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Orçamento secreto, PEC Kamikaze, precatórios: o Brasil corre risco de implodir em uma ‘bomba fiscal’?
Em 2022, a situação das contas públicas no Brasil está mais favorável do que em anos anteriores. No ciclo de 12 meses encerrado em julho deste ano, o país registrou um superávit primário de R$ 20,4 bilhões, resultado que demonstra forte arrecadação do Tesouro Nacional com despesas e receitas.
Mas o bem-estar das contas públicas deste ano pode ser um oásis no deserto. Os sinais são de que 2023 o Brasil pode implodir em uma “bomba fiscal”, com perda de arrecadação e despesas, armada a quem vestir a faixa de Presidente da República.
Algumas medidas apontam para essa explosão, de acordo com especialistas ouvidos pela Inteligência Financeira. A contribuição para o cenário precário das contas públicas de 2023 vem de medidas como a PEC Kamikaze, promulgada em julho, antes das eleições, do chamado orçamento secreto e também renúncia dos precatórios.
O Orçamento Fiscal previsto no Projeto de Lei do Orçamento Anual (PLOA) de 2023, encaminhado pelo Executivo, é de R$ 5,17 trilhões. A maior parte desse montante, R$ 2,01 trilhões, será destinada ao refinanciamento da dívida pública federal. O Orçamento Fiscal, que é usado nos gastos primários, como programas sociais do governo federal, está estipulado em R$ 1,8 trilhão.
Mesmo com as previsões de gasto com a dívida pública em 2023, grupos de economistas expressam preocupação com as despesas que devem recair sobre a União no exercício fiscal do ano que vem.
Élida Graziane Pinto, professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP) e promotora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, é uma das vozes que alertam sobre a existência de uma série de “bombas fiscais”, ou seja, o risco de perda fiscal que põe as contas públicas no vermelho.
Ela, na verdade, define a situação das contas públicas como um campo minado, cenário de uma “Guerra do Vietnã”, onde, a cada canto, aguarda um dispositivo que pode explodir em perdas fiscais.
Orçamento secreto: a ponta do Iceberg
“O orçamento secreto é como se fosse a ponta de um iceberg”, diz a procuradora. Para ela, as emendas de relator são especialmente prejudiciais às despesas primárias do governo.
“A ideia de bomba fiscal, ou seja aquilo que pode trazer um grande gasto imprevisto, ou uma perda de receita para a União, está ligada, sobretudo, à noção de sustentabilidade da dívida”, afirma Élida. O que arma a bomba fiscal, nesse sentido, é uma lógica de “incêndio a ser apagado”, praticada desde 2020 pelo governo de Jair Bolsonaro.
“Todo ano aparece uma calamidade, todo ano aparece uma brecha que justifica romper com o teto de gastos, mediante a despesa de créditos extraordinários.”
Na avaliação dela, em 2020 os gastos extraordinários foram justificáveis, já que o Brasil focava em combater a pandemia de covid-19. O Orçamento de guerra, montado especificamente naquele ano, desembolsou R$ 524 bilhões para atender à demanda causada pela crise sanitária.
No entanto, em 2021, os gastos se tornaram mais previsíveis, na visão da procuradora. A busca por vacinas e o pagamento do Auxílio Emergencial, mais tarde transformado no Auxílio Brasil, deveriam estar no cronograma financeiro do governo, o que não ocorreu.
“Em 2021, porque nós não planejamos, o governo atropelou e alterou o teto três vezes, fazendo mudanças na Constituição de 1988 três vezes”, afirmou a procuradora, se referindo às Emendas Constitucionais 109, aprovada em março daquele ano, 113 e 114, aprovadas em dezembro e que dizem respeito ao pagamento dos precatórios. Todas tiveram apoio da base de parlamentares do governo no Congresso.
Para o especialista em finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Ellery Júnior, o problema é que, por ser arbitrário e carecer de critério técnico, o orçamento secreto é um “mau investimento”.
“O problema do orçamento secreto é que o gasto de aspecto paroquial dos deputados. O uso político do orçamento é mais complicado, porque representa o investimento público ruim, e que não dá resultados. Isso, por si só, gera o risco de não haver retorno — um mau investimento que não vale a pena”, pontuou o professor.
Para o Orçamento de 2023, o relator do projeto no Senado, Marcelo Castro (MDB-PI) já sugeriu romper o teto de gastos mais uma vez para cumprir com a despesa anual de R$ 16 bilhões do piso da enfermagem. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que o aumento do salário mínimo para profissionais do setor de enfermagem poderia ficar de fora do teto de gastos.
Precatórios e PEC Kamikaze: o fundo do iceberg
Na época em que o governo defendia adiar os precatórios do Fundef (Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental), Paulo Guedes usou a palavra “meteoro” para descrever o impacto do pagamento das dívidas do governo com Estados no orçamento e no teto de gastos.
Mas, se o orçamento secreto é a ponta do iceberg, como descreve Élida Graziano, os precatórios — dívidas da União decorrentes de processos que tramitam na Justiça — são o fundo.
Ela estima que a perda de receita do governo com despesas de processos na Justiça pode chegar na casa de R$ 2,6 trilhões em 2023. O Relatório de Riscos Fiscais da União, divulgados pelo Tesouro Nacional em dezembro de 2021, aponta que a União está exposta a um risco fiscal específico, que são despesas pontuais mas imprevisíveis, como por exemplo as que têm origem em programas sociais do governo, de R$ 4,2 trilhões.
As despesas vindas de ações judiciais são um dos principais elementos da bomba fiscal. Um gráfico elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) mostra que, em agosto deste ano, a União estipula que um risco fiscal dessas despesas aproximadamente R$ 1,17 trilhão para 2023. Os dados, que juntam a previsão de 2021 e do primeiro trimestre de 2022, mostram que o Ministério da Economia apresenta um possível risco fiscal de R$ 849 bilhões. Apenas o adiamento do pagamento de precatórios do Fundef contratou uma dívida de R$ 90 bilhões para o governo federal.
“O peso do serviço da dívida pública no Brasil do juros nos últimos 12 meses aumentou, porque o Banco Central aumentou rapidamente a taxa de juros (Selic). Com isso, o pagamento da dívida acabou tendo um custo de carregamento de R$ 586 bilhões no período de um ano”, diz Élida Graziane, da FGV.
“Por que não planejamos, por que não cumprimos essa ordenação legítima de prioridades, o Brasil dá causa sucessiva a redesenhos constitucionais e a essas bombas fiscais”, cita a promotora. “Dessa forma, o mercado não tem segurança jurídica nenhuma.”
Se a situação das contas públicas causava alarde em 2021, em 2022 outra bomba fiscal chacoalhou o teto de gastos: a PEC Kamikaze.
A proposta de emenda elevou o gasto com o Auxílio Brasil, que subiu de R$ 400 para R$ 600 mensais, além de criar uma bolsa-caminhoneiro de R$ 1 mil e um vale de R$ 200 para taxistas, a serem pagos mensalmente até dezembro deste ano. A proposta incluiu ainda um vale gás que dobre a cada dois meses com limite de R$ 120.
Além dos benefícios sociais, a PEC permitiu ao governo Bolsonaro repassar R$ 2,5 bilhões para garantir a gratuidade do transporte público urbano para idosos, e o desembolso de R$ 3,8 bilhões para garantir o subsídio do etanol. Ambas valem apenas até dezembro.
“A PEC Kamikaze foi uma insanidade tanto do ponto de vista eleitoral quanto do ponto de vista fiscal. O nome já explica bem do que se tratou”, diz a professora da FGV. O nome da PEC surgiu nos bastidores, batizada pela equipe de Paulo Guedes ao avaliarem os efeitos da emenda na dívida pública. Na 2ª Guerra, kamikazes eram pilotos japoneses que jogavam seus aviões contra alvos inimigos para destrui-los, mesmo que isso custasse a própria vida.
“A Constituição foi alterada em dezembro do ano passado e, seis meses depois, uma nova mudança no texto foi efetuada sob o mesmo argumento: de que eram necessários gastos para custear programas sociais fundamentais. A PEC Kamikaze mostra que o governo brasileiro não consegue planejar o que é prioridade”, explica Élida.
Teto de gastos: rever ou não rever?
Mesmo com a perspectiva de um cenário positivo nas contas primárias do governo esse ano, outras incertezas armam a bomba fiscal para o ano que vem. A começar, o reajuste de servidores públicos de acordo com o aumento da inflação, como fez o Supremo Tribunal Federal, que saiu na frente e pediu aumento de 18% nos salários pagos aos membros da Corte.
“Tem uma série de medidas que vão jogar gastos para o ano que vem. Tem a renúncia fiscal do ICMS que incide sobre combustíveis, e os Estados devem demandar alguma forma de reposição de receita da da União”, aponta Ellery, da UnB.
Uma possibilidade ventilada durante as eleições é a revisão do teto de gastos. Lula, candidato do PT e líder nas pesquisas com 46% das intenções de voto de acordo com a Genial/Quaest, defende a revogação do teto. Um dos aliados do petista, Henrique Meirelles, que também foi ministro da Fazenda durante o governo Temer e considerado o pai do teto, advoga pela manutenção da medida.
Na visão de Élida, o teto de gastos intensificou a batalha de deputados pelo orçamento fiscal. A promotora do MPC-SP defende a revisão do teto, e explica que, só porque ele pode ser alterado, não significa que o governo a partir de 2023 poderia gastar de forma ilimitada.
“Não vamos ficar à deriva. O Brasil tem muitas regras fiscais sobre gastos da União, e que poderiam, inclusive, dialogar melhor entre si. O próprio Orçamento já trabalha com uma noção de limite para dotações por área. A Regra de Ouro também vale no caso, determinando que as dívidas contratadas pela União sejam revertidas em investimento, o que melhora a qualidade do gasto”, afirma a procuradora.
“O teto de gastos pecou por ser criado para limitar apenas despesas primárias. É uma falha colocar um parâmetro formal pensando que, automaticamente, você vai resguardar a eficiência alocativa”, continua. A avaliação é de que, enquanto o teto impede gastos eficientes, ele produz desigualdades. Para arranjar espaço no Orçamento para as emendas de relator, diz Élida Graziane, o governo Bolsonaro fez cortes em programas como o Farmácia Popular. Mais tarde, o próprio presidente voltou atrás na decisão.
Como um novo governo pode fugir da bomba fiscal?
Com a bomba fiscal no colo do próximo governo, Roberto Ellery defende que a recriação do arcabouço fiscal no Brasil pode aliviar as contas públicas.
“Para fugir da bomba, sustento a criação de regras fiscais, com inclusive uma norma sobre acompanhamento da dívida pública e meta de superávit. Também seria prudente fiscalizar os recursos e recuperar, na medida do possível, a função do Orçamento como orientador das políticas públicas da União”, diz ele.
Élida Graziane também defende a criação de uma regra fiscal para a dívida pública. Ela ressalta que, inclusive, o TCU votou a favor de estabelecer uma meta na dívida do Brasil, em acórdão publicado em 2018. Na época, o tribunal reconheceu que a dívida pública brasileira aumentou acima da média dos países do G7: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido.
O novo presidente, seja quem for, vai precisar de articulação política no Congresso para manobrar o Orçamento de 2023 até o final de dezembro, prazo final para alterações na PLOA. “O momento fiscal pontual é bom, mas não é sustentável, a não ser que governo faça a articulação para criar um novo arcabouço fiscal. O atual líder nas pesquisas é Lula. Em 2003, ele conseguiu arrumar a casa, em seu primeiro ano de governo”, diz Ellery Júnior.
Todos os candidatos tem propostas para manter o Auxílio Brasil no patamar de R$ 600. “Mas eles [candidatos] sabem que é inviável continuar com o benefício do jeito que está”, comenta Élida Graziane.
“Independentemente quem se eleja, o PLOA 2023 será prioridade número um na agenda do próximo presidente, logo após o resultado das eleições. A bomba fiscal vai ser debatida no congresso. O próximo a ocupar o Planalto, seja ele reeleito ou qualquer outro, vai ter um encontro marcado com esse campo minado de bombas fiscais”, conclui a promotora.
Em entrevista ontem ao programa Pânico, da TV Jovem Pan, Paulo Guedes negou a existência de uma bomba fiscal para o ano que vem. Ele lembrou que o colchão de liquidez do Tesouro Nacional está na casa dos R$ 800 bilhões. “É o dobro, [mas] não tem bomba”, disse o ministro da Economia.
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