Salários, aluguéis, sapatos e batons: o dia em que FHC conversou com Silvio Santos sobre a URV e o Plano Real

Voltamos no tempo para contar como foi a entrevista de Fernando Henrique Cardoso no Programa Silvio Santos

Fernando Henrique vem aí!

Fernando Henrique vem aí!

Não, a música icônica que acompanhou durante décadas a abertura do programa comandado por Silvio Santos, e que anunciava todos os domingos ‘Silvio Santos vem aí!, Silvio Santos vem aí!’, não foi adaptada para receber Fernando Henrique Cardoso.

Mas o então ministro da Fazenda participou por cerca de 20 minutos de um dos programas de auditório mais populares da história da televisão brasileira na década de 1990 para explicar a Unidade Real de Valor (URV) e as mudanças então em curso na economia e que resultariam no Plano Real.

Assim, na conversa fluída entre o maior comunicador do país e o todo-poderoso ministro do presidente Itamar Franco falou-se da vida real: salários, preço do sapato, da geladeira e até do batom. A íntegra do bate-papo você confere abaixo.

Era o esforço de comunicação por trás da implementação do Plano Real. Uma necessidade diante de um plano complexo, que previa uma quase moeda, a Unidade Real de Valor (URV), uma série de outras medidas para arrumar a casa econômica e, finalmente, a implementação da nova moeda.

A entrada acanhada de Fernando Henrique Cardoso

Assim, Silvio Santos não poupa elogios ao então ministro.

Dessa forma, no corredor central que separava o auditório do SBT, apinhado de suas ‘colegas de trabalho’, como o apresentador se referia sempre à plateia, Silvio Santos anuncia:

“Eu estou aqui perto de vocês porque eu gostaria que vocês conhecessem um brasileiro que está fazendo o possível para consertar nosso país”.

Então, após mais algumas falas surge o ministro do fundo da plateia.

Terno escuro, gravata em tons amarelos. Alinhado como sempre. Mas algo deslocado naquele ambiente.

Então, Silvio Santos comenta que as pessoas no auditório não deveriam conhecer Fernando Henrique Cardoso pessoalmente.

FHC brinca, tenta descontrair: “É possível que algumas tenham conhecido já, quem sabe andando pelas vilas de São Paulo, pelas ruas, será que ninguém nunca, não cruzei nenhuma? Quem sabe, né?”

Silêncio.

Silvio Santos conserta.

“Bem, mas de qualquer forma, nós estamos tendo o prazer de receber no Programa Silvio Santos o ministro Fernando Henrique Cardoso que veio de Brasília para conversar comigo, pra conversar com vocês e para conversar com os telespectadores”.

E a conversa engata.

‘Urvi’ ou URV?

Silvio Santos, então, brinca que não recebe salário do SBT e pergunta se as pessoas perderiam algo nos seus vencimentos com a implementação da ‘Urvi’. “Olha, primeiro esse ‘Urvi’ o nome é muito feio. Eu gosto de falar U-R-V”.

E a resposta de Fernando Henrique vai no sentido de explicar que ninguém perderia nada. “Hoje, como você sabe, com a inflação a gente pensa que ganha um montão de dinheiro mas quando vai comprar, o montão sumiu”.

Assim, FHC se solta e aí surge uma certa dinâmica entre ele e Silvio Santos que permearia todo o encontro.

O ministro fala, o apresentador complementa ou ‘traduz’ a explicação. Pá-pum, pá-pum, como num jogo de tênis em que os adversários separados por uma rede se tornar aliados.

A dobradinha não passa despercebida por Sergio Fausto, cientista político e diretor-geral da Fundação FHC. “Tem uma entrevista para a BBC Brasil que ele (FHC) fala sobre esse episódio. Ele falou: ‘Ele explicou muito melhor do que eu'”.

O arranjo teria surgido em uma conversa entre o apresentador e o ministro antes da entrevista, com Silvio Santos indicando a FHC que iria liderar a conversa.

“E você viu a entrevista (citando o repórter), ele vai traduzindo o Fernando Henrique. O Fernando Henrique percebe que ele está indo muito bem. Nunca faltou autoestima para o Fernando Henrique, mas como ele mesmo dizia, ‘eu sou mais inteligente do que vaidoso’. Então, ele percebe que o cara está indo melhor do que ele, ele não tenta atropelar o cara…. ‘é isso aí, é isso aí'”.

Sergio se refere à dinâmica da entrevista. FHC fala, Silvio Santos explica e volta para o ministro, que responde com um ‘é isso aí’ ou ‘é isso mesmo’.

Fernando Henrique e os comícios

Sergio conta que o ex-presidente ganha experiência com públicos cada vez maiores com a redemocratização, a partir da metade da década de 1980. Tem de aprender na prática que políticos precisam repetir a mensagem.

Não citar coisas novas a cada comício.

Aprende observando ícones do período, como André Franco Montoro, ex-governador de São Paulo e um dos ícones da reabertura lenta e gradual patrocinada pelos militares.

Mas Sergio confessa: FHC não era um grande orador de comícios.

O cientista político lembra de um comício na Praça da República, no Centro de São Paulo. Era véspera da eleição para prefeito da cidade, em 1985. Fernando Henrique perderia aquela disputa. Em dado momento, aparece por lá Sara Kubitschek, para apoiar FHC.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em sessão no Congresso que comemorava os 20 anos do Plano Real. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado – 25/2/2014

“Mas aí eu me lembro que o presidente disse: ‘Vendo dona Sara Kubitschek eu sinto um frêmito de emoção’. Quando ele disse sinto um frêmito de emoção, achei uma coisa bizarra”. Sergio sorri e complementa: “Então, ele não se achava muito nos palanques. Assim, não acho que era o lugar onde ele era ele, tinha que inventar um personagem, estava em busca de um personagem”.

A situação muda, alguns anos depois, com a chega ao ministério da Fazenda. É quando “o personagem se encaixa na trama”.

Para Sergio, FHC entende que os economistas do Plano Real haviam criado algo muito interessante e teria pensado: “Eu vou explicar esse negócio, eu acho que eu sei explicar esse negócio. Eu vou usar meus dotes de conferencista para explicar”.

Sapatos, alugueis e batons

É esse Fernando Henrique que aparece no programa de Silvio Santos. E o comunicador vai puxando um assunto atrás do outro.

Falam da exploração feita por alguns, que aumentam preços para além da inflação para aproveitar o momento de instabilidade. O exemplo é o de um país fictício em que há apenas três fabricantes de sapatos que combinam o reajuste do preço do produto para além da inflação.

Falam de aluguel, outra questão que segundo Silvio Santos aflige o povo. O ministro explica que com a URV os preços serão mais estáveis nessa questão: “Você sabe qual é a parte do seu dinheirinho que vai ser gasta com aluguel de uma maneira mais constante”.

E comentam sobre a estabilidade de preços pretendida com a nova moeda, o Real, que vai permitir que uma pessoa compre um batom na farmácia num mês e que sem tantos zeros como no cruzeiro real, ela saiba exatamente quando pagou naquele mês, no mês seguinte se houver inflação e, principalmente: a população vai saber quando alguém está cobrando mais do que deveria pelo batom.

O então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso exibe cartilha da URV
O ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso segura a cartilha da URV (Unidade Real de Valor) enquanto concede entrevista na porta do ministério. Foto: Wilson Pedrosa/Estadão Conteúdo – 1/3/1994

“Então, vai haver mais facilidade para o freguês dizer ‘não’ quando ele acha que está sendo ludibriado pelo comerciante. Agora, com relação à URV é praticamente a mesma coisa se uma geladeira custa 10 URVs… se a URV hoje está custando digamos um cruzeiro, então hoje a geladeira está custando 10 cruzeiros, 10 URVs. Se houver inflação de 40% no mês que vem, essa geladeira deveria estar custando 14 URVs”, comenta Silvio Santos.

FHC responde: “10 URVs, mas valendo 10 cruzeiros, em vez de 14 cruzeiros”.

Silvio Santos devolve: “Exatamente, vai continuar custando 10 URVs”.

FHC: “10 URVs e valendo 14”.

Silvio Santos: “Se por acaso ela custar mais de 10 URVs é porque aquela geladeira está cara”

FHC: “Tem boi na linha”

Entre idas e vindas, os dois se entendiam perfeitamente.

Profecia final

Assim, conversa vai, conversa vem, os personagens dessa história chegam ao final da entrevista. Não antes de FHC fazer uma espécie de profecia após uma pergunta do comunicador, que queria saber se o ministro confiava que o fantasma da inflação seria enfim superado.

“Olha, de acordo com a nossa programação, certamente, na pior das hipóteses, no segundo semestre, a inflação caiu, acaba, ela vai lá pra baixo”.

E assim foi.