Plano Real

O dia era 28 de fevereiro de 1994. O local, Brasília, mais precisamente o Palácio do Planalto. O presidente da época, Itamar Franco, convocara uma reunião com alguns ministros, entre eles Fernando Henrique Cardoso, titular da Fazenda. O domingo precedia um dia importantíssimo. Na segunda-feira seria editada a medida provisória 434 no Diário Oficial. Era o documento com 45 artigos que daria vida ao Plano Real.

Mas tudo poderia ter fracassado.

Entre ideias de fazer o salário mínimo chegar a US$ 100 e de retomar o congelamento de preços, Fernando Henrique pediu demissão do cargo três vezes na reunião. E nas três oportunidades ganhou o braço de ferro. Ficou na cadeira e o Plano Real mudou para a sempre a história do país.

“Aquele dia, aquele momento deu para ver que era decisivo e o ministro foi firme. Ele pediu demissão três vezes nessa reunião. Três vezes!”.

A frase é de Gustavo Franco.

Ex-secretário-adjunto da secretaria de política econômica do ministério da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, Franco relembrou da história em entrevista exclusiva à Inteligência Financeira concedida na sala de seu apartamento no Rio de Janeiro recentemente. Franco fez parte da equipe que criou o Plano Real.

Convocação do ministro

Gustavo Franco lembra que foi convocado por Fernando Henrique para ficar aguardando do lado de fora da sala onde ocorria o encontro. Era ele e Murilo Portugal, então secretário do Tesouro Nacional, na antessala.

O encontro começou meio-dia.

Então, chamam Murilo uma vez para a reunião, chamam Gustavo uma vez, duas vezes, três vezes. “Na terceira, disseram, ‘fica aí porque vai aparecer muita coisa'”, conta Franco. Foi realmente muita coisa.

Primeiro ponto de atrito.

Surge a ideia de converter os salários pelo pico, conferindo ganhos aos trabalhadores. A ideia vigorara no fracassado Plano Cruzado. Gustavo Franco lembra que Fernando Henrique diz, então, que não concordava e que iria embora. E se fosse assim, era melhor que o então ministro do Trabalho, Walter Barelli, conduzisse o real. FHC ganha o confronto.

Passa um tempo da reunião e surge outra proposta de última hora.

E se o Plano Real colocasse o salário mínimo a US$ 100? Franco conta que de novo Fernando Henrique levanta e sugere a Barelli assumir o comando. Mas é convencido a ficar, já que a nova proposta também não vinga.

“O terceiro assunto: controle de preços. ‘Ah, o congelamento, o povo quer congelamento’. E queria mesmo, que congelamento da tranquilidade às pessoas”. Franco conta que a resposta foi negativa e se o presidente não aceitasse, pela terceira vez, Fernando Henrique sairia do governo.

Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco
O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, ao lado do presidente Itamar Franco. Foto: André Dusek/Estadão Coneúdo – 20/7/1993

A equipe econômica vence a batalha

Eram dez da noite.

“Pintou um sanduíche, a gente comeu alguma coisa e foi para o ministério festejar que conseguimos trazer a medida provisória de volta totalmente do jeito que ela foi”.

Franco conta que o cenário se repetiu na véspera da medida provisória que colocou a moeda em circulação, em 1º de julho. Com menos tensão, pois ali já havia indícios de que o plano daria certo. Mas ele admite que essa tensão e pressão estavam presentes o tempo todo no cotidiano da equipe econômica.

“Mas todo período, todo dia era um susto. E não é todo dia que você ganha de três a zero, tem dia que você perde de dois a um, ou de 48 a 49. Um longo campeonato e você fica ali. Tem dia que você perde de três a zero e é o seguinte: ‘Tá bom, amanhã vamos ganhar de cinco a zero’. Não vai ganhar todas, todo dia. Mas tem que pontuar”.

O corredor polonês de Brasília

A frase mostra a necessidade de resiliência que a equipe idealizadora do Plano Real precisou ter durante todo o tempo, o tempo inteiro.

E outra passagem marcante das memórias desta época é o primeiro dia Franco no ministério da Fazenda.

Ao lado de Edmar Bacha, então assessor de Fernando Henrique, e Winston Fritsch, secretário de política econômica, e levados por Murilo Portugal, o grupo é recepcionado na entrada do ministério por um grupo de grevistas do Tesouro Nacional.

“Então, o corredor polonês estava horroroso porque as pessoas estavam dizendo: ‘Ih, esse secretario aí, esse Murilo Portugal, não vale nada’. E começa por aí. Falaram coisas muito piores que isso, então, era animador chegar naquele momento”, conta em tom de brincadeira.

O corredor polonês mencionado é a entrada do ministério.

Em Brasília, ministros e representantes importantes do governo precisam caminhar em um espaço público entre descer do carro e acessar a portaria do prédio. Há contato direto com quem estiver por ali, jornalistas, pessoas comuns de passagem e, como no caso, manifestantes.

Dizem que isso foi feito de caso pensado por Oscar Niemeyer, o arquiteto que idealizou a capital federal. Ele supostamente queria que o povo tivesse contato com o poder.

Mas essa é outra história.

Pelo sim, pelo não, Gustavo Franco ficou onde estava, mesmo após essa ‘calorosa’ recepção.

E o Plano Real sairia do papel meses depois após o grupo vencer tantas outras batalhas.

Mais batalhas após o lançamento do Plano Real

Mas novas provações estariam no caminho da equipe econômica.

A crise do México e a crise asiática. A moratória russa.

Dessa forma, deve-se afirmar com certeza que o cenário externo era ruim. Mas o ambiente doméstico não estava nada fácil para o governo.

Assim, a segunda metade da década de 1990 seria marcada pela quebradeira dos bancos.

Ruíram a maioria das instituições financeiras estatais estaduais e alguns bancos privados.

Mas Franco lembra especialmente da crise provocada pela Rússia.

Assim, ele conta que a equipe usou a política cambial para ajudar na crise, faz uma defesa de que as condições de tomada de decisão no governo nunca são as ideais, mas com algum alívio lembra que o pior já tinha passado.

O pior que já tinha passado era a inflação

Os dados narrados a seguir, de forma frenética, estavam todos na cabeça de Gustavo Franco. Ele não levou à mesa onde a entrevista foi gravada sequer um papel, uma anotação.

“98 é o ano que, vamos lembrar, a taxa de inflação, medida pelo IPCA, foi 1,6% ao ano. Nós começamos com 12.500% ao ano se tomarmos 50% ao mês em julho de 1994. No mês de julho de 1994, primeiro mês da nova moeda, o IPCA leu 6,8%, anualizado mais ou menos 120%. No mês seguinte, agosto, 2,9%. Aí, vai caindo. Os primeiros 12 meses da nova moeda medidos nos 12 meses acumulados sem o passado da inflação foi 33%”, analisa.

Franco respira, e segue. “Para os padrões de hoje é um absurdo. Mas para aquele momento, 33% ao ano, saindo de 12.500% ao ano, era um espetáculo”.

E é aí chega a transição política, com Luiz Inácio Lula da Silva vencendo as eleições e assumindo o governo em 2002. Lula que havia tentado – e saíra derrotado – das eleições de 1989, 1993 e 1997 finalmente é eleito. A oposição vai assumir o poder pela primeira vez desde o restabelecimento da democracia, na década de 1980.

Persio Arida e Gustavo Franco
Os economistas Pérsio Arida e Gustavo Franco. Foto: José Paulo Lacerda/Estadão Conteúdo – 10/03/1995

Tudo permanece igual no Plano Real: um aprendizado

Franco não coloca a transição política como a etapa mais importante para a consolidação do Plano Real. Mas diz que aquela altura a sucessão era um “grande problema”. Mas ele também avalia que tudo deu certo e que, a partir da transmissão de poder para a então oposição, a “democracia brasileira muda de patamar”.

Novas crises viriam.

Assim, o país passaria por um (novo) impeachment, mergulharia em uma pandemia com milhares de mortes e em nova crise econômica surgida antes, mas amplificada pela Covid.

Mas algo permaneceu com essa transição de 2002.

“A gente passa a ser um país que até hoje tem inflação de primeiro mundo e instituições monetárias de primeiro mundo”.

Já é algo a se celebrar.

Uma memória da inflação

No finalzinho da entrevista, uma pergunta surge. Ele acha que com o tempo, e a estabilização econômica, as novas gerações tendem a esquecer dos perigos da inflação de 30 anos atrás?

Franco já havia respondido que as tentações de se gastar mais, de achar que um pouco de inflação não faz mal a ninguém, não morreram em Brasília.

Mas na parte final do encontro com a Inteligência Financeira o tom é mais otimista.

“É verdade que a memória vai desgastando um pouco com o tempo, mas ela resulta muito mais forte do que a gente imaginava. Ela está viva até hoje”.

Franco diz que o truque é transformar memória em consolidação de instituições, como o Banco Central e sua autonomia, como o Conselho Monetário Nacional, com mecanismos com o Copom.

E manter a memória viva pelo equilíbrio de poderes entre as instituições nos ajuda a ter certeza que os últimos 30 anos não foram um sonho em uma noite de verão.